quinta-feira, maio 23, 2013

hey !! Galera estamos com mais de 400visualizações na nossa pagina "Eu po Outro ANGULO " valeu galera essa e a familia eu por outro angulo crecedo..

quarta-feira, maio 22, 2013

Galera vamos lá não custam nada

 Ei e você .. Você mesmo se curte coisas sobrenaturais e tal entrem nesse site ele ótimo :
http://sobrenaturalvenha.blogspot.com.br/
 Obrigado mais compatilhem tbm obrigado

terça-feira, maio 21, 2013

Blog sobre coisas sobrenaturais

 Gente eu vou criar outro blog esse blog será só de coisas sobrenaturais como eu sei que tem muitos caçadores então eu vou fazer ; espera que vocês veram..  Boa Noite .
    A.D.M = Cris ..

domingo, maio 19, 2013

         
 

entrem ai saido aki depois eu volto #Estudarparaprovar Teeedio;. xau

quinta-feira, maio 02, 2013

Entrem para ouvir minha radio !! :)

http://ustre.am/XMnT
   Link para minha radio ta ai em cima valeu se acesarem obrigado que deus abençoe vocês ...

Radio Eu por outro ângulo façam pedidos de musica pelo blog também ..clique,nesse link azul   Minha Radio 

sábado, abril 27, 2013

terça-feira, abril 16, 2013

Certo meu Web Show foi por agua baixo mais me encontrei nisso aqui !.

  O Diário de Anne Frank  

      Eu me encontrei nisso por que fala uma historia de uma garrota que viveu e sentiu na pele a guerra 
então aqui eu coloquei meu coração e alma , e procurei e achei estar ai o diário de anne frank  :
 

O Diário de Anne Frank 


De 12 de Junho de 1942 a 1 de Agosto de 1944 A edição original desta obra foi publicada em 
 Amesterdão, pela editorial - Contact - com o 
Título - Het Achterhuis. - Achteruis - significa atrás 
ou por detrás, a "huis", casa. Nas velhas casas 
de Amesterdão as dependências que dão para o 
jardim ou para o pátio podem separar-se das 
partes voltadas para a rua de modo a ficarem independentes, embora pertençam ao mesmo 
prédio. 
 Por não haver expressão apropriada em português, 
resolvemos chamar a esta parte da casa 
"o anexo", apesar de não ser propriamente um anexo. 
 Utilizámos para a tradução do livro a edição 
alemã e o original holandês. PREFÁCIO 
ANNE Frank pertencia a uma família judaica de Frankfort 
 que, em 1933, fugindo às perseguições do regime hitleriano, 
se refugiou na Holanda, onde supunha encontrar a paz e a segurança. Mas, logo depois da 
invasão da Holanda pelos alemães, as perseguições aos judeus continuaram ali com tal violência 
que os Frank resolveram - mergulhar -, designação que então se dava ao desaparecimento 
voluntário de pessoas perseguidas-ou por razões políticas ou por discriminações raciais-e que 
passavam a ter uma existência ilegal ou clandestina. Durante dois anos, que abrangem o período 
de guerra de 1942 a 1944, 
não podem sair à rua e vivem sob a constante ameaça de serem 
descobertos pela polícia. 
 Anne, rapariga em pleno período de desenvoLvimento físico, 
esse período delicado e importante na vida de qualquer 
adolescente, mas especialmente decisivo quando se tem uma 
sensibilidade e uma inteligência como a dela, escrevia com 
regularidade um diário, em forma de cartas, a uma amiga 
imaginária. Este diário tornou-se não só um dos mais 
comoventes depoimentos contra a guerra, contra a injustiça e a crueldade dos homens como, 
também, um dos mais puros documentos psicológicos que todos, e sobretudo os que contactam 
com gente nova, deviam ler. 
 Anne não escreveu o seu diário a pensar na publicidade, nem 
porque fosse incitada a fazê-lo, mas única e simplesmente 
porque tinha de o escrever-para si própria, para - aliviar - o coração, como ela diz várias vezes, 
por essa forte necessidade íntima que caracteriza o artista e a que ela não se poderia furtar, nem 
que quisesse. 
 "Quando escrevo sinto um alívio, a minha dor desaparece, a 
 coragem volta... Ao escrever sei esclarecer todos os meus 
pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias". 
,Não se trata, portanto-e isto é fundamental-, de uma dessas 
produções de menino prodígio, lançado e explorado pela família 
 comercialmente, mas sim de uma autêntica obra de arte a que 
 um crítico suíço chamou - uma confissão clássica da 
puberdade de hoje, que ultrapassa todos os limites do 
circunstancial. 
 Como é que foi possível escrever-se uma obra destas entre os 
treze e os quinze anos de idade? Tão extraordinário caso tem 
a sua explicação: o isolamento, os sacrifícios diários, as 
angústias, o medo e, principalmente, a morte, a pairar sobre 
esta criança de uma inteligência e de um espírito de 
observação invulgares, fizeram 
com que ela amadurecesse prematuramente e fosse assim, pouco 
a pouco, penetrando em regiões que, em circunstâncias normais, 
só viria a explorar muito mais tarde. Ela própria sente isto e 
explica-o: "Vim para o anexo quando tinha treze anos e, por 
isso, fui obrigada a reflectir mais cedo sobre o Mundo e a fazer a descoberta de mim mesma como de um ser humano que 
deseja ser independente..No entanto é preciso notar: Anne não 
perde a frescura infantil nem esses gostos próprios do 
adolescente, como por exemplo coleccionar fotografias de 
artistas de cinema ou fantasiar-se 
com as roupas dos adultos. É que Anne não é um monstro, Anne 
é apenas uma adolescente a quem quiseram roubar o direito de o ser. 
.Nem a criança nem o adolescente sabem, em regra, compreender-se e analisar-se. É o adulto 
que, com a distância dos anos, a experiência da vida, a cultura e a serenidade 
indispensáveis, contempla e interpreta estes períodos passados 
da sua vida. Por isso Anne Frank há-de ser um dos casos à 
parte na literatura universal, com um significado denso e único. 
 Anne Frank vivia torturas que marcam qualquer indivíduo 
de qualquer idade mas muito especialmente um indivíduo em 
formação. Forçada a viver como um pássaro na gaiola Sinto-me 
como um pássaro a quem cortaram as asas e que bate, 
na escuridão, contra as grades da sua gaiola estreita -, afina 
os sentidos, concentra-os sobre o pequeno espaÇo em que a sua 
vida e a dos companheiros de destino se move, procura não só 
desabafar a sua revolta de adolescente, de judia expulsa da 
comunidade dos homens, vítima de uma guerra impiedosa, mas, também, encontrar as 
explicações e as interpretaÇões de tudo isto. 
 Ao leitor atento não pode escapar o crescendo dos 
apontamentos de Anne, tanto no que respeita ao seu espírito 
analítico como à própria força emocional. Se as primeiras 
páginas, escritas ainda 
no período de liberdade, são puramente infantis e correspondem 
à sua idade real, as últimas, que precedem a interrupção 
definitiva do diário, são de uma tal maturidade que nos fazem 
estremecer pelo seu profundo poder de introspecção e 
compreensão. 
 - Vejo-me em todos os meus actos como se se tratasse de uma 
pessoa estranha. Enfrento esta Anne com absoluta 
imparcialidade, sem pretender desculpá-la e observo o que ela 
faz de mal e de bem. Esta autocontempLação nunca me larga, e 
não posso pronunciar uma palavra sem pensar logo em seguida: 
"devia ter dito isto de outra maneira", ou: "foi bem dito...". 
Os outros só nos podem dar conselhos ou indicar-nos o caminho 
a seguir. Mas a formação definitiva do carácter está nas 
próprias mãos de cada indivíduo. 
 Reencontramo-nos em Anne! Sentimos a verdade, nua e crua, 
em cada uma das suas palavras. E é precisamente por isso, pela 
identidade dos sentimentos humanos, independentes de latitudes 
e de raças, que esta obra ganha cunho de universalidade, de 
documento humano. 
 Eis a pergunta que nos surge: terá a morte, sempre à 
espreita, dado a Anne um empurrão mais forte, obrigando-a urgentemente a apanhar e exprimir a vida em flagrante, antes 
de esta lhe fugir? 
 Ao considerar que Anne se limita quase exclusivamente a 
apontar os acontecimentos diários da vida no esconderijo, 
verificamos com espanto que nunca lhe falta assunto. Até uma 
caneta, que por engano foi parar ao fogão e ardeu, lhe serve 
para escrever uma "Ode à minha caneta". Num estilo simples, 
cristalino, invulgar em pessoas da sua idade, que costumam 
usar uma linguagem pretensiosamente - literária -, desenha, 
com admirável facilidade, o ambientt e as pessoas. 
 Todas as figuras se tornam nossas conhecidas, familiares, 
com as suas atitudes e os seus comportamentos tantas vezes 
contraditórios e, justamente por isso, tão reais. Anne não vê 
com sentimentalismo nem com ódio, e como no seu mundo não há 
ninguém perfeito nem ninguém absolutamente imperfeito, todos são vivos, quase palpáveis. 
 É óbvio que as reacções de Anne dependem muito da sua disposição e que as suas personagens 
surgem filtradas pelas suas dores, desânimos, alegrias, paixões e perspectivas, de modo que umas 
vezes são mais aceitáveis do que outras. Mas não é assim, mesmo na vida, e não vemos nós, ao 
fim e ao cabo, as 
pessoas não apenas como são, mas também conforme a nossa 
disposição do momento? 
 Não falta a Anne aquele raro dom que Thomas Mann considerava 
indispensável para se seguir uma obra de arte: 
 o sentido do humor. Estudando-se sempre a si própria, ela 
reconhece os seus defeitos e as suas quaLidades. E quanto ao 
seu sentido do humor diz: 
 "...e mesmo nos momentos mais perigosos, vejo ainda o 
cómico da situação e não posso deixar de me rir".,Se, por um 
lado, o próprio Thomas Mann está presente nesta frase, está-o 
talvez mais ainda Charlie Chaplin..Não vê ele nos momentos 
mais trágicos, mais perigosos - e mesmo na sua balada judaica 
"O Ditador" -o cómico das situações? 
 Assim, parece-nos verdadeiramente chaplinesca a descrição do 
assaLto ao armazém, nessa terrível noite que ficará gravada na 
memória de todos como a mais angustiosa das noites passadas 
no - anexo -, onde se pressente, apesar do abalo forte que 
Anne sofreu, o sorriso a brincar-lhe nos lábios quando ela, 
por exemplo, conta como acordou com a cabeça da sra. van Daan 
em cima dos seus pés. Chamamos também a atenção para cenas 
como aquela em que o grupo - mergulhado - descasca as 
batatas, ou aquelas em que a sra. van Daan desafia o marido 
com as suas conversas políticas. Em meia dúzia de traços, 
através de diálogos vivos 
e sem que a autora intervenha a explicar as personagens, elas 
são recortadas de modo que se nos revelam com todas as suas 
virtudes, manhas e limitações. 
 Talvez haja momentos em que Anne possa parecer-nos demasiado dura, sobretudo quando fala das suas relações com a mãe, 
ou se queixa do pai, este admirável homem que ela, bem o sentimos, coloca acima de tudo e de 
todos. Mas a dureza de Anne não é mais do que o resultado do conhecido conflito da 
adolescência a que ela, por ser inteligente e incapaz de aceitar as coisas incondicionalmente, dá 
expressão. O choque com a mãe, pouco atenta aos problemas íntimos da fiLha, é inevitável e 
agrava-se devido às circunstâncias em que são obrigadas a conviver. Provavelmente, ter-se-ia 
atenuado numa vida normaL, como aliás a própria Anne reconhece mais de uma vez. 
 Todos os - mergulhados - sofrem as consequências daqueLe 
isolamento. Sentimos-lhes a tensão nervosa que, em grande 
parte, provém da saturação de um convívio ininterrupto e 
forçado, em espaço tão restrito. E Anne, vendo como a 
mesquinhez se apodera daquela gente a que falta a liberdade, 
põe-na em flagrante contraste com esses corajosos holandeses, os protectores do pequeno grupo, 
que, sempre que entram em cena, trazem consigo a aragem fresca do mundo exterior. 
 Mas, apesar de tudo, dá-se no pequeno mundo de sofrimentos 
do - anexo - o eterno milagre da vida: o despertar do amor 
entre Anne e Peter. São de uma insuperável pureza as 
descrições dos seus primeiros idílios. "Quando o Peter e eu 
estamos sentados num caixote duro, no meio de ferros velhos e de pó, muito juntos, eu com um 
braço em volta dos seus ombros, ele com um braço em volta dos meus ombros, quando ele 
brinca com uma madeixa do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos pássaros, quando 
se vêem as árvores a pintarem-se de verde, quando o Sol nos chama e o ar é todo ele azul, oh!, 
então os meus desejos são infinitos". Mas sabemos desde logo que aquele rapaz bonito, bom, um 
tanto simplório, não pode corresponder às ânsias e exigências de uma rapariga como Anne que, 
em determinada altura, aponta no seu diário: "O melhor seria que ele, na maior parte das vezes, 
estivesse acima de mim", e mais tarde: "O Peter e eu passamos 
os dois anos mais importantes para a nossa formação aqui no 
anexo, falamos muitas vezes sobre o passado, o presente e o 
futuro, mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa 
de mais autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa 
existe". De resto, Anne, pela força e intensidade da sua vida interior, pela sua imensa sede de 
penetrar nas profundidades da vida e ainda pelo que nela há de extraordinário, digamos mesmo 
de maravilhoso, e, em certa medida, de inacessível para pessoas como o Peter van Daan, está, 
desde logo, condenada àquela solidão de todas as pessoas que ultrapassam os limites das normas 
gerais. 
 Por tudo o que neste livro está expresso: os problemas 
comuns a todos nós - a nossa coragem, as nossas fraquezas e, 
também, as nossas esperanças-, apercebemo-nos mais do que 
nunca do absurdo 
de todas as teorias de discriminação racial..Ninguém pode 
deixar de sentir, ao ler as cartas de Anne Frank, como, ao fim 
e ao cabo, as alegrias e as lágrimas humanas são as mesmas em 
todos os seres humanos e em todas as partes do mundo. 
 Assim o sentiu, também, a juventude alemã de hoje, cuja 
reacção perante esta obra talvez seja, desde há muito, o mais 
luminoso clarão de esperança que temos visto brilhar. 
 Anne Frank, vítima de uma época de injustiças e de violências desumanas, tornou-se um símbolo. As várias manifestações de 
simpatia de que é objecto culminaram, em 1 de Março último, 
com uma peregrinação de jovens alemães ao antigo campo de 
concentração de Bergen-Belsen, onde o corpo de Anne foi 
atirado, com centenas de milhares de outros corpos, para a vala comum. - Não queremos trilhar 
os caminhos dos nossos pais -, é o lema desta nova juventude. 
 E vem-nos à mente esta frase que Anne escreveu pouco antes da sua deportação para as fábricas 
da morte: "Creio no 
que há de bom no homem" frase que define toda a força e 
generosidade dessa pobre criança, radiante da sua mocidade, 
que soube exprimir todo um mundo de problemas da juventude dos 
nossos dias: "Eis a dificuldade do nosso tempo: mal começam a 
germinar em nós ideais, sonhos, belas esperanças, logo a 
realidade cruel se apodera de tudo isto para o destruir 
totalmente". 
 Mas não conseguiram destruir a força de Anne Frank. A sua 
obra, já traduzida em dezanove línguas e estudada nas classes 
superiores dos liceus alemães, ergueu-se como implacável 
libelo contra os seus assassinos. Anne Frank vive e continuará 
a viver ainda por muito tempo. Em 4 de Abril de 1944 escreveu: 
- Quero continuar a viver depois da minha morte -. Cumpriu-se 
o seu desejo. 
 Para nossa orientação e para melhor podermos informar o 
leitor, pusemo-nos em contacto com o sr. Otto Frank, pai de 
Anne, o único sobrevivente das oito pessoas que viveram 
escondidas no - anexo -. Eis os esclarecimentos que nos deu: 
 Os oito - mergulhados - foram primeiro encerrados no campo 
de concentração de Westerbrok, na Holanda, e depois 
transferidos para o campo de Auschwitz, na Alta Silésia, nos 
princípios de Novembro de 1944. Anne e sua irmã foram levadas 
para o campo de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, onde 
ambas morreram. 
.Nunca se pôde averiguar quem denunciou o esconderijo. 
 Os adultos falavam quase sempre em alemão, porém os adolescentes, que tinham frequentado a 
escola de Amesterdão, 
preferiam falar e escrever em holandês. 
 Salvaram-se e ainda existem alguns dos contos de fadas e 
outras histórias que Anne escreveu. Dois deles estão 
publicados em língua holandesa e alemã com os títulos - Wet 
je nog - e - Weisst du noch -, respectivamente. 
 ILSE LOSa Na sexta-feira acordei às cinco horas. Não era de 
admirar, pois fazia anos; mas não queriam que eu me 
levantasse tão cedo e tive de dominar a minha curiosidade 
até às sete menos um quarto. Depois não pude mais. 
Corri para a sala de jantar, onde o Mohrchen, o nosso 
gatinho, me cumprimentou com grandes festas. Depois 
das sete fui ter com meus pais e com eles entrei na sala 
de estar, para desembrulhar e ver as minhas prendas. 
Foi a ti, meu diário, que vi em primeiro lugar, e eras, 
sem dúvida, a prenda mais bonita. Tive um ramo de rosas 
 um cacto, algumas begónias. Eram as primeiras prendas 
de flores, mas, depois, recebi muitas mais. O pai e a mãe 
deram-me muitas coisas e os amigos também me estragaram 
com mimos. Assim recebi, entre outras prendas, 
a - câmara escura -, um jogo, muitas guloseimas, um jogo de 
paciência, um broche, - Os Mitos e Lendas Holandeses de Joseph Gohen, e ainda um livro 
encantador - A viagem 
de férias de Daisys à serra -, e dinheiro com que depois 
comprei os - Mitos gregos e romanos -. Estupendo! 
 Depois veio Lies buscar-me e fomos para a escola. 
Primeiro ofereci rebuçados aos professores (2) e aos 
 colegas e depois comeÇámos a trabalhar. 
 Por hoje vou terminar. 
 Estou tão contente De te ter a ti. 
Segunda-feira, 15 de Junho de 1942 

 Sábado à tarde foi a festa dos meus anos. Passámos 
um filme - O guarda do farol - com Rin-tin-tin), que 
agradou muito às minhas amigas. Fartámo-nos de fazer 
tolices e estivemos divertidíssimas. Vieram muitos rapazes 
e raparigas. A mãe teima em querer saber com quem 
eu mais tarde gostaria de casar. Julgo que ela ficaria 
espantada se soubesse que gosto do Peter Wessel, pois 
eu faço-me sempre desentendida quando se fala nele. Com 
a Lies Goosens e a Sanne Houtman convivo há anos 
 e até agora tinham sido elas as minhas melhores amigas. 
Ultimamente conheci Jopie van der Waal no Liceu judaico. 
Estamos muitas vezes juntas, e hoje é ela a minha melhor 
amiga. A Lies anda agora mais vezes com uma outra 
amiga, e a Sanne frequenta outra escola onde arranjou 
uma amiga. 
Sábado, 20 de Junho de 1942  

Durante uns dias não escrevi nada porque, primeiro 
quis pensar seriamente na finalidade e no sentido de um 
diário. Experimento uma sensação singular ao escrever 
o meu diário. Não é só por nunca ter - escrito -, suponho 
que, mais tarde, nem eu nem ninguém achará interesse 
nos desabafos de uma rapariga de treze anos. Mas na 
realidade tudo isso não importa. Apetece-me escrever e 
quero aliviar o meu coração de todos os pesos. 
 - O papel é mais paciente do que os homens -. Era 
nisso que eu pensava muitas vezes quando, nos meus dias 
melancólicos, punha a cabeça entre as mãos e sem saber 
o que havia de fazer comigo. Ora queria ficar em casa, 
ora queria sair e, a maior parte das vezes, ficava-me a 
cismar sem sair do sítio. Sim, o papel é paciente! E não 
tenciono mostrar este caderno com o nome pomposo de 
- Diário - seja a quem for, a não ser que venha a encontrar 
na minha vida o tal - grande amigo - ou a tal - grande 
amiga -. 
 De resto, a mais ninguém poderá interessar o que 
vou escrever. E pronto!, cheguei ao ponto principal de 
todas estas considerações: não tenho uma verdadeira amiga!, 
vou-me explicar melhor, pois ninguém pode compreender 
que uma rapariga de treze anos se sinta só. É, de facto, 
coisa estranha. Tenho pais simpáticos e bons, tenho uma 
irmã de dezasseis anos, ao todo, por aí uns trinta conhecidos 
ou o que se chama geralmente - amigos -. Tenho 
uma comitiva de admiradores que me fazem todas as 
vontades. Mesmo na aula tentam ver-me o rosto com um 
espelhinho de bolso e só se dão por satisfeitos quando 
lhes sorrio. Tenho parentes, tias e tios, muito simpáticos, 
uma casa bonita, e, pensando bem, não me falta nada, 
senão uma amiga! Com todos os meus numerosos conhecidos, 
só consigo fazer tolices ou falar sobre coisas banais. 
Não me é possível abrir-me, sinto-me como que "abotoada". 
Pode ser que esta falta de confiança seja defeito meu. 
Mas não há nada a fazer e tenho pena de não poder 
modificar as coisas. 
 Por tudo isto é que escrevo um diário. E para evocar na 
minha fantasia a ideia da amiga há tanto tempo desejada, 
não quero, como qualquer pessoa, assentar só factos. Este 
diário é que há-de ser a minha amiga, e vou-lhe pôr um 
nome. Essa amiga chama-se Kitty. 
 Seria incompreensível a minha conversa com a Kitty 
se eu não contasse primeiro a história da minha vida, 
embora sem grande vontade. 
 Quando meus pais casaram tinha o meu pai trinta e 
seis anos e a minha mãe vinte e cinco. Minha irmã Margot nasceu em 1926 em Frankfort sobre o Reno; em 12 de 
Junho de 1929 vim eu. como somos judeus, emigrámos, 
em 1933, para a Holanda, onde meu pai se tornou director 
da Travis A-G. Esta firma trabalha em estreita ligação 
com a Kolen 82 Go., no mesmo edifício. 
 A nossa vida decorria com as aflições do costume, 
pois as pessoas de família que ficaram na Alemanha não 
escaparam às perseguições de Hitler. Depois dos "progroms" 
de 1938 os dois irmãos de minha mãe fugiram 
para a América. Minha avó veio viver connosco. Tinha 
nessa altura setenta e três anos. A partir de 1940 foram-se acabando os bons tempos. Primeiro 
veio a guerra, depois 
a capitulação, em seguida a entrada dos alemães. E então 
começou a miséria. A uma lei ditatorial seguia-se outra; 
e, em especial para os judeus, as coisas começaram a ficar 
feias. Obrigaram-nos a usar a estrela e a entregar as bicicletas, não nos deixavam andar nos 
carros eléctricos e muito menos de automóvel. 
 Os judeus só podiam fazer compras das 3 às 5 horas-e 
só em lojas judaicas. Não podiam sair à rua depois das 
oito da noite e nem sequer ficar no quintal ou na varanda. 
Não podiam ir ao teatro nem ao cinema, nem frequentar 
qualquer lugar de divertimentos. Também não podiam 
nadar, nem jogar tenis. ou hóquei, nem praticar qualquer 
outro desporto. Os judeus não podiam visitar os criStãos. 
As crianças judaicas eram obrigadas a frequentar escolas judaicas. cada vez saíam mais 
decretos... Toda a nossa 
vida estava sujeita a enorme pressão. Jopie dizia a cada 
passo: "Já nem tenho coragem para fazer seja o que for 
porque tenho sempre medo de fazer qualquer coisa que 
seja proibida". 
 Em Janeiro deste ano morreu a avózinha. Ninguém 
imagina quanto eu gostava dela e que falta me tem feito. 
Em 1939, mandaram-me para o jardim-escola - Montessori -. 
Depois estudei ainda as primeiras classes primárias naquela 
 escola. No último ano, a directora, a sra. K., era chefe da 
minha turma. No fim do ano despedimo-nos comovidas, 
e ambas chorámos muito. Desde o ano passado a Margot 
e eu frequentamos o Liceu judaico; ela está no quarto 
ano e eu no primeiro. 
 Nós, os quatro da família, ainda não temos muito de 
que nos queixar. Estamos bem. E assim cheguei ao presente, 
à data de hoje. 
Sábado, 20 de Junho de 1942 
Querida Kitty:  Vou começar já. Está tudo tão calmo! O pai e a mãe 
 saíram e a Margot foi a casa de uma amiga jogar o pingue 
pongue. Também me apaixonei ùltimamente por este jogo. 
 Como nós, os jogadores de pinguepongue, gostamos imenso 
 de tomar sorvetes, o jogo acaba quase sempre numa excursão 
a qualquer das confeitarias onde os judeus ainda podem 
 entrar: "Delphi" ou "Oasis". Não importa se temos muito 
 ou pouco dinheiro no porta-moedas. As duas confeitarias 
 estão tão cheias que entre toda aquela gente sempre se 
 encontram rapazes das nossas relações ou até um ou outro 
 admirador. E tantos sorvetes nos querem oferecer que nem 
 numa semana seríamos capazes de os tomar todos. 
 Presumo que ficaste admirada por eu, apesar de tão 
 nova, já falar em admiradores. Infelizmente esta desgraça 
 é inevitável na nossa escola. Quando um dos rapazes 
 pergunta se pode acompanhar-me a casa de bicicleta é 
 certo e sabido que se apaixona logo por mim e que não me 
 perde de vista durante algum tempo. Depois, pouco a 
 pouco, vai acalmando, sobretudo porque eu faço de 
; conta que não vejo os olhares apaixonados e continuo 
 alegremente a pedalar. Se, por vezes, aquilo passa das 
 marcas, ponho-me a fazer umas habilidades na bicicleta, 
 a minha pasta cai ao chão e, por amabilidade, o rapaz 
; vê-se obrigado a descer. Apanha a pasta e até ma entregar 
 tem tempo para se acalmar. Estes ainda assim são os mais 
 inofensivos, mas há também alguns que nos atiram beijos 
 ou nos tocam no braço. Mas comigo a coisa não pega. 
 Quando isso sucede, desço da bicicleta e declaro que lhes 
dispenso a companhia ou finjo-me ofendida e mando-os passear. 
 E pronto, Kitty, foi colocada a primeira pedra da 
 nossa amizade. Até amanhã! 
 Tua Anne 
Domingo, 21 de Junho de 1942 
Querida Kitty: 
 Toda a nossa turma treme: a Reunião de conselho dos 
professores está à porta. Metade da turma passa o tempo 
a apostar quem passa de classe e quem chumba. A Miep 
de Jong e eu escangalhamo-nos a rir por causa das nossas 
companheiras de carteira que já apostaram todo o seu 
dinheiro de bolso. De manhã à noite andam a rezar: "Tu 
passas, tu chumbas, sim, não..." Nem os olhares suplicantes 
da Miep nem as minhas sérias tentativas para as meter na ordem conseguem nada daquela gente. Há tantos 
mandriões na minha turma que eu, se mandasse, reprovava 
metade. Os professores são as pessoas mais caprichosas 
do mundo, mas talvez sejam, neste caso, caprichosos no 
bom sentido. 
 Dou-me razoavelmente com os professores e com as 
professoras. Ao todo são nove, sete homens e duas senhoras. 
O sr. Kepler, o velho professor de matemática, ao princípio 
embirrava comigo, por eu palrar muito. Andava 
constantemente a avisar-me, até que me marcou um 
 trabalho de castigo. Mandou-me fazer uma redacção sobre 
o tema: "Uma tagarela." Uma tagarela! O que se poderia 
escrever sobre isto? Mas não me afligi. Meti o caderno de 
exercícios na pasta e esforcei-me por estar calada. à noite, 
depois de acabados todos os outros deveres, lembrei-me da 
redacção. Roí um bocadinho a pena e pensei no assunto: 
escrever umas tretas e com as palavras tanto quanto possível 
distanciadas, toda a gente sabe. Mas encontrar uma razão 
evidente da necessidade de palrar, aí é que estava o grande 
problema. Pensei e tornei a pensar. De repente as palavras 
surgiram. Enchi as três folhas obrigatórias, rapidamente, 
sem cessar. Aquilo saiu-me bem. Como argumento aleguei que palrar era próprio das mulheres e 
que eu de bom 
grado faria esforços para me emendar se a minha mãe 
não falasse tanto como eu. E, como era sabido, contra 
defeitos hereditários pouca coisa se podia fazer. 
 O sr. Kepler riu-se da minha explicação. Quando na 
próxima aula palrei de novo, foi-me marcada outra redacção: 
a "tagarela incurável". Lá a escrevi como pude e 
durante duas aulas portei-me lindamente. Mas na terceira 
aula já não sucedeu o mesmo, e o sr. Kepler achou que 
o meu mau comportamento passava das marcas: 
 - Anne, como castigo por causa da tua tagarelice, vais 
fazer uma redacção: cá, cá, cá, cá, a menina que cacareja. 
A turma riu a bandeiras despregadas. Também ri, embora 
me parecesse que tinha esgotado o meu espírito inventivo 
para redacções sobre o palrar. Tinha de encontrar alguma 
coisa de novo, de original. A minha amiga Sanne, poetisa 
consumada, aconselhou-me a tratar o assunto em verso 
e pôs o seu talento à minha disposição. Fiquei entusiasmada. 
O Kepler queria fazer pouco de mim, mas eu podia pregar-lhe 
uma partida ainda pior. 
 Fizemos um poema que foi um sucesso. Tratava de 
uma mamã de patos e de um "pai cisne". com três patinhos 
que, por causa de tanto cacarejar, foram mordidos pelo 
pai até morrerem. Felizmente o Kepler compreendeu a 
brincadeira e leu o poema em voz alta na nossa e nas outras turmas. Desde então posso palrar sem que o Kepler 
me mande fazer redacções de castigo, mas passou a dizer-me 
a cada passo uma piadinha. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 24 de Junho de 1942 
Querida Kitty: 
 Está a escaldar. Todos bufam e transpiram, e por um 
calor destes tenho de andar a pé. só agora compreendo 
como é bom o carro eléctrico, sobretudo as carruagens 
abertas. Mas é um prazer que já não existe para nós, os 
judeus. Temos de nos contentar com "as irmãs perninhas". 
Ontem,,à hora do almoço, tive de ir ao dentista na 
 Jan Luykenstraat. É uma caminhada longa desde a nossa 
escola, que fica junto do jardim público. Na aula da tarde, 
de cansada, por pouco, ia adormecendo. O que vale é que 
ainda há pessoas amáveis que nos oferecem de beber 
meSmo sem pedirmos nada. A "irmã" no dentista compreende 
a nossa situação. 
 Só um meio de transporte nos é ainda permitido: 
-a barca. No molhe de Joseph-Israel há um barquinho, 
que a nosso pedido nos leva à outra margem. Em boa verdade, 
não é por culpa dos holandeses que a vida é dura 
para os judeus. 
 Ai, se não precisasse de ir para a escola! Durante 
as férias da Páscoa roubaram-me a bicicleta, o pai pôs 
a da mãe em segurança, em casa de gente conhecida! 
Felizmente as férias estão à vista, mais uma semana e estou 
livre disto! 
 Ontem, da parte da manhã, aconteceu-me uma coisa 
engraçada. Quando passei por aquele sítio onde costumava 
guardar a minha bicicleta, ouvi chamar. Virei-me. Atrás 
de mim vinha um rapaz simpático que, na noite anterior, 
tinha encontrado na casa da Eva, uma conhecida minha. 
Um pouco tímido, disse-me o seu nome: Harry Goldberg. 
Fiquei admirada, não sabia bem o que ele queria de mim. 
Mas, num instante, fiquei a saber. Queria acompanhar-me 
à escola. 
 Se tens o mesmo caminho, então está bem, disse eu 
e caminhámos lado a lado. O Harryjá tem dezasseis anos 
e sabe falar com graça sobre muitas coisas. Hoje, de manhã, 
estava, de novo, à minha espera e, para já, penso que assim 
há-de continuar algum tempo. 
Tua Anne Terça-feira, 30 de Junho de 1942 
Querida Kitty: 
 Até hoje ainda não tive tempo para escrever. Quinta-feira 
estive toda a tarde em casa de gente amiga. Sexta 
tivemos visitas e assim por diante, até hoje. Harry e eu 
conhecemo-nos melhor nesta semana. Contou-me muita 
coisa dele. Veio cá para a Holanda com os avós. Os pais 
estão na Bélgica. 
 Harry tem andado, até agora, com uma outra rapariga, 
a Fanny. Ela é um modelo exemplar de meiguice e de 
enfado. Desde que o Harry me conhece a mim, descobriu 
que quase adormece ao lado de Fanny. Sou para ele uma 
espécie de estimulante. Nunca a gente sabe para o que 
é capaz de servir. 
 Sábado, a Jopie dormiu cá em casa. A tarde de domingo 
passou-a com a Lies e eu aborreci-me de morte. à noite 
devia vir o Harry, mas às seis telefonou-me: 
 -Aqui, Harry Goldberg. Por favor posso falar com 
a Anne? 
 -Sou eu mesma. 
 -Boa noite Anne. Como estás? 
 -Bem, obrigada. 
 -Infelizmente não posso ir aí à noite. Mas queria 
muito falar contigo. Podes descer, daqui a dez minutos? 
 -Está bem. Até já. 
 Mudei num instante de roupa e dei um jeito ao cabelo. 
Depois pus-me à janela, toda nervosa. Finalmente, veio. 
É espantoso, mas não me precipitei logo escada abaixo. 
Esperei calmamente que ele tocasse à campainha. Depois 
desci. Saímos e ele foi direito ao assunto. 
 - Ouve, Anne, minha avó acha que tu és nova de mais 
para mim. Acha que eu devia virar-me de novo para a Fanny Lours. Se calhar soube que eu já 
não quero saber 
da Fanny para nada. 
 -Então, zangaste-te com ela? 
 -Não, pelo contrário. Eu disse-lhe que não ligamos 
lá muito bem um com o outro e que, por isso, não vale 
a pena encontrarmo-nos tantas vezes. Que pode continuar 
a vir à nossa casa e que também eu continuarei a ir à dela. 
Desconfiei que a Fanny andasse com outros rapazes, mas 
afinal não anda. Meu tio achou que devia pedir-lhe desculpa, 
mas não me apetece. Achei preferível acabar assim. 
A avó insiste; quer que eu mantenha a amizade com a Fanny e que não comece a andar contigo, mas eu quero 
lá saber disso para nada. Gente velha tem por vezes ideias 
à antiga, que me não podem interessar. Não há dúvida 
de que dependo de minha avó, mas, em certa medida, ela 
também depende de mim. às quartas estou sempre livre. 
Os avós julgam que vou às aulas de trabalhos manuais 
mas eu tenho ido quase sempre às reuniões dos sionistas. 
Não somos sionistas, mas interessava-me conhecer aquilo. 
Ultimamente não me sentia à vontade naquelas reuniões 
e resolvi não tornar a ir. Assim podemos encontrar-nos 
nas quartas e sábados, à tarde e à noite, e no domingo, 
à tarde, e talvez mais vezes ainda. 
 -Mas os teus avós não estão de acordo. Não deves 
fazer isso às escondidas. 
 -No amor ninguém manda. 
 Passámos pela livraria e dobrámos a esquina. E lá 
estava o Peter Wessel com mais dois rapazes. Era a primeira 
vez que o tornava a ver e fiquei cheia de alegria. 
Harry e eu andámos e tornámos a andar em volta do bairro 
e, por fim, combinámos que ele me esperasse na tardinha 
seguinte às sete menos cinco, em frente da sua casa. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 3 de Julho de 1942 
Querida Kitty: 
 Ontem esteve cá o Harry. Quis conhecer os meus pais. 
Eu tinha ido buscar torta, doces e bolachas e tomámos 
chá. Ao Harry e a mim não nos apetecia nada ficar em casa 
quietinhos. Saímos, demos um passeio e eram oito e dez 
quando ele me deixou em casa. 
 O pai estava zangadíssimo por eu chegar tão tarde, 
que era muito perigoso, para judeus, andar pelas ruas 
depois das oito. 
 Prometi de hoje em diante estar sempre em casa, 
pontualmente, às oito menos dez minutos. Amanhã estou 
convidada para ir a casa do Harry. A minha amiga Jopie faz 
troça de mim por causa dele. Mas não estou apaixonada. Então 
não posso ter um amigo? Ninguém acha mal que tenha um 
amigo ou-como costuma dizer a mãe-um cavalheiro. 
Eva contou-me que o Harry esteve o outro dia em casa 
dela e que ela lhe perguntou : 
 - Quem achas mais simpática,.a Fanny ou a Anne? 
 -Não tens nada com isso-respondeu ele. 
 Então não falaram mais no assunto, mas ao despedir-se o Harry disse: 
 -A Anne é mais simpática, claro, mas não precisas de 
falar nisso a ninguém. 
 As últimas palavras já foram ditas na rua. 
 Sinto que o Harry está apaixonado por mim e, para 
variar, isto é engraçado. A Margot dizia : 
 - Um tipo simpático. 
 - Acho-o também simpático, mais até do que simpático. 
A mãe anda encantada com ele. 
 -Um rapaz bonito, muito gentil e bem educado. 
 Ainda bem que o Harry agrada tanto a toda a família. 
Ele também nos acha a todos muito simpáticos. Só acha 
a minha amiga infantil e não deixa de ter razão. 
Tua Anne 
Domingo, 5 de Julho de 1942 
Querida Kitty: 
 A festa do fim do período correu lindamente. As minhas 
notas não são nada más. A pior nota é um cinco em Álgebra; 
tenho dois seis, sete em quase tudo e dois 
oitos. 
 Cá em casa ficaram satisfeitos. Não ligam grande 
importância às notas boas ou más, dão mais valor ao bom 
comportamento e querem acima de tudo que eu tenha 
saúde e seja alegre. Dizem eles que havendo saúde e boa 
disposição, o resto vem por si, mas eu gostava de ser uma 
boa aluna a valer. 
 Só me admitiram no liceu condicionalmente por me 
faltar ainda o último ano da Escola Montessori. A coisa 
foi assim: 
 Quando todos os alunos judaicos tiveram de mudar-se 
para escolas judaicas, o reitor, depois de muito palavriado, 
admitiu-me a mim e à Lies, mas com muitas reservas. 
E agora não quero desiludi-lo. Minha irmã Margot teve 
notas brilhantes, como de costume. Se houvesse louvores 
ela passaria - com distinção e louvor, a mais alta classificação, pois é muito inteligente. 
 O pai, desde que não pode ir ao escritório, passa muito 
tempo em casa. Deve ser uma sensação horrível, isto de 
uma pessoa se sentir, de repente, posta de parte. O sr. 
Koophus tomou conta da - Travis - juntamente com o 
sr. Kraler, da firma Kolen & C.o, de que o pai também 
era sócio. Quando, há uns dias, andávamos a passear, o 
pai disse-me que decerto teríamos de - mergulhar -. Disse que nos iria custar muito viver 
isolados do mundo.  Perguntei porque é que falava assim. 
 -Bem sabes - disse ele - que há mais de um ano estamos 
 a levar o vestuário, a mobília e os comestíveis para 
casa de outras pessoas. Não queremos deixar cair o que é 
nosso nas unhas dos alemães. E ainda menos queremos, 
nós próprios, cair-lhes nas mãos. Por isso não vamos esperar 
até que nos venham buscar. 
 O rosto muito sério do meu pai inquietou-me. 
 -Então, quando, pai? 
 -Não te preocupes, minha filha. Sabê-lo-ás a tempo. 
Goza a tua liberdade enquanto for possível. 
 Foi tudo. Oxalá que o tal dia ainda venha longe! 
Tua Anne 
Quarta-feira, 8 de Julho de 1942 
Querida Kitty: 
 Entre domingo de manhã e hoje foi como se se tivessem 
passado muitos anos. Aconteceram imensas coisas. É como 
se a Terra estivesse toda ela transformada. Contudo, Kitty, 
ainda estou viva, e isto é o principal. Sim, estou viva, mas 
não queiras saber de que maneira. É possível que hoje 
nem me entendesses, por isso, antes de mais nada, vou-te 
contar o que se passou. 
 às três horas (Harry tinha saído naquele mesmo 
momento e queria voltar mais tarde) tocou a campainha. 
Eu não tinha ouvido nada porque estava, numa preguiça 
agradável, estendida na cadeira de repouso, a ler. Nisto 
entrou a Margot, toda excitada. 
 - Anne, recebemos uma convocação das SS para o 
pai - cochichou. - A mãe já foi ter com o sr. van Daan. 
 Senti um medo horrível. Uma convocação para o pai... 
Toda a gente sabe o que isto significa: campo de concentração... Vi surgir diante de mim celas 
solitárias para onde queriam levar o meu pai! 
 - Não pode ser - disse Margot categòricamente quando 
 nos encontrámos as duas na sala de estar, à espera da mãe. 
 -A mãe foi a casa dos van Daans para combinar se não 
 seria melhor - mergulhar - já amanhã. Os van Daans vão 
 connosco, somos, ao todo, sete. 
 Um grande silêncio. Não fomos capazes de dizer mais 
 uma palavra. A ideia de que o pai andava em visita aos 
seus protegidos no asilo dos velhos judeus, sem suspeitar 
coisa alguma, a demora da mãe, o calor, a tensão... tudo 
isso nos emudecia. 
 De repente, tocou a campainha.  -É o Harry - disse eu. 
- Não abras! 
 A Margot quis deter-me, mas já não foi preciso. Ouvimos 
a mãe e o sr. van Daan a falar com o Harry. Depois 
de ele se ter ido embora, entraram e fecharam a porta. 
A cada toque da campainha ou Margot ou eu tínhamos 
de descer sem fazer o menor ruído, para ver se era o pai. 
Não devíamos deixar entrar mais ninguém. Mandaram-nos, 
às duas, sair do quarto. O van Daan queria falar a sós com 
a mãe. Enquanto esperávamos no nosso quarto, a Margot 
disse-me que a convocação não tinha sido para o pai mas 
sim para ela. Apanhei, de novo, um susto horrível e desatei 
a chorar desesperadamente. A Margot tem dezasseis anos. 
E eles obrigam raparigas assim a partir sòzinhas. Felizmente 
ela não se há-de separar de nós. A mãe já o tinha dito e 
as palavras do pai, quando me falou em - mergulharmos -, 
deviam querer dizer a mesma coisa. 
 - Mergulhar -! Onde havemos nós de - mergulhar -? 
Na cidade, no campo, num edifício qualquer, numa cabana, 
quando, como, onde? Estas perguntas não me era permitido 
fazê-las em voz alta mas andavam-me constantemente 
na cabeça. 
 Margot e eu começámos a meter nas pastas da escola 
o que nos parecia mais necessário. A primeira coisa em que 
peguei foi neste caderno, depois meti ao calhar: "bigondis", 
lenços, livros escolares, um pente e cartas velhas. Ao 
 lembrar-me de que íamos - mergulhar -, meti ainda na pasta 
coisas inconcebíveis mas não estou arrependida. 
 Recordações valem mais do que vestidos. 
 às cinco horas o pai chegou finalmente. Telefonou ao 
sr. Koophuis e pediu-lhe que viesse à noite a nossa casa. 
O sr. van Daan foi buscar a Miep que veio e meteu sapatos, 
vestidos, casacos e roupas brancas numa malinha. Prometeu 
voltar à tardinha. Depois disso reinou o silêncio na nossa 
casa. Ninguém quis comer. O calor ainda apertava. Parecia-me 
tudo tão estranho! 
 O quarto grande, no andar de cima, estava alugado 
a um tal sr. Goudsmit, um homem divorciado, de mais 
ou menos trinta anos. Como nesse domingo parecia não 
ter nada que fazer, foi ficando conosco até às dez horas, 
não conseguimos despedi-lo antes. às onze horas chegaram 
 a Miep e o Henk san Santen. A Miep trabalha, desde 1933, no escritório do pai e tinha-se 
tornado uma nossa 
amiga fiel, assim como o seu marido Henk, com quem 
casou há pouco. Na mala de Miep desapareceram sapatos, 
meias, livros e roupas brancas e também nos bolsos fundos 
do Henk. às onze e meia saíram carregados. Eu, cheia de sono, já não me aguentava em pé e, embora soubesse 
que era aquela a última noite que passava na minha casa, 
adormeci num instante. Na manhã seguinte a mãe acordou-me 
 às cinco e meia. Felizmente já não estava tanto 
calor como no domingo. Uma chuvinha, miúda, quente, 
caiu todo o dia. Vestimo-nos todos com tanta roupa como 
se fôssemos meter-nos num frigorífico. Assim, foi-nos 
possível trazer para cá uma data de roupas. Um judeu 
na nossa situação não podia correr o risco de andar na rua 
com uma grande mala. Eu trazia duas camisas, dois pares 
de meias, três calcinhas e um vestido leve, com saia e 
casaco por cima e ainda mais um casaco comprido de 
verão. Calcei os meus melhores sapatos, pus cachecol, boina 
e ainda mais coisas. Mesmo antes de sair de casa já me 
sentia quase sufocada, mas ninguém quis saber disso. 
 A Margot meteu mais livros de estudo na pasta, foi 
buscar a bicicleta e ia pedalando atrás da Miep, para 
qualquer parte, que me era desconhecida. É que eu ainda 
não sabia qual era o lugar misterioso onde nos havíamos 
de abrigar... às sete e meia saímos e batemos a porta. 
Só me despdi de Mohrchen, o meu querido gatinho, que 
havia de encontrar um bom refúgio num dos vizinhos, se 
o sr. Goudsmit cumprisse este nosso desejo que lhe deixámos 
ficar escrito num papelinho. 
 Na mesa da cozinha ficou meio quilo de carne para 
o gato, na mesa da sala ainda estava a louça do pequeno 
almoço. As roupas das camas arejavam nas janelas. Tudo 
isso dava a impressão de termos deixado a casa precipitadamente. 
Mas era-nos indiferente o que os outros podiam 
pensar. Queríamos desaparecer e chegar sãos e salvos ao 
nosso destino. 
 Amanhã continuo! 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 9 de Julho de 1942 
Querida Kitty: 
 Assim corremos debaixo da chuva, a mãe, o pai e eu, 
cada um com uma pasta e uma saca de compras completamente 
cheia, sabe Deus com quê. Os operários que iam 
para o trabalho olhavam-nos. Bem se lhes lia nos rostos 
que tinham pena de nós por irmos tão carregados e por 
não nos deixarem andar nos carros eléctricos. A nossa 
estrela amarela no braço falava por si. Pelo caminho fora, 
os pais contaram-me, tintim-por-tintim, como nascera o plano do nosso esconderijo. Havia já meses que parte da 
nossa mobília e do nosso vestuário tinha sido posta a salvo. 
Se não houvesse complicações, estariamos prontos para 
desaparecer no dia 16 de Julho. Por causa da convocação 
as coisas anteciparam-se uns dez dias e, por isso, os quartos 
que íamos ocupar ainda não estavam preparados como 
devia ser, mas tínhamos de nos conformar. O esconderijo 
é na casa comercial do pai. Para quem está de fora, tudo 
isto é difícil de compreender. Por isso vou explicar melhor. 
O pai nunca teve muitos empregados. Os de agora eram 
o sr. Kraler, o sr. Koophuis, a Miep e Elli Vossen, a dactilógrafa 
de vinte e três anos. Todos sabiam que vínhamos. 
Só o sr. Vossen, o pai da Elli, que trabalha no armazém, 
e os dois criados é que não estão no segredo. 
 O edifício é assim : no rés-do-chão há um grande armazém 
 que também serve para a expedição. Ao lado da 
entrada para o armazém há a verdadeira porta de entrada. 
Passada a porta, sobe-se por uma escada de poucos degraus, 
até uma outra porta onde, sobre vidros foscos, existiu em 
tempos, em letras pretas, a palavra "escritório". Trata-se do escritório grande, muito grande 
mesmo, muito claro 
e atravancado de móveis. Nele trabalham, durante o dia 
a Miep, a Elli e o sr. Koophuis. Através de um quarto 
de passagem que serve de vestiário, onde há um grande 
armário e um cofre à prova de fogo entra-se num grande 
quarto que dá para as traseiras, onde antes o sr. Kraler 
trabalhava com o sr. van Daan. Agora só lá ficou o sr. Kraler. 
Pode também passar-se do corredor directamente para 
 este quarto, atravessando uma porta de vidro que se 
pode abrir por dentro com facilidade, mas que dificilmente 
se abre do lado de fora. Do escritório do sr. Kraler, 
passa-se, através do corredor e subindo quatro degraus, à 
mais bonita sala da casa, o escritório particular. Móveis 
de luxo, escuros, chão revestido de oleado e com tapetes; 
um rádio, candeeiros catitas, vistosos, tudo estupendo. 
Ao lado há uma cozinha grande, airosa, com um cilindro 
de água quente e dois fogareiros a gás. E, ao lado da 
 cozinha, o W. C. Isto é o primeiro andar. 
 Do corredor comprido, uma escada de madeira conduz 
 a um vestibulo que acaba noutro corredor. Há uma 
 porta à direita e outra à esquerda. A da esquerda conduz 
 à parte da frente da casa onde se encontram os armazéns, 
 as águas-furtadas e o sótão. No edifício há ainda uma 
 outra escada comprida, íngreme de mais, perigosa, tipicamente holandesa. 
 A porta da direita conduz a um anexo. Ninguém podia 
 nem sequer suspeitar que, para além desta porta simples, 
 pintada de cinzento, ainda se encontrariam escondidos muitos quartos. Aberta a porta, sobe-se um degrau, e 
 está-se dentro do anexo. Em frente da entrada há uma escada 
 íngreme. à esquerda, um corredorzito leva a um quarto 
 que vai ser o quarto de dormir e de estar do casal Frank 
 e a um outro quartinho : o quarto de trabalho e de 
 dormir das duas meninas Frank. Ao lado direito da 
 escada há um quarto sem janelas com lavatório e 
 um W. C. com uma outra porta que dá para o nosso 
 quarto., 
 Quando se sobe a escada e se abre a porta de cima 
 fica-se admirado ao ver numa casa tão velha, um quarto 
 tão grande, bonito e airoso. Neste quarto há um fogão 
 de gás e uma banca. Aqui estava instalado, até há pouco, 
o laboratório da firma. Agora serve de cozinha, de sala 
e de quarto de dormir do casal van Daan. 
 Um quartinho minúsculo de passagem o ladeia também 
de Peter van Daan. Como na casa, aqui há águas-furtadas e um 
sótão. Vês, agora fiz-te a 
apresentação de todo o nosso anexo. 
 Tua Anne 
Estivemos ocupados durante todo o dia. Até quarta feira nem tempo tive para pensar nesta 
grande reviravolta que se deu na 
minha vida. Só então, pela primeira vez desde que aqui 
chegámos, consegui arranjar tempo para ficar em mim, 
para te descrever o que tinha acontecido e para falar no 
que ainda poderá vir a acontecer. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 10 de Julho de 1942 
Querida Kitty: 
 Se calhar aborreci-te mesmo, com a descrição extensa 
da casa. Mas acho que deves saber onde nos aninhamos. 
E agora deixa-me continuar, pois ainda não acabei. Quando 
chegámos a Prinsengracht, a Miep fez-nos subir depressa 
para o anexo e fechou a porta atrás de nós. Cá estávamos. 
Margot tinha chegado muito mais depressa de bicicleta 
e já estava à nossa espera. O nosso quarto de estar e os 
outros também pareciam arrumos atravancados. A desordem 
 era indescritível! Os caixotes e as malas que, no decorrer 
 dos últimos meses, se tinham mandado para aqui, 
alastravam numa grande confusão. O quartinho, apinhado 
até ao tecto com camas e roupas brancas. Se queríamos dormir à noite em camas bem feitas, tínhamos de deitar 
já mãos à obra. A mãe e a Margot não foram capazes de 
mexer numa palha. Atiraram-se para cima dos colchões; 
sentiam-se muito infelizes. O pai e eu, os dois 
"arrumadores" da família, desatámos a trabalhar. Despejámos as 
malas e os caixotes, colocámos tudo nos sítios próprios, 
martelámos, esfregámos, e quando a noite chegou caímos, mais 
mortos que vivos, nas camas limpinhas. Não tomámos uma só 
refeição quente durante todo o dia. Também não era 
preciso. A mãe e a Margot estavam nervosas de mais para comer e o pai e eu não tivemos tempo. 
Na terça-feira de 
manhã continuámos. A Elli e a Miep fizeram as compras 
 com os nossos talões de racionamento, o pai melhorou 
 a ocultação das luzes que tinha ficado imperfeita e 
esfregámos os azulejos da cozinha. Estivemos todos bem. 
 Tua Anne 
Sábado, 11 de Julho de 1942 
Querida Kitty : 
 O pai, a mãe e a Margot ainda não conseguiram habituar-se 
ao sino da - Torre-Oeste -, que toca de quarto em 
quarto de hora. Eu já me habituei, até acho bonito. Principalmente de noite tem algo de calmante 
para mim. 
 Decerto gostavas de saber se este refúgio me agrada. 
Para ser franca, ainda não sei. Creio que nunca me sentirei 
aqui como em nossa casa. Mas com isto não quero dizer 
que o acho lúgubre ou triste. Por vezes quer-me parecer 
que estou numa pensão estranha. Uma concepção singular do 
"mergulhar" não achas? Esta casa é realmente um esconderijo ideal. Apesar de ser um bocado 
húmida, torta e 
sinuosa, será difícil encontrar coisa mais confortável em 
Amesterdão ou mesmo em toda a Holanda. 
 O nosso quarto até agora estava nu completamente. 
O pai trouxe toda a minha colecção de postais de estrelas 
de cinema e de vistas, e eu transformei-os, com cola e 
pincel, em lindos quadros para as paredes. Agora o quarto 
tem um aspecto alegre. Logo que cheguem os van Daans 
havemos de construir armarinhos para as paredes e outras 
coisas úteis com a madeira que está no sótão. 
 A Margot e a mãe vão-se habituando. Ontem, pela 
primeira vez, a mãe quis cozinhar. Sopa de ervilhas! 
Mas enquanto tagarelava em baixo esqueceu-se da sopa 
por completo, e esta esturrou toda, as ervilhas ficaram 
negras como carvão e era impossível despegá-las do fundo da panela. É pena que eu não possa contar esta história 
ao meu professor Kepler... teoria da hereditariedade. 
 Ontem à noite fomos todos ao escritório particular para 
ouvir a emissão da B. B. C. Estava com muito medo de 
que alguém na vizinhança pudesse dar por ela e supliquei 
ao pai que voltasse conosco para cima. A mãe compreendeu-me 
e veio comigo. Estamos sempre com receio de que 
alguém nos possa ver ou ouvir. Logo no primeiro dia 
fizemos cortinas. São simplesmente retalhos de diferentes 
formas e cores, ajuntados e cosidos pelo pai e por mim. 
Estas peças de luxo estão pregadas aos caixilhos das janelas 
com "punaises" e aí ficarão enquanto durar o nosso 
 "mergulho". 
 à direita da nossa habitação há uma grande casa 
comercial e à esquerda uma carpintaria. Nestes edifícios 
não fica ninguém depois das horas de trabalho, mas nunca 
se sabe ao certo se os nossos ruídos não chegam a ouvir-se. 
Por isso proibimos a Margot, que anda terrivelmente 
 constipada, de tossir de noite. Coitada da rapariga, 
 volta e meia obrigam-na a engolir codaína. Na terça-feira 
chegarão os van Daans. Estou contente. Será mais agradável assim e menos monótono. Esta 
calma enerva-me, principalmente 
de noite; muito gostava eu que algum dos nossos protectores 
também aqui dormisse. Aflige-me a ideia de não se 
poder sair daqui e tenho medo de que nos descubram 
e nos fuzilem. É isto que pesa sobre mim de um modo 
horrível. Durante o dia não nos podemos mexer à vontade. 
não podemos pisar o chão com força e temos quase de 
cochichar em vez de falar, pois lá em baixo, no armazém, 
não nos devem ouvir. Desculpa. Estão a chamar-me. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 1 de Agosto de 1942 
Querida Kitty : 
 Há um mês que não tenho feito caso de ti, mas nem 
todos os dias acontecem coisas novas. No dia 13 de Julho 
chegaram os van Daans. Só os esperávamos no dia 16., 
mas como justamente naqueles dias toda a gente andava 
muito agitada por os alemães convocarem de cada vez 
mais judeus, os van Daans preferiram partir da sua casa 
antes que fosse tarde de mais. Pela manhã, às nove e meia 
 -estávamos ainda a tomar o pequeno almoço - entrou o 
Peter van Daan, um rapazote de dezasseis anos, enfadonho, 
bastante tímido, que não promete vir a ser um companheiro interessante. Meia hora mais tarde apareceu o 
casal van Daan. Rimo-nos muito por a sra. van Daan 
trazer na chapeleira um vaso de noite. "Sem vaso de noite 
não posso viver", disse ela, e pôs a peça valiosa no seu 
lugar debaixo da cama. Ele, o sr. van Daan, não trazia 
váso, mas apareceu com uma mesinha de chá de dobrar, 
debaixo do braço. No primeiro dia estivemos sentados 
todos juntos, num ambiente simpático, e passados três 
dias, tínhamos a impressão de termos sido sempre uma 
 grande família. Os van Daans assistiram a muita coisa 
 em toda aquela semana que ainda passaram fora da toca, 
 e era disso que nos falavam. A nós interessava-nos muito, 
 em especial o que tinha sucedido à nossa casa e ao sr. 
 Goudsmit. 
 E o sr. van Daan contou : 
 -Segunda-feira, às nove horas da manhã, o sr. Gouds 
mit telefonou-me para ir ter com ele. Mostrou-me o papelinho que vocês tinham deixado ficar 
(para ele levar o 
 gato ao vizinho). Ele tinha um medo terrível de que a 
 polícia revistasse a casa e, por isso, limpámos um bocado 
a mesa. De repente descobri no calendário em cima da 
escrivaninha da sra. Frank um apontamento com uma 
direcção qualquer em Maastricht. Eu sabia este "desleixo" 
intencional, mas fingi-me admirado e assustado e pedi 
ao sr. Goudsmit para, com toda a urgência, queimar aquele 
malfadado papel. Ao mesmo tempo ia dizendo que não 
fazia a menor ideia da vossa intenção de desaparecer. 
De repente foi como se se fizesse luz no meu espírito. 
- Sr. Goudsmit -, disse, - agora estou a perceber o que 
quer dizer essa direcção. Há mais ou menos meio ano apareceu-nos no escritório um oficial 
alemão de alta patente, um amigo de infância do sr. Frank. Ora, esse oficial prometeu 
ao sr. van Daan ajudá-lo se ele, um dia, estivesse 
em perigo aqui. E esse oficial estava precisamente estacionado 
em Maastricht! Suponho que cumpriu a promessa 
e que levará os Franks à Bélgica e de lá para junto dos 
parentes deles na Suiça. Pode contar isso aos amigos 
que perguntem pelos Franks, mas não mencione Maastricht, 
por favor. 
 Depois fui-me embora. A história correu e até já me 
foi contada a mim próprio por várias vezes, segundo esta 
mesma versão. 
 Achámos a coisa deliciosa e rimo-nos ainda bastante da 
força de imaginação dalgumas pessoas! O sr. van Daan 
contou que uma família pensava ter-nos visto quando 
partimos de bicicleta de manhã cedo, todos juntos. Uma 
outra senhora sabia categòricamente que um automóvel 
militar nos foi buscar em plena noite. Tua Anne 
Sexta feira, 21 de Agosto de 1942 
Querida Kitty: 
 O nosso "esconderijo" é agora perfeito. O sr. Kraler 
teve a boa ideia de tapar a porta de entrada do anexo. 
A polícia anda a fazer muitas buscas às casas por causa 
das bicicletas escondidas. O sr. Vossen executou um plano: 
construir uma estante giratória que abre para o lado como 
uma porta. É claro que, para isso, o sr. Vossen teve de 
"entrar no segredo" e está a ser muito prestável. Agora, antes 
de descermos, temos de nos curvar e depois damos um saltinho 
porque o degrau desapareceu. 
 Ao cabo de três dias tínhamos todos a testa cheia de 
galos, porque como não tomávamos cautela e não estávamos 
habituados, batíamos quase sempre contra a portinha. 
Agora pregámos-lhe uma almofadinha de serrim. 
Vamos a ver se serve para alguma coisa. 
 Não leio muito. Tem-me esquecido quase tudo o que 
aprendi na escola. A nossa vida aqui é pouco variada. 
O sr. van Daan e eu pegamo-nos a cada passo. Ele, já se vê, 
acha a Margot muito mais engraçada do que eu. A mãe 
trata-me como se eu fosse um bebé, coisa que não suporto. 
O Peter também não tem piada. É aborrecido e mandrião. 
Passa a maior parte do dia estendido na cama, por vezes 
levanta-se, carpinteira um bocado e volta de novo a dormitar. 
Um autêntico palerma! 
 Está calor e nós preguiçamos na cadeira de lona, lá 
em cima, no sótão grande. 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 2 de Setembro de 1942 
Querida Kitty: 
 O sr. van Daan zangou-se com a mulher. Nunca vi 
tal coisa na minha vida. O meu pai e a minha mãe não 
eram capazes de gritar assim um com o outro. O motivo 
foi tão insignificante que nem vale a pena falar nele. 
Mas enfim, cada um é como é. Para o Peter não deve 
ser nada agradável assistir a zangas dessas. Mas ele, de 
resto, ninguém o toma a sério por ser tão preguiçoso 
e tão mimalho. Ontem estava todo aflito porque tinha a língua azul. Mas pouco depois já lhe tinha passado, e 
hoje anda com um cachecol grosso à volta do pescoço, 
diz que tem lumbago e dores nos pulmões, no coração 
e nos rins. Calcula, mais nada! Este jovem está-me a 
sair um belíssimo hipocondríaco! (É assim que se diz, 
não é?) 
 A minha mãe e a sra. van Daan não se dão lá muito 
bem, e realmente há razões bastantes para isso. Só um 
exemplo: a sra. van Daan só deixou ficar três lençóis no 
armário das roupas brancas, usado em comum por eles 
e por nós. Tinha ela a intenção simpática de poupar os 
lençóis dela e de usar os nossos. Há-de ficar muito espantada, 
quando descobrir que a mãe lhe seguiu o bom 
 exemplo... Madame também se enfurece toda quando pomos 
a uso a louça dela e não a nossa. Anda constantemente a 
ver se descobre o que foi feito da nossa porcelana e nem 
suspeita que esta se encontra tão perto dela, no sótão, 
atrás de vários materiais de reclame, onde está bem guardadinha 
e onde ficará "mergulhada" tanto tempo como 
nós. A pouca sorte persegue-nos. Ontem deixei cair um 
prato de sopa. 
 -Oh! - gritou ela, furiosa - toma cautela. É tudo que me resta!-Mas o sr. van Daan é agora a 
amabilidade 
em pessoa para comigo. 
 A mãe voltou a pregar-me um grande sermão, hoje 
pela manhã. Acho isto horrível. As nossas opiniões são 
demasiado diferentes. O pai tem mais compreensão, mesmo 
se às vezes fica zangado durante cinco minutos. 
 Na semana passada houve um incidente. O motivo 
foi um livro sobre mulheres e... o Peter. Ainda não te disse 
que a Margot e o Peter têm licença para ler quase todos os 
livros que o sr. Koophuis nos traz da biblioteca. Mas esse 
tal livro os "grandes" não lhos queriam dar. 
 claro está, a curiosidade do Peter ficou espicaçada. 
O que estaria escrito num livro proibido? Tirou-o, à 
sucapa, à sua mãe quando ela estava cá em baixo. Escondeu-se 
com a presa debaixo do telhado. Durante dois dias 
tudo correu bem. A mãe tinha dado fé, mas não o traiu. 
Mas depois o pai descobriu tudo. Zangou-se, tirou-lhe o 
livro e pensou que o assunto estava resolvido. Não contava 
com a curiosidade do filho que não achou a intenção 
do pai razoável e por isso não desistiu. Procurou, por todos 
os meios, apanhar o livro outra vez. A sra. van Daan, 
entretanto, tinha falado com minha mãe sobre o assunto. 
Minha mãe também achava que aquele livro não era 
próprio para a Margot, apesar de a deixar ler todos os 
outros livros.  -Entre a Margot e o Peter há uma grande diferença, 
sra. van Daan,-disse a mãe.-Em primeiro lugar, as raparigas 
 são quase sempre mais desenvolvidas do que os rapazes 
e depois a Margot já leu muitos livros, livros sérios e 
 notáveis, e, além disso, ela está mais avançada no que 
respeita ao raciocínio e à cultura. Não se esqueça de que ela 
tem o curso dos liceus quase completo. 
 Em princípio, a sra. van Daan concordava, embora 
não achasse necessário darem-se aos jovens os livros que, 
na realidade, eram destinados aos adultos. 
 O Peter aproveitou a ocasião para se apoderar do livro. 
Quando, à noite, toda a família se reuniu no escritório 
particular, para ouvir rádio, levou ele o seu tesouro para 
o sótão. às oito e meia devia voltar para baixo, mas o 
livro era tão palpitante que não reparou nas horas. Vinha 
precisamente a descer a escada do sótão com muita cautela quando o seu pai entrou no quarto. 
Podes imaginar 
o que se seguiu... Ouviu-se o estalar de uma bofetada 
retumbante. Um empurrão, o livro voou por cima da 
mesa e o Peter para o canto do quarto. O casal van Daan 
apareceu à mesa sem Peter, que foi obrigado a ficar em 
cima. Ninguém fez caso. Diziam que, de castigo, ia para 
a cama sem comer. Passámos à ordem do dia e comemos. 
De repente... um assobio penetrante... Ficámos como que 
petrificados e pálidos. Olhámos uns para os outros. Os 
talheres cairam-nos das mãos. Depois ouvimos a voz de 
Peter através do cano do fogão : 
 -Se pensam que desço, estão muito enganados. 
 O sr. van Daan deu um pulo da cadeira e gritou, 
vermelho como um tomate: 
 -Agora basta! 
 O pai, receando zaragata, agarrou-lhe no braço e 
subiram assim os dois. Depois de muita resistência e demasiado 
barulho, o Peter acabou por voltar ao seu quarto, 
onde ficou fechado à chave. A sua boa mãezinha quis 
guardar-lhe um pão com manteiga, mas o sr. papá mostrou-se 
inflexível. 
 -Se ele se não resolve a pedir desculpa imediatamente, 
irá dormir para o sótão! 
 Protestámos e dissemos que já era castigo suficiente 
ter o rapaz ficado sem jantar. E se o Peter se constipasse 
não havia possibilidade de ir buscar um médico. 
 O Peter não pediu desculpa e ficou no sótão. O sr. 
van Daan não lhe ligou importância, mas na manhã 
seguinte pôde verificar que o Peter, afinal, tinha dormido 
na sua cama. às sete horas, porém, o rapaz subiu, 
de novo, para o sótão e foi preciso o meu pai intervir com algumas palavrinhas conciliadoras para que ele descesse. 
Durante três dias tivemos caras carrancudas e um silêncio 
teimoso. Depois tudo regressou à velha ordem. 
Tua Anne 
Segunda-feira, 21 de Setembro de 1942 
Querida Kitty : 
 Hoje vou contar-te coisas miudinhas da nossa vida 
diária. A sra. van Daan é insuportável. A cada passo me 
censura por eu falar tanto. Não perde uma ocasião para 
nos irritar. Agora meteu-se-lhe em cabeça que não havia 
de lavar a louça! E se uma ou outra vez se digna fazê-lo, 
quando um resto de comida ficou na panela não o guarda 
num pratinho de vidro como nós fazemos, deixa-o ficar. 
Resultado: estraga-se e, além disso, a Margot que tem 
de lavar a louça na vez seguinte, tem o dobro do trabalho. 
E ainda por cima tem de ouvir da senhora : 
 - Coitadinha da Margot, tem tanto trabalho! 
 O pai e eu arranjámos agora um entretenimento engraçado. 
Estamos a elaborar uma árvore genealógica da família 
dele. Conta-me coisas de todos os parentes. Então sinto-me 
muito ligada à família. 
 De quinze em quinze dias, o sr. Koophuis traz da 
biblioteca alguns livros para raparigas. Gostei imenso da 
série - Joop-ter-Heul - e acho bonito tudo o que escreve 
Gissy von Marxveldt. Já li quatro vezes as Alegrias de 
Verão e rio-me sempre com a mesma vontade das 
 situações cómicas. 
 Também voltámos aos estudos : dedico-me muito ao 
francês e, só de verbos, meto todos os dias cinco dos irregulares na cabeça. Peter faz os 
exercícios de inglês 
 a suspirar. Recebemos livros escolares novos. Eu tinha trazido de casa um sortido de lápis, 
cadernos, etiquetas, borrachas de safar, etc. 
 Ouço muitas vezes a emissora de Orange. Ainda há 
pouco acabou de falar o príncipe Fernando. Contou que 
estão à espera de outro bebé... Aqui todos se admiram 
da minha afeição aos reis holandeses. Há dias falou-se 
dos meus estudos e que eu ainda tinha muito que aprender. 
Por consequência atirei-me mais ao trabalho. Não quero 
voltar, mais tarde, ao primeiro ano. Também veio à baila 
que eu não tinha lido nada ultimamente. A mãe está a ler - Heeren, Vrouwen, Knechten -. Mas 
este livro não mo 
querem deixar ler. Para o poder ler tenho de ficar, antes 
de mais nada, tão esperta e culta como a minha inteligente e talentosa irmã. Falou-se também sobre filosofia, 
psicologia e fisiologia (estas palavras tão complicadas 
fizeram-me ir ao dicionário), coisas de que nada sei. 
Oxalá no próximo ano já seja menos ignorante. 
 Verifiquei uma coisa desastrosa, é que para o Inverno 
só tenho um vestido de mangas compridas e três "gilets". 
O pai deu-me licença para fazer uma camisola de lã 
branca de carneiro. A lã já não está grande coisa, mas o 
principal é que seja quentinha. Muitas roupas nossas estão 
nas casas de outras pessoas, mas só depois da guerra 
 poderemos ir buscá-las, se ainda existir alguma coisa. 
 Estava eu, outro dia, a escrever precisamente sobre 
a sra. van Daan quando ela entrou. Imediatamente fechei 
o caderno. 
 -Então, Anne, deixas-me espreitar? 
 -Não, sra. van Daan! 
 -Só a última págína, está bem? 
 -Não, também não! 
 Ai! Que susto que passei. Era mesmo naquela página 
que se lhe faziam referências pouco lisonjeiras. 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 25 de Setembro de 1942 
 Querida Kitty: 
 Ontem - visitei - os van Daan, lá em cima, para tagarelar 
um bocadinho. De vez em quando tem graça. Comemos 
"bolachas de naftalina" (a lata das bolachas está no guarda-roupa, 
onde há bolinhas contra a traça) e tomámos 
limonada. 
 Falámos do Peter. Eu disse-lhes que ele, por vezes, 
se queria chegar de mais a mim e que isto não me agradava 
nada e que eu detestava tais demonstrações. Com modos 
paternais perguntaram-me se eu não queria, apesar de 
tudo, ser muito amiga do Peter, pois ele gostava de mim. 
 Pensei de mim para mim : ah!, meu Deus. Mas disse 
em voz alta: 
 -Oh, não!, de maneira nenhuma! 
 Peter é esquivo como todos os rapazes que não conviveram 
bastante com raparigas. 
 A "comissão do mergulho", formada pelos nossos protectores, 
é de facto engenhosa. Ouve o que os senhores 
inventaram! Querem fazer chegar notícias nossas ao 
sr. van Dijk, um amigo nosso e representante principal da 
firma "Travis". Aliás, ele tem também muitas coisas nossas guardadas em sua casa. Assim escreveram uma carta a 
um farmacêutico na Zelândia Meridional com o pedido 
de uma informação. Juntaram um envelope que este 
cliente utilizará para a resposta. Ora, o endereço da nossa 
casa comercial foi escrito à mão por meu pai. Quando a 
carta voltar, eles tirar-lhe-ão a resposta do farmacêutico, 
meterão uma carta escrita pelo pai e, assim, o sr. van Dijk 
terá um sinal de vida nosso. Escolheram a Zelândia, na 
fronteira belga, sítio onde se torna mais fácil fazer passar 
cartas assim. 
 Tua Anne. 
Domingo, 27 de Setembro de 1942 
Querida Kitty: 
 Outra zanga com a mãe. Não sei já quantas foram 
ùltimamente! A maior parte das vezes não nos entendemos. 
Também com a Margot já não tenho a mesma intimidade. 
Não que na nossa família se façam "cenas" como lá em cima, 
mas, mesmo assim, não acho graça nenhuma a isto. Tenho 
uma maneira de ser diferente da de minha mãe e de 
Margot. Sempre compreendi melhor as minhas amigas 
do que compreendo a minha própria mãe. É lamentável. 
 A sra. van Daan está outra vez de mau humor. fecha 
à chave a maior parte das suas coisas destinadas ao uso 
da casa. Eu gostava tanto que a mãe lhe pagasse na mesma 
moeda! 
 Há pais a quem parece dar prazer especial não só 
educar os seus próprios filhos mas, também, os filhos dos 
outros. A esta categoria pertencem os van Daan. a Margot 
já não precisa de ser educada, é o amor, a bondade e a 
Inteligência em pessoa. Mas o que ela tem a mais tenho 
eu a menos! A cada passo, durante as refeições, chovem 
recomendações sobre a minha pessoa e eu, de vez em 
quando, não posso deixar de dar uma das minhas respostas 
 atrevidas, malcriadas até por vezes. O paii e a mãe 
tomam sempre o meu partido e sem eles eu não me aguentava 
na luta. Muitas vezes, os dois repreendem-me, ou 
por eu falar de mais, ou por meter o nariz em tudo, ou 
por não ser bastante modesta, mas não há meio de me 
corrigir destes defeitos. Se o pai não fosse sempre tão 
paciente eu já não tinha esperanças de ser capaz de me 
emendar. E, vistas bem as coisas, os meus pais não exigem 
muito de mim. 
 Quando acontece eu servir-me de pouca hortaliça, porque gosto pouco, mas de muitas batatas, os van Daans 
ficam todos enfurecidos com tais "mimalhices". 
 -Mais um bocado de hortaliça-diz a senhora 
 imediatamente. 
 -Obrigada, só queria batatas-respondo eu. 
 -Hortaliça faz bem à saúde, a tua mãe também assim 
pensa. Vá, mais um bocadinho. 
 Insiste até que meu pai intervém e põe termo àquilo. 
 -Havias de ter visto como as coisas se passavam antigamente 
em minha casa.-diz irritada-Coisas destas não 
se admitiam. Isto não é educação! Estão a estragar a Anne. 
Ai, se fosse minha filha! 
 É com estas palavras que termina sempre os seus discursos. 
Ainda bem que não sou filha dela! 
 Ainda sobre educação. Ontem seguia-se um silêncio 
depois de a sra. van Daan ter acabado o seu sermão. Por 
fim meu pai disse : 
 -Acho a Anne uma rapariga bem-educada. Veja, ela 
já compreendeu que o melhor é não responder aos seus 
longos discursos. E no que respeita à hortaliça, só lhe digo 
a si: vice-versa! 
 Ela sentiu-se totalmente vencida. Com aquele "vice-versa" 
meu pai quis referir-se às pequenas porções que 
ela própria costuma comer. Para se justificar, ela disse que 
muita hortaliça à noite, como vai logo para a cama, lhe 
fazia mal à digestão. Mas o que eu queria era que ela me 
deixasse em paz! É divertido ver como a sra. van Daan 
cora por tudo e por nada. Eu não, e ela inveja-me por isso. 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 28 de Setembro de 1942 
Querida Kitty: 
 Ontem não tinha acabado a carta mas tive de a interromper. 
Vou contar-te mais outra zanga. Mas primeiro 
deixa-me dizer-te que acho horrível e inconcebível que os 
adultos se irritem e zanguem com tanta facilidade e por 
causa das mais insignificantes bagatelas. Até há pouco 
tempo eu julgava que só as crianças se zangavam e que isso 
mais tarde já não acontecia. Já se vê, por vezes existem 
motivos para grandes discussões. Mas eles ofendem-se uns 
aos outros constantemente, com palavras veladas e isto 
torna-se insuportável. Já me devia ter habituado porque 
é o mesmo quase todos os dias. Mas não posso ficar indiferente 
se as discussões (assim chamam àquilo, que é apenas "barulho") giram em volta da minha pessoa. Dizem 
de mim cobras e lagartos : a minha aparência, o meu 
carácter, as minhas maneiras, tudo é remexido, criticado 
e... condenado. Eu não estava habituada a ouvir palavras 
duras e gritos. E agora querem que engula tudo isso? 
Não, não posso! E não tenciono engolir tudo. Hei-de 
mostrar-lhes que a Anne não é tola. Ainda se hão-de 
admirar e calar o bico! Eles é que precisavam de ser 
educados, não eu. De cada vez fico mais espantada com 
tanta falta de correcção e tanta estupidez (a sra. van Daan!). 
Mas hei-de me habituar também a isto e qualquer dia 
ela há-de ouvir-me. Então serei de facto tão mal-educada, 
atrevida, teimosa, estúpida e preguiçosa como me querem 
fazer ver os de lá de cima. Bem sei que tenho muitos defeitos 
e fraquezas, mas os de cima exageram de uma maneira 
escandalosa. 
 Se tu soubesses Kitty como eu fervo cá por dentro quando oiço tantos insultos! Qualquer dia a 
minha raiva 
acumulada explode! 
 Se calhar estou a aborrecer-te, mas não posso deixar 
de te contar ainda uma conversa à mesa, que foi muito 
interessante e divertida. Estava-se a falar da grande modéstia 
do Pim (Pim é a alcunha do pai). É tão evidente nele 
a modéstia que até as pessoas mais broncas a notam. De 
repente a sra. van Daan, que relaciona tudo, mas mesmo 
tudo, consigo própria, disse : 
 -Eu também sou muito modesta, muito mais modesta 
do que o meu marido. 
 O sr. van Daan quis atenuar esta frase e disse com 
calma : 
 -Não quero ser muito modesto, porque creio que as 
pessoas vaidosas vão muito mais longe na vida. 
 E depois dirigiu-se a mim: 
 -Não sejas demasiado modesta, Anne, não te servirá 
de nada. 
 A mãe concordou, mas a Sra. van Daan teve que meter 
de novo o bedelho e agora, em vez de falar para mim, 
dirigiu-se aos meus pais : 
 -Vocês têm uma maneira estranha de dizer as coisas 
à Anne. No meu tempo de rapariga isso era impossível. 
Mas mesmo hoje não é assim que se educam os filhos, 
excepto em famílias modernas como a vossa. 
 Com isso ela quis atacar o método de educação de 
minha mãe, tantas vezes discutido. Estava vermelha como 
fogo. Quando uma pessoa ferve daquela maneira quase 
que já perdeu ojogo de antemão. A mãe, que estava muito 
calma, quis pôr termo à discussão e disse :  -Sra. van Daan, acho também melhor não se ser 
muito modesto. Meu marido, a Margot e o Peter são de 
facto modestos de mais, seu marido, a senhora, Anne e eu 
não somos precisamente vaidosos, mas não deixamos fazer 
o ninho atrás da orelha. 
 -Mas eu sou modesta, sra. Frank! Como se atreve a 
dizer o contrário? 
 A mãe : 
 -Não é precisamente vaidosa, sra. van Daan, mas 
acho que modesta também não é. 
 A sra. van Daan: 
- Então, já agora, gostava de saber quando é que 
não sou modesta. Se não cuidasse um bocado de mim, 
morreria provàvelmente de fome. Sou tão modesta como 
seu marido. 
 Este auto-elogio fez com que minha mãe desse uma 
gargalhada, o que irritou a "pobrezinha" de tal forma 
que continuou a falar e a falar sem conseguir acabar. 
Por fim atrapalhou-se de tal modo que perdeu o fio à 
meada e, toda ofendida, levantou-se para sair do quarto. 
Por acaso o seu olhar caiu sobre mim. Mal ela tinha virado 
as costas, eu pus-me a abanar a cabeça, de um modo 
meio piedoso, meio irónico, quase sem querer. Ela, ao 
ver-me assim, já não saiu e começou a berrar, numa 
linguagem feia e vulgar como uma velha e gorda peixeira. 
Aquilo é que era um espectáculo divertido! Se eu soubesse 
desenhar, tinha-a eternizado naquela atitude; que modelozinho 
tão ridículo! 
 Uma coisa te vou dizer: se quiseres conhecer bem uma 
pessoa, tens de te zangar uma vez com ela. Só então é 
que podes julgá-la. 
Tua Anne. 
Terça-feira, 28 de Setembro de 1942 
 Querida Kitty: 
 Há sempre qualquer coisa para contar nesta casa! 
Como não temos banheira, lavamo-nos numa celha. 
E como no escritório (quero dizer em todo o andar de 
baixo) há àgua quente, vamos os sete alternadamente para 
baixo. Mas somos muito diferentes uns dos outros, no que 
respeita ao pudor. Por isso, cada um, conforme a sua 
maneira de ser, escolheu um ou outro lugar para o acto 
de limpeza. Peter toma banho na cozinha, embora esta 
tenha uma porta de vidro. Antes de começar a lavar-se, 
avisa toda a gente e pede-nos que não passemos por aquela porta durante uma meia hora. 
 O sr. van Daan prefere tomar banho em cima. Acha 
que vale a pena carregar com a água quente, escada acima, 
para poder gozar as comodidades do seu quarto. A sra. van 
Daan, até hoje, ainda não tomou banho. Quer primeiro 
estudar qual o lugar mais conveniente para ela. O pai 
prefere o escritório particular e a mãe vai para detrás do 
resguardo do fogão, na cozinha. A Margot e eu escolhemos 
 o escritório grande, para podermos chapinhar à vontade. 
 Todos os sábados, de tarde, fechamos as cortinas e assim, 
 no lusco-fusco, lavamo-nos. A que fica à espera, observa, 
 através de uma fenda das cortinas, o que se vai passando 
 lá fora e diverte-se com o vaivém tão patusco das pessoas. 
 Mas de há uma semana para cá, já não me agrada aquele 
 quarto de banho e tenho andado à procura de um sítio 
 mais confortável. O Peter teve uma ideia boa: propôs 
que eu levasse as minhas coisas de banho para o grande 
W.C. que pertence ao escritório. Aí, eu podia estar sozinha, 
podia acender a luz, fechar a porta e, até, despejar a água 
sem auxílio de ninguém. Hoje inaugurei o meu novo quarto de banho. Estou satisfeita. 
 Ontem esteve o picheleiro no andar de baixo para 
deslocar os canos que ligam à canalização da nossa moradia. 
Isto tinha que ser feito. De outro modo podia, no Inverno, 
que talvez venha a ser rigoroso, gelar a água nos canos. 
Essa visita foi para nós tudo, menos agradável. Não só 
porque não se podia abrir uma torneira, mas também 
porque não nos podiamos servir do W.C. Talvez não seja 
lá muito elegante contar-te o que fizemos para remediar 
o mal. Mas não sou tão pudica que não possa falar em tais 
coisas. O pai e eu tínhamos tomado providências. Guardámos 
alguns frascos de conserva de que agora nos servimos. 
Forçosamente não podiam ser despejados e tinham de 
 ficar nos quartos. Mas achei isso menos repugnante do que 
 estar todo o dia quieta, sem poder falar. Tu não podes 
 imaginar quanto isto me custou a mim, que tanto gosto 
 de palrar. Vulgarmente já somos obrigados a falar muito 
 baixinho. Mas não falar mesmo nada e ficar sentada todo 
 o dia sem me mexer, acho que é dez vezes pior! Tinha o 
 rabo espalmado e nem o sentia; doeu-me durante três 
dias. Passámos então a fazer ginástica todas as noites, o 
que nos foi compondo. 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 1 de Outubro de 1942 
Querida Kitty:  Ontem apanhei um susto terrível. às oito tocou a 
campainha e eu já estava a imaginar o pior-já sabes o 
que quero dizer com isto. Mas todos disseram que aquilo 
deviam ter sido garotos, e eu acalmei. 
 Agora os dias passam num silêncio! Na cozinha do 
escritório trabalha um farmacêutico, o sr. Lewin, que está 
a fazer experiências para a firma. Conhece bem a casa 
toda, e andamos sempre com o receio de que lhe venha 
a ideia de entrar no laboratório antigo. Estamos muito 
quietos. Quem, há três meses, teria adivinhado que a Anne, 
sempre tão mexida, tinha de estar tanto tempo quieta 
numa cadeira, sem falar? 
 No dia 26, a sra. van Daan fez anos: não houve grande 
festa. Demos-lhe flores, umas prendinhas e um jantar 
melhorado. Já é velha tradição o marido oferecer-lhe 
cravos vermelhos. Falando da sra. van Daan, quero confessar-te 
uma coisa. As suas tentativas de "flirtar" com 
meu pai aborrecem-me do fundo do coração. Ela passa-lhe 
a mão sobre a cara e o cabelo e mostra-lhe com preferência 
as suas "lindas" pernas. Faz esforÇos para ser espirituosa 
e tenta, sempre que pode, chamar a atenção do Pim sobre 
ela. Pim não a acha bonita nem simpática e as seduções 
dela deixam-no de todo indiferente. Não sou ciumenta, 
palavra, mas aquilo custa-me a suportar. Já lhe disse a 
ela na cara que minha mãe não se porta assim com o 
sr. van Daan. 
 O Peter, por vezes, tem piada. Temos ambos a paixão 
das brincadeiras de Carnaval e divertimo-nos bastante 
com isso. Outro dia apareceu ele encafuado num vestido 
muito apertado de sua mãe, com um chapelinho na cabeça. 
Eu vesti o fato dele e pus a sua boina; os adultos quase 
que morriam de tanto rír e nós estivemos também 
 divertidíssimos. 
 Elli comprou no armazém saias para mim e para a 
Margot, de má qualidade e muito caras. E mais alguma 
coisa engraçada ela nos prometeu: vai tratar de nos arranjar 
lições de estenografia por correspondência. No ano 
que vem seremos estenógrafas perfeitas. Que bom a gente 
poder aprender esta espécie de "código" secreto. 
Tua Anne. 
Sábado, 3 de Outubro de 1942 
Querida Kitty:  Ontem houve aqui grande zaragata. A mãe contou 
todas as minhas travessuras ao pai, mas exagerou muito. 
Chorou. Também chorei, e já tinha andado todo o dia 
cheia de dores de cabeça. Eu então disse ao pai que gostava 
mais dele do que da mãe. O Pim disse que isso havia de 
passar, mas eu não acredito. Tenho de fazer grandes 
esforços para ficar calma quando falo com a mãe. O pai 
quer que a ajude, e lhe preste serviços quando ela se não 
sente bem, mas eu não quero. 
 Estudo muito francês e estou a ler La belle Nivernaise. 
Tua Anne. 
 Sexta-feira, 9 de Outubro de 1942 
Querida Kitty! 
 Hoje só te posso dar notícias tristes e deprimentes. 
Os nossos amigos e conhecidos judaicos são deportados 
em massa. A Gestapo trata-os sem a menor consideração. 
Em vagões de gado leva-os para yVesterbork, o campo 
para judeus. Westerbork deve ser um sítio horrível. Estão 
lá milhares de pessoas e nem há sequer lavatórios nem W.C. 
que, de longe, cheguem para todos. Conta-se que as pessoas 
 dormem em barracas, homens, mulheres e crianças, 
todos misturados. Não podem fugir: quase todos se podem 
identificar pelas cabeças rapadas ou então pelo seu tipo 
judaico. 
 Se já na Holanda as coisas se passam deste modo, como 
há-de ser então nos sítios longínquos para onde levam 
essa gente? A emissora inglesa fala de câmaras de gás. 
De qualquer forma talvez seja a câmara de gás a maneira 
mais rápida de se morrer... A Miep falou-nos de acontecimentos 
terríveis e está excitadíssima. Ainda há pouco 
encontrou, em frente da sua porta, uma velhinha manca. 
Estava à espera do automóvel da Gestapo que recolhe as 
pessoas umas após outras. A velha tremia de medo. Os 
canhões da defesa atroavam os ares. Os raios dos projectores 
cruzavam-se no céu, a trovoada dos aviões ingleses ecoava 
entre as casas. Mas a Miep não teve coragem de arrastar 
a mulherzinha para dentro da sua casa. Os alemães castigam 
 com dureza tais procedimentos. 
 Também a Elli está desanimada e triste. O seu noivo 
foi levado para trabalhar na Alemanha. Ela receia que o 
seu Dirk possa ser atingido quando há bombardeamentos. 
Os aviões ingleses despejam milhões de quilos de bombas. 
Piadinhas como: "Descansem, não lhes cairá em cima um milhão delas", ou "só uma bomba chega bem", acho-as 
grosseiras. O Dirk não foi o único que teve de partir. 
Todos os dias saem comboios de jovens, forçados a ir. 
Um ou outro consegue fugir pelo caminho ou "mergulhar", 
mas são tão poucos! A minha cantiga triste ainda não 
acabou. Já ouviste falar em reféns? Pois inventaram esta 
coisa requintada. Parece-me o pior de tudo o que inventaram. 
Gente inocente é presa. Se em qualquer parte se 
dá uma "sabotage" e os autores não se encontrarem, fuzilam 
simplesmente alguns dos reféns. Depois publicam a 
notícia no jornal. E lembrar-me que também já fui alemã! 
Hitler tirou-nos a nacionalidade há muito. Entre aquela 
espécie de alemães-os hitlerianos-e os judeus existe uma 
inimmizade como não pode haver mais forte em todo o 
Mundo! 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 16 de Outubro de 1942 
 Querida Kitty: 
 Tenho imenso que fazer. Traduzi um capítulo de La beLle 
,Nivernaise. Tirei todos os significados novos. Depois fiz um 
problema de matemática e ainda estudei três páginas de 
gramática. Não gosto nada dos problemas nem me apetece 
pegar-lhes. O pai também os acha complicados e, por 
vezes, resolvo-os melhor eu do que ele, mas, em boa verdade, 
nem ele nem eu sabemos muito disto e acabamos quase 
sempre por chamar a Margot para nos dar uma ajuda. 
Na estenografia sou eu quem vai à frente dos três. Ontem 
acabei de ler Os Salteadores. É um bom livro, mas não se 
pode comparar a ooter-Heul. continuo a dizer que acho 
a Gissy v. Marxveldt uma escritora brilhante. Os meus 
filhos hão-de ler os seus livros. O pai deu-me algumas 
peças de teatro de Krner: O primo de Bremen, A governanta, 
O dominó verde. Um bom escritor. 
 A mãe, a Margot e eu voltámos a ser amigas, o que 
não deixa de ser muito agradável. Ontem a Margot deitou-se 
ao meu lado na minha cama. Quase não havia 
lugar para as duas, mas não fazes ideia como foi bom. 
Ela perguntou-me se podia ler o meu diário. Eu disse: 
 -Algumas passagens podes. 
 Perguntei-lhe pelo diário dela. Disse que também mo 
dava a ler. Depois falámos sobre o futuro e perguntei-lhe 
o que ela queria ser. Mas não quis dizer, é um segredo. 
Ouvi vagamente dizer que quer ser professora e suponho que deve ser verdade. Acho que sou curiosa de mais. Hoje 
de manhã estendi-me sobre a cama do Peter depois de 
o ter expulsado de lá. Ficou furioso, mas não fiz caso. 
Acho que podia ser mais amável comigo, pois ainda ontem 
lhe dei uma maçã. 
 Ontem perguntei à Margot se me achava feia. Ela 
disse-me que eu tinha um ar patusco e os olhos muito 
bonitos. Uma resposta um bocado vaga, não te parece? 
 Até à próxima. 
 Tua Anne 
Terça-feira, 20 de Outubro de 1942 
Querida Kitty: 
 As minhas mãos ainda tremem com o susto que apanhámos, 
 embora isto já se tenha passado há duas horas. 
Temos em casa os aparelhos "Minimax" contra incêndios. 
Ninguém nos tinha dito que vinha gente enchê-los. E já 
se vê, nós não tínhamos tomado cuidados especiais. Nisto 
ouvi martelar do outro lado, no vestíbulo. Pensei que fosse 
o marceneiro. A Elli estava a almoçar connosco. Avisei-a 
para não descer. O pai e eu resolvemos ficar de guarda 
e escutar atrás da porta até o homem acabar o trabalho. 
Depois de ele ter martelado um quarto de hora, pôs a 
ferramenta em cima do armário (pelo menos foi o que 
supusemos) e bateu à nossa porta. Ficámos ambos pálidos. 
Teria ele dado por alguma coisa e queria agora decifrar 
o mistério? Com certeza, pois nunca mais acabava de 
bater, puxar, empurrar. Eu ia quase desmaiando ao 
 lembrar-me de que aquele estranho iria descobrir o nosso 
belo esconderijo e estava precisamente a pensar que decerto 
ia morrer dentro de pouco, quando ouvi a voz do sr. Koophuis : 
 -Por amor de Deus, abram a porta. Sou eu. 
 Imediatamente abrimos. O gancho com que se fecha 
a porta por dentro e de que os iniciados se servem também 
do outro lado, estava preso e, por isso, não tinha sido 
possível avisar-nos de que vinha o operário. O homem 
já descera e como o sr. Koophuis, que vinha buscar a 
Elli, não conseguia abrir a porta, pôs-se a fazer aquele 
barulho todo. Que grande alívio! Na minha imaginação 
eu tinha visto o homem prestes a entrar no nosso anexo 
e a crescer até parecer um gigante invencível. Enfim, 
tivemos sorte, pois tudo se passou sem mais novidade. 
A segunda-feira foi um dia divertido! A Miep e o Henk 
passaram cá a noite. A Margot e eu dormimos no quarto dos pais, e o jovem casal nas nossas camas. A comida 
estava um mimo. Mas não faltou também um pequeno 
incidente. Houve curto-circuito, causado pelo candeeiro 
do pai, e, de repente, ficámos às escuras. A caixa onde 
se encontram os fusíveis fica no fundo do armazém e 
não é brincadeira chegar lá sem luz. Mas conseguiu-se 
e, dentro de dez minutos, os estragos estavam reparados 
e apagámos a iluminação das velas. 
 Levantámo-nos cedo. O Henk tinha de se ir embora 
às oito e meia e queriamos tomar o pequeno almoço 
com ele e a Miep, sem pressas. Chovia a potes. A Miep 
desceu ao escritório, radiante por não precisar de fazer 
a caminhada do costume. O pai e eu fizemos as arrumações 
e depois comecei a meter verbos franceses na cabeça. 
Em seguida pus-me a ler Eternamente cantam as florestas, 
um belo livro. Vou quase no fim. 
 Para a semana a Elli vem cá dormir! 
Tua Anne 
Quinta-feira, 26 de Outubro de 1942 
Querida Kitty: 
 Estou aflita! O pai está doente. Tem muita temperatura 
e manchas vermelhas pelo corpo, como acontece quando 
se tem o sarampo. A mãe anda a tratá-lo e tem muito 
cuidado para que ele transpire muito, porque assim talvez 
a temperatura desça. 
 Hoje de manhã a Miep contou-nos que a casa dos 
van Daans foi toda despejada pelos alemães. Ainda não 
dissemos nada à sra. van Daan. Está muito nervosa ùltimamente 
e não temos empenho nenhum em ouvir-lhe falar outra vez, durante horas, do seu lindo serviço 
de porcelana e das mobílias valiosas que tinha em casa. 
Também nós tivemos de abandonar tantas coisas bonitas! 
E nada adiantamos com lamentações. 
 Já me deixam ler, de vez em quando, livros para adultos 
e agora estou a ler A juventude de Eva de Nico van 
Suchtelen. Não encontro grande diferença entre este livro 
e a literatura para raparigas. Bem sei que neste livro 
se fala de mulheres que vendem o corpo a homens estranhos 
para ganhar um ror de dinheiro. Eu morreria 
de vergonha! Também se conta que a Eva começou a 
ter o "incómodo". Gostava de começar a ter o "incómodo" 
É que isto dá-nos importância. 
 O pai foi buscar ao armário os dramas de Goethe e 
de Schiller. Vai lê-los agora todas as noites em voz alta. Começámos com Don Carlos. Para seguir o bom exemplo 
do pai, a mãe entregou-me o seu livro de rezas. Eu não 
quis ser indelicada e li umas páginas. Acho o livro bonito, 
mas aquilo não me diz nada. Porque é que a mãe quer 
que eu seja religiosa à força? 
 Amanhã acende-se o fogão pela primeira vez. calculo 
o fumo que vai fazer, porque há muito tempo que não se 
limpa a chaminé. 
Tua Anne. 
Sábado, 7 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 A mãe está muito nervosa e isto é para mim como que 
um perigoso escolho. Porque sou sempre eu quem paga as 
 favas. 
Por exemplo, ontem, à noite : A Margot estava a ler um 
livro com lindas ilustrações. Foi para cima e deixou ficar 
 o livro para quando voltasse. Comtinuá-lo-ia, então, a 
 lê-lo 
não tinha nada de especial a fazer, peguei no livro 
e pus-me a ver as gravuras. A Margot voltou, viu o "seu" livro 
nas minhas mãos e franziu a testa. Queria-o outra vez. Eu 
estava com vontade de o ver mais um bocadinho, mas a 
 Margot ficou zangada. Então a mãe disse : 
 -Era a Margot quem estava a ler áb á do quehse 
 Nesse momento entrou o pai. Nada se 
tinha passado, mas pensou logo que quem tinha razão 
era a Margot e disse para mim: 
 -Gostava de te ver, a ti, se a Margot folheasse um 
livro teu. 
 Cedi imediatamente e pousei o livro. Então disseram 
 que eu fiquei ofendida. Mas eu não me sentia ofendida 
 nem zangada, apenas estava triste, muito triste. 
 O pai foi injusto, não devia julgar o caso sem o conhecer. 
 Eu teria devolvido o livro à Margot, de livre vontade 
 e muito mais depressa, se os pais não se tivessem metido 
 no assunto e tomado logo partido por ela. Enfim, que a 
 mãe se ponha do lado da Margot, é coisa natural. Morrem 
 uma pela outra. Já estou tão habituada que não me importo 
 com as descomposturas da mãe nem com o mau génio da 
 Margot. Sou amiga delas porque uma é minha mãe e a 
 outra minha irmã. Mas com o pai a coisa é diferente. 
 Quando ele dá preferência à Margot, quando acha bem tudo o que ela faz e lhe dá mimos, então 
roo-me toda por dentro, pois o pai é tudo para mim! É o meu ideal, 
e amo-o como não amo a mais ninguém neste mundo. 
Bem sei que ele nem se apercebe de que trata a Margot 
de maneira diferente. Também não se pode negar que 
a Margot é mais inteligente, mais bonita e melhor. Mas 
não terei o direito de ser tomada a sério? Eles acham que 
eu sou o palhaço da família e sofro duplamente por apanhar 
tantos raspanetes e por ainda não conseguir compreender-me 
bem a mim própria. Os carinhos superficiais já 
não me satisfazem, nem sequer as tais conversas chamadas 
sérias. Espero do pai alguma coisa mais, que ele decerto 
me poderá dar. Não que tenha inveja da Margot. 
Não cubiço a sua inteligência nem a sua beleza. O que 
eu queria era o amor do pai, não só como sua filha, mas 
como Anne, o ente humano que sou. 
 Agarro-me ao pai por ser ele o único que me faz conservar 
o sentimento da família. Mas ele não compreende 
que eu, por vezes, tenha necessidade de abrir-me, de 
falar sobre a mãe. O pai não quer falar dos defeitos da 
mãe e esquiva-se propositadamente a qualquer conversa 
sobre o assunto. E, no entanto, a maneira de ser da mãe 
pesa-me no coração. Por vezes não consigo dominar-me, 
e faço-lhe ver o seu desprezo, ironia e dureza. Pois, decerto, 
a culpa não será sempre minha, não é verdade? 
 Sou em tudo o contrário da mãe e, por isso, é inevitável 
que nos choquemos. Não estou a criticar o seu carácter, 
pois isso não me compete. Vejo-a apenas como minha mãe. 
E ela não é para mim a mãe que idealizei. Parece que tenho 
de ser eu própria a minha mãe. Desprendi-me deles, 
sigo o meu próprio caminho. Quem sabe aonde chegarei 
um dia? Na minha imaginação vejo o ideal de mulher 
e de mãe, mas naquela a que tenho de dar o nome de 
mãe nada disso encontro. 
 Proponho-me constantemente não reparar nos seus 
defeitos, ver sòmente as suas qualidades e desenvolver 
em mim o que nela procuro. Mas não é fácil, e o pior é 
que nem o pai nem a mãe querem ver o que me falta 
e é isto que lhes tomo a mal. Será possível que haja pais 
capazes de contentarem inteiramente os filhos? 
 Por vezes penso que Deus quer pôr-me à prova. Tenho 
de me aperfeiçoar sòzinha, sem exemplo e sem ajuda, só 
assim hei-de ser um dia forte e resistente. 
 Quem, além de mim, lerá estas coisas? Quem pode 
ajudar-me? Necessito de ajuda e de consolo! Sou muitas 
vezes fraca e incapaz de ser aquilo que gostava de ser. 
Sei-o e tento todos os dias, de novo, melhorar-me. 
 Nem sempre me tratam da mesma maneira. Um dia pertenço à classe dos adultos e posso saber tudo, e no dia 
seguinte a Anne não passou de um ser inexperiente que 
julga ter aprendido alguma coisa nos livros mas que, na 
realidade, não sabe coisa de jeito. Ora eu não sou um 
bebé nem uma boneca para os divertir. Tenho os meus 
ideais, o meu modo de pensar e os meus planos, embora 
ainda me falte a capacidade de traduzir tudo isto em palavras. 
Ai! tantas, tantas dúvidas que se me levantam quando 
estou só, à noite, ou mesmo durante o dia quando estou 
encerrada com toda esta gente quejá não posso ver à minha 
frente e de que estou farta até não poder mais. Eles nada 
compreendem dos meus problemas. Assim, volto sempre 
ao meu diário. É ele o meu princípio e o meu fim. A ti, 
Kitty, nunca te falta a paciência e prometo-te que hei-de 
aguentar. Hei-de vencer a minha dor e seguir o meu 
caminho. Só gostava de ter, de vez em quando, um pouco 
de sucesso, de ser estimulada e encorajada, por alguém 
que me tivesse amor! 
 Não me condenes! Por favor, compreende que, às 
vezes, não posso mais! 
 Tua Anne. 
Segunda-feira, 9 de Novembro de 1942 
Querida Kitty : 
 Ontem o pai fez anos. Teve prendas bonitas, entre outras 
um aparelho para fazer a barba e um isqueiro, não porque 
fume muito, mas por ser chique. 
 Foi o sr. van Daan que lhe fez a maior surpresa: deu-lhe 
a notícia de que os ingleses desembarcaram na Tunísia, 
em Casablanca, na Algéria e em Orão. 
 -É o princípio do fim-disseram todos. 
 Mas Churchill, o Primeiro-Ministro da Inglaterra que, 
decerto sabe mais disso, declarou num discurso: 
 - Este desembarque é uma fase importante, mas 
ninguém deve convencer-se que ele significa o princípio 
do fim. Eu, talvez gostasse antes de dizer que significa o 
fim do princípio. 
 Compreendes a diferença? Mas, mesmo assim, há 
motivos para sermos optimistas. Estalinegrado, a grande 
cidade russa, que os alemães já estão a cercar há três 
meses, ainda não se rendeu. 
 Voltaremos agora aos assuntos quotidianos : quero 
descrever-te como nós, cá no anexo, nos abastecemos de 
géneros. Antes de mais nada tenho de dizer-te que os "de cima" são uns gulosos terríveis. O pão é-nos fornecido 
por um padeiro simpático que o sr. Koophuis conhece 
muito bem. Não podemos receber tanto como antigamente 
em nossa casa, mas é o suficiente. Os talões de 
aLimentação compram-se clandestinamente. Estão cada 
vez mais caros. Primeiro pagávamos por eles vinte e sete 
florins e agora já custam trinta e três. Imagina, um simples 
pedacinho de papel! 
 Para termos, além das conservas, alimentos em casa 
 que não se estraguem, comprámos 35 quilos de legumes 
secos que pendurámos em sacos no corredor, atrás da 
porta giratória. Mas com o peso as costuras rompem-se e, 
por isso, resolvemos levar todas essas reservas de Inverno 
para o sótão. Confiámos ao Peter a tarefa de carregar 
com os sacos. Ele já tinha levado cinco para o sítio e 
estava prestes a carregar com o sexto quando rebentou 
a costura inferior. Uma chuva, não, uma saraivada de 
feijão vermelho desabou sobre a escada. Os outros, lá 
em baixo (felizmente não havia estranhos no prédio), 
 julgavam que a casa ia ruir. O Peter apanhou um susto, 
 mas quando me viu a mim, ao pé da escada, coberta de 
 feijões que se iam amontoando no chão até acima dos 
tornozelos, desatou numa grande gargalhada. Depressa começámos 
a apanhar os feijões com desembaraço, mas estes são tão 
pequenos e escorregadios que nos passavam pelos dedos 
e desapareciam em todos os buracos e buraquinhos. Agora, 
sempre que alguém sobe a escada, encontra um ou outro 
feijão que entrega lá em cima à sra. van Daan. 
 Quase me ia esquecendo do mais importante: o pai já 
está completamente bem! 
 Tua Anne. 
 P. S. Na rádio acabam de anunciar que a Algéria 
caiu. Marrocos, Casablanca e Orão também estão nas 
mãos dos ingleses. Agora não deve tardar a queda da 
Tunísia. 
Terça-feira, 10 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 Uma novidade sensacional! Vamos meter mais um 
"mergulhador". Já tinhamos dito muitas vezes que ainda 
havia lugar e comida para mais uma pessoa. Só o que não 
queríamos era dar tanto incómodo ao Kraler e ao Koophuis. 
Mas como as notícias sobre as medonhas perseguições 
aos judeus se tornam de dia para dia piores, o pai resolveu sondar as possibilidades : 
 Resultado : Os dois senhores ficaram logo de acordo 
com a ideia. "O perigo é o mesmo para sete ou para oito", 
disseram e com razão. 
 O problema a resolver em seguida era saber qual das 
pessoas isoladas das nossas relações ligava melhor com a 
nossa "família mergulhada". Não foi difícil a escolha. 
Depois de o pai ter rejeitado todas as propostas do sr. van 
Daan para se receber uma pessoa da sua família, optou-se 
por um dentista bastante conhecido,. de nome Albert 
Dussel, que tem a mulher no estrangeiro. Tem fama de 
pessoa agradável e tanto nós como os van Daan simpatizamos 
com ele. Como a Miep também o conhece bem, 
pode tratar de tudo. Se ele aceitar tem de dormir no meu 
quarto no lugar da Margot que dormirá na cama-sofá, 
no quarto dos pais. 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 12 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 O Dussel ficou muito contente quando a Miep lhe 
falou de um bom esconderijo. Ela aconselhou-o a vir o 
mais depressa possível, de preferência depois de amanhã. 
Mas ele hesitou porque ainda precisava de pôr as fichas 
em ordem, acabar o tratamento de dois clientes e pôr 
as contas em dia. Foi o que a Miep nos contou hoje de 
manhã. Não achámos nada bem aquilo, pois qualquer 
demora pode ser prejudicial. Tais preparativos podem 
exigir, da parte do Dussel, explicações a pessoas que não 
queríamos que desconfiassem de nada. Pedimos à Miep 
que o aconselhasse a vir no sábado. Ele disse que não, 
que vinha na segunda-feira. É ridículo. Devia ter aproveitado 
logo. Se o prenderem na rua, também não pode 
pôr em dia a caixa ou acabar o tratamento dos clientes. 
Quanto a mim, acho que o pai não devia ter cedido. De 
resto, nada de novo. 
 Tua Anne. 
Terça-feira, 17 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 O Dussel chegou. Tudo correu bem. A Miep tinha-lhe dito que esperasse em frente do correio geral. Pontualmente 
lá apareceu. Então o sr. Koophuis, que o conhece, 
foi ter com ele. Disse-lhe que o senhor com quem se queria 
encontrar vinha um bocado mais tarde e que ele, Dussel, 
esperasse antes junto da Miep, no escritório. Koophuis 
meteu-se num carro eléctrico, enquanto o Dussel seguia 
a pé. Chegou ao escritório às onze e meia. A Miep fez-lhe 
tirar o sobretudo para que ninguém visse a estrela amarela 
e depois pediu-lhe que esperasse no escritório particular 
do sr. Koophuis. 
 Queria ela que a mulher das limpezas se fosse primeiro 
embora. Mas, claro, o Dussel de nada sabia. Depois a 
Miep levou-o para o andar de cima. Disse-lhe que não 
podia estar mais tempo naquele escritório porque, daí 
a um bocado, os chefes tinham uma reunião. O espanto 
do homem foi grande quando viu a porta giratória abrir. 
Ambos entraram. 
 Nós estávamos todos lá em cima, com os van Daan, 
para receber o nosso companheiro com café e conhaque. 
Entretanto a Miep fê-lo entrar na nossa sala de estar. 
Ele reconheceu logo a mobília, mas, mesmo assim, não suspeitou 
que estivéssemos tão próximos. Quando a Miep 
lhe disse ficou de boca aberta, e ela nem lhe deu tempo 
de a fechar: fê-lo subir imediatamente a escada. 
 O Dussel deixou-se cair numa cadeira, cravou os olhos 
em cada um de nós e não quis acreditar no que viu. 
Depois começou a balbuciar: 
 - Mas... não... mas então, não estão na Bélgica? 
O tal oficial não os veio buscar? E o automóvel? Não 
foram bem sucedidos na fuga?... 
 Explicámos-lhe que nós próprios tínhamos feito constar 
a história do oficial para despistar as pessoas, em especial 
os alemães, que podiam andar à nossa procura. O 
 Dussel ficou varado com tanto engenho e mais varado ainda 
ficou quando se meteu a esquadrinhar todo o nosso esconderijo 
tão bem imaginado e tão bem montado. Comemos 
todos juntos. Depois ele deitou-se um bocado, tomou 
o chá connosco e pôs nos devidos lugares as suas coisas, 
que tinham trazido antes de ele chegar. Depressa se sentiu 
como em sua casa, sobretudo depois de lhe terem 
sido entregues os regulamentos do anexo (o plano foi 
feito pelo sr. van Daan). 
Prospecto e guia do anexo 
 Fundação criada propositadamente para a estadia 
provisória de judeus e outros que tais. Aberta todo o ano 
 Belamente localizada, calma, com arredores sem florestas 
no coração de Amesterdão. Acessível pelas linhas 
19 e 17; de automóvel ou bicicleta; e a pé para aqueles 
a quem os alemães proibiram o uso de qualquer veículo. 
 Renda Gratuita. 
 Cozinha de dieta sem gorduras 
 Água corrente 
 No quarto de banho (sem banheira) e, infelizmente, 
também em várias paredes. 
EspaÇo largo reservado a bens de toda a espécie. 
 Central de rádio, com emissões directas de Londres, 
New-York, TelAviv e muitas outras estações. O aparelho 
está à disposição dos habitantes das seis horas da tarde 
em diante. 
Horas de repouso: Das dez horas da noite às sete e trinta da manhã. Domingo até às dez horas. 
Atendendo a certas circunstâncias, também se intercalam outras horas de repouso, conforme 
indicações da Direcção. Estas indicações devem ser 
rigorosamente seguidas, no interesse da segurança comum!!! 
Até novas ordens não há. 
em surdina! 
Todos os dias. 
 Uma lição de estenografia por semana. Inglês, Francês 
e Matemática a qualquer hora do dia. 
 Pequeno almoço todos os dias, com excepção de domingos 
e feriados, pontualmente às nove horas. 
 Almoço: da 1 e 15 à 1 e 45. Jantar: frio ou quente, não 
tem horas fixas devido às notícias da rádio. 
A "Celha" está à disposição dos habitantes todos os 
domingos desde as nove horas. Pode tomar-se banho no 
W.C., na cozinha, no escritório particular ou no outro 
escritório, conforme o gosto de cada um. 
Bebidas alcoólicas fortes Só permitidas por ordem médica. 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 19 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 Não estamos desapontados. O Dussel é de facto um 
homem simpático. Para dizer com franqueza, não acho 
lá muito agradável que um estranho se sirva das minhas 
coisas no quarto, mas, para fazer uma boa acção, toda a 
gente se deve sacrificar. Nada importa se pudermos salvar 
alguém, diz o pai, e tem toda a razão. 
 Logo no primeiro dia o Dussel perguntou-me uma série de coisas, por exemplo, quais eram as horas da mulher 
da limpeza, e quais as do W. C. e onde me parecia a mim 
o melhor sítio para se tomar banho. Não te rias, Kitty, 
mas no esconderijo todas estas coisas são importantes. 
Estão tantas vezes pessoas lá em baixo que não conhecem 
o segredo! É necessário saber bem as horas de trabalho 
delas para não fazermos barulho. Já expliquei tudo isto 
ao Dussel, mas fiquei pasmada por ele ser tão lento. 
 Pergunta as coisas duas vezes e mesmo assim não as fixa. 
Talvez ainda esteja um pouco atrapalhado, a surpresa 
foi muito grande, e é natural que ele se tenha de adaptar. 
 O Dussel tem-nos contado muitas coisas do mundo 
exterior, de onde partimos há tanto tempo. Tudo que 
conta é triste. Inúmeros amigos e conhecidos foram levados 
das suas casas e um destino terrível os espera. Noite após 
noite os automóveis cinzentos e verdes dos militares 
 atravessam as ruas a toda a velocidade. Os "verdes (a SS 
alemã) e os "pretos" (a Polícia Nazi holandesa) procuram 
os judeus. Se encontram algum, levam-no, e a toda a 
família. Tocam, por exemplo, numa porta e se não encontram 
lá nenhum judeu, tocam na do vizinho e assim por 
diante. Por vezes, andam com listas de nomes e procuram 
os "marcados" sistematicamente. Só consegue escapar-lhes 
quem "consegue fugir" a tempo. Por vezes aceitam um 
resgate, mas são poucos os que conseguem escapar. 
 Fazem, hoje, o que há muitos anos foi feito com os 
 escravos. Maltratados, torturados, mortos enfim. O que 
aconteceu com eles, nos tempos antigos, está hoje a 
 acontecer com os judeus. 
 Não poupam ninguém, homens, mulheres, velhos, crianças. 
E nós aqui tão bem guardados! Podiamos fechar os olhos a toda 
esta miséria, mas estamos sempre 
em aflição por aqueles que nos são caros e a quem não 
podemos dar uma ajuda. 
 Quando estou deitada na minha cama, cama tão quente 
e confortável, enquanto as mais queridas amigas sofrem 
lá fora, talvez expostas ao vento e à chuva, mortas até, 
sinto-me quase má. Tenho medo ao pensar em todas as 
pessoas às quais tanta coisa me liga e ao lembrar-me de que 
estão entregues aos mais cruéis carrascos que a história 
dos homens já conheceu. E tudo isto só por serem judeus! 
Tua Anne. 
Sexta-feira, 20 de Novembro de 1942 
Querida Kitty:  Estamos todos um pouco desconcertados. Até agora 
só recebíamos de longe em longe notícias sobre os judeus. 
E daí, talvez fosse melhor assim. Quando a Miep por vezes 
falava do destino trágico de pessoas nossas conhecidas, a 
mãe e a sra. van Daan punham-se logo a chorar, de modo 
que ela achou melhor não contar mais nada. Mas fizemos 
muitas perguntas ao Dussel e o que ele conta é medonho, 
é bárbaro. Não se consegue pensar em outra coisa. Será 
possível que alguma vez mais possamos sair e divertir-nos 
como outrora, mesmo quando tudo isto tiver passado? 
Mas a verdade é que se transformarmos o nosso esconderijo 
numa casa de luto, se ficarmos sempre melancólicos, não 
adiantamos nada, nem para nós nem para os que lá fora 
sofrem. Não posso fazer coisa nenhuma sem pensar naquela 
gente que partiu. Se dou comigo a rir despreocupadamente, 
assusto-mA e acho-me injusta por estar alegre. Mas hei-de 
chorar todo o dia? Não, não posso. E o desânimo decerto 
passará. Allém destas misérias, há outra coisa desagradável, 
assunto pessoal e que, já se vê, nenhuma importância tem 
comparado às tragédias de que acabo de falar: quero dizer 
que me irrito tão só ùltimamente! Sinto um vácuo enorme 
dentro de mim. Antigamente não pensava muito nisto. 
Os divertimentos e as amizades prendiam-me o tempo. 
Mas agora preocupam-me problemas sérios. Reconheci, 
por exemplo, isto: o pai, embora me seja tão querido, não 
pode substituir todo o meu mundo de outrora. 
 Achas-me ingrata, Kitty? Por vezes tenho a impressão 
de não poder suportar mais: ouvir todas estas coisas 
 horríveis, ter as minhas próprias dificuldades e ainda por 
cima ser o bode expiatório para tantas coisas que acontecem! 
Tua Anne. 
Sábado, 28 de Novembro de 1942 
Querida Kitty: 
 Gastamos electricidade de mais, ultrapassamos os limites. 
Temos de fazer economia, caso contrário cortam-nos a 
corrente e estaremos quinze dias sem luz. Das quatro e 
meia em diante não podemos ler mais. Matamos então o 
tempo com várias distracções : adivinhas, ginástica, falar 
inglês ou francês ou sobre os livros que acabamos de ler... 
Com o tempo tudo se torna monótono. Descobri uma coisa 
nova: com o binóculo posso espreitar para os quartos 
iluminados dos vizinhos da frente. Durante o dia não podemos abrir as cortinas nem um centímetro, mas à 
noite já pode ser. Eu antes nunca sabia que os vizinhos 
são pessoas tão interessantes. Observei alguns enquanto 
comiam; numa outra família passavam um filme e o dentista, 
mesmo em frente, estava a tratar uma velhinha 
cheia de medo. 
 A propósito de dentista! O sr. Dussel, de quem se dizia 
saber lidar tão bem com crianças e gostar muito delas, 
revela-se um bota de elástico. A cada passo faz sermões 
sobre boas maneiras e bom comportamento. Como sabes, 
tenho a pouca sorte de partilhar o quarto com este senhor 
tão "respeitável" e, como sou tida como a mais mal-educada 
dos três jovens daqui, ele dá-me que fazer e por vezes 
nem sei como escapar a tantas descomposturas e avisos. 
Olha, faço-me surda! Mas tudo isto ainda se suportava 
se o homem não fosse um "denunciante" de grande categoria 
e se não tivesse escolhido precisamente a mãe para as suas 
reclamações. Assim, recebo primeiro uma ensaboadela dele, 
depois a mãe junta outra e, se estou com sorte, a sra. van 
Daan também mete o bedelho para me censurar. 
 Ai! Kitty, não é fácil ser-se a pessoa mais mal-educada ou antes: o pára-raios de uma família 
"mergulhada" 
sempre a criticar e a educar! à noite, na cama, quando 
passo em revista todos os meus pecados e todos os defeitos 
que me são atribuídos, perco-me nessa abundância de 
queixas e, quase sempre, começo a chorar... ou a rir, 
conforme a disposição. Depois adormeço com a ideia tola 
de querer ser diferente do que sou ou de que não sou como 
queria ser e de que faço tudo ao contrário. Queria agir 
de outra maneira e não ser como sou. Santo Deus! Agora 
estou a baralhar tudo, não te zangues! Mas não risco o 
que está escrito e rasgar a folha também não posso, porque 
há grande falta de papel. Seria mesmo pecado! Assim 
só te posso aconselhar a não voltares a ler a última frase 
nem tentares aprofundá-la, que és capaz de não conseguir 
voltar à superfície! 
Tua Anne 
Segunda-feira, 7 de Dezembro de 1942 
Querida Kitty : 
 Chanuca e São Nicolau coincidem quase este ano. 
O Chanuca festejámo-lo apenas com as velas, mas como 
estas são agora uma preciosidade só as acendemos durante 
dez minutos. As velas acesas e nós a cantarmos a canção de Chanuca! O sr. van Daan construiu um lindo candelabro. 
O São Nicolau, no sábado, ainda foi mais lindo. 
A Elli e a Miep vinham para cima cochichar com o pai 
e, assim, andávamos todos muito curiosos, pois compreendíamos 
que estavam a preparar alguma surpresa. E, de 
facto, às oito horas descemos a escada, através do corredor 
escuro (arrepiei-me toda; tinha medo de não voltar inteirinha), para o escritório, no outro andar. 
É um quarto 
sem janelas e, assim, podíamos acender a luz. O pai abriu 
o armário e todos exclamaram: "Que lindo!" No centro 
estava um grande cesto, enfeitado com papéis coloridos, 
e guarnecido simbòlicamente com a máscara do Pedro, 
o negro. Transportámos o cesto para cima. Cada um 
recebeu as suas prendas acompanhadas de uma quadra. 
Tenho a certeza de que conheces bem esse género de 
poemas e, por isso, não os vou aqui transcrever. Recebemos: 
eu um "Pieferkuchen" enorme, em forma de 
boneca; o pai, suportes para livros; a mãe, um calendário; 
a sra. van Daan, uma bolsa para o pano do pó; o sr. van 
Daan um cinzeiro... Todos os presentes tinham sido bem imaginados e, como festejávamos o S. 
Nicolau pela primeira 
vez, achámos a nossa estreia bem sucedida. 
 Também demos prendas aos nossos amigos lá de baixo, 
coisas que tínhamos ainda dos velhos tempos. Disseram-nos 
hoje que o sr. Vossen fez com as próprias mãos o cinzeiro 
para o sr. van Daan e os suportes para o pai. Acho admirável 
alguém fazer coisas tão bonitas. 
Tua Anne 
Quinta-feira, 10 de Dezembro de 1942 
Querida Kitty: 
 O sr. van Daan negociava, noutros tempos, em carnes 
frias, salsichas, chouriços e outras especialidades. A firma 
contratou-o por ser um comerciante muito hábil e experiente. E agora ficámos maravilhados aqui 
com a sua 
perícia de salsicheiro. 
 Encomendámos, no mercado negro, já se vê, carne 
para fazer conservas para os tempos difíceis. É engraçado 
ver a carne passar pela máquina, duas ou três vezes. 
Depois juntam-se os temperos, mistura-se tudo bem e, 
por fim, enchem-se as tripas com aquela massa. Comemos 
ao almoço chucrute com salsicha fresca! Os chouriços 
defumados têm de secar bem e, por isso, enfiámo-los numa 
vara suspensa do tecto. Sempre que alguém entra no quarto e vê os chouriços a bambolear não pode deixar de rir. 
É uma exposição patusca. 
 Havia uma tremenda desordem no quarto. O sr. van 
Daan (com um avental da esposa), todo gorducho, mais 
gorducho ainda do que de costume, tratava da carne. 
Parecia mesmo um carniceiro com as mãos cheias de 
sangue, a cara afogueada e o avental sujo. A sra. van Daan 
quer fazer mil coisas ao mesmo tempo: estudar holandês 
por um livro, remexer a sopa, examinar a carne com que 
o marido trabalha e ainda ter tempo para se queixar da 
sua costela partida. 
 Bem feito! Quem é que manda as senhoras entradotas 
e vaidosas fazer ginástica tola, só porque não querem ter 
um traseiro gordo? 
 O Dussel tinha um olho inflamado e estava junto do 
fogão a fazer compressas. O pai, sentado na cadeira, procurava 
aproveitar os magros raios do Sol. Julgo que tenha dores de reumatismo, estava todo encolhido e 
seguia com 
olhos infelizes o trabalho do sr. van Daan. O Peter andava 
a correr pelo quarto atrás do gato, que se chama Mouchi. 
A mãe, a Margot e eu descascávamos batatas. Fazíamo-lo 
automàticamente, porque estávamos a contemplar, fascinadas, 
a actividade do sr. van Daan. 
 O Dussel inaugurou o consultório de dentista. Vais-te 
divertir ao saber da primeira consulta. A miep estava a 
passar a ferro enquanto a sra. van Daan fez de primeira 
cliente. Estava sentada numa cadeira, no meio do quarto, 
enquanto o Dussel tirava cerimoniosamente todos os 
seus instrumentos. Pediu água-de-colónia para desinfectar 
e vaselina para substituir a cera. Depois olhou para dentro 
da boca da sra. van Daan. Tocou-lhe num dent molar, 
escabichou-o a seguir com um ferrinho, o que a fazia 
estremecer e gemer sem nexo, como se estivesse a morrer 
de dores. Depois de um exame sem fIm - pelo menos na 
opinião da doente, pois na realidade só tinham passado dois 
minutos - o Dussel queria começar a chumbar um dente. 
Mas isso sim! A sra. van Daan defendeu-se com braços e 
pernas, de tal maneira que o Dussel teve de largar o gancho 
com que estava a limpar o buraquinho. O gancho lá 
ficou espetado no dente. Havias de ver! A senhora 
agitava-se para um lado e para o outro, tentava tirar o gancho 
mas só conseguia enterrá-lo ainda mais. O Dussel não se 
 comovia. De mãos nos bolsos observava o espectáculo. 
 E nós, os outros espectadores, a rir. Não o devíamos 
 ter feito. Fomos velhacos! com certeza eu também me 
 teria portado assim e teria gritado quanto pudesse. 
 Depois de muito esforço, suspiros e gemidos, a sra. van Daan tirou o ferro, e o Dussel retomou o seu trabalho como se nada tivesse acontecido. Tão depressa 
manejou os instrumentos, que 
a senhora não teve tempo para mais brincadeiras. Mas 
suponho que ele nunca teve na sua consullta ajudantes 
tão prestáveis. O sr. van Daan e eu éramos os assistentes 
e agora imagino tudo aquilo como um quadro da Idade 
Média: "charlatães a trabalhar". Por fim a paciência da 
senhora esgotou-se. Disse que tinha aora de olhar pela 
comida. Uma coisa é certa: tão cedo não voltará ao 
 dentista. 
 Tua Anne 
Querida Kitty : 
 Sentada confortàvelmente à janela do escritório grande, 
estou a observar, através de meia fenda da cortina, o que 
se passa lá fora. Anoitece, mas ainda consigo ver o bastante 
para te escrever. 
 É curioso ver as pessoas a correr! Parece que estão com 
pressa, quase que tropeçam nos seus próprios pés. Os 
ciclistas passam numa velocidade tal que não consigo 
distinguir as mulheres dos honens. 
 Este quarteirão é de gente do povo e a maioria tem 
aparência pobre. As crianças andam tão sujas que eu só 
me atrevia a tocar-lhes com tenazes. São autênticos garotinhos 
e falam um dialecto que quase não se compreende. 
 Ontem, quando a Margot e eu estávamos aqui a tomar 
banho, ocorreu-me uma ideia: se pudéssemos pescar 
algumas daquelas crianças, pela janela e com um anzol, 
dar-lhes um banho, vesti-las e dar-lhes depois novamente 
a liberdade... 
 -Amanhã estariam sujas na mesma-interrompeu-me 
a Margot. 
 Há mais coisas para ver: automóveis, barcos e a chuva. 
Oiço o ruído do carro eléctrico e ponho-me a imaginar as 
mais variadas coisas. Como nós aqui não temos estímulos, 
os nossos pensamentos também pouco variam. Dos judeus 
passa-se à comida, da comida à política, da política... mas 
já que falo de judeus: ontem, ao espreitar pela cortina, vi 
dois judeus. É uma sensação estranha, quase como se eu 
os traísse e estivesse aqui para espionar a sua infelicidade. 
 Precisamente em frente desta casa há um barco habitado 
por um pescador com a família. Eles têm um cãozinho 
que já conhecemos pelo ladrar e cujo rabo se vê quando 
ele corre ao longo da borda do barco. 
 Agora chove a cântaros e as pessoas escondem-se debaixo dos guarda-chuvas. Só vejo impermeáveis e por vezes também um capuz. 
 Mas não preciso de ver mais, porque já as conheço 
bem, àquelas mulheres metidas nos seus casacos vermelhos 
ou verdes, com os tacões tortos, uma bolsa gasta debaixo 
do braço, os corpos inchados por comerem batatas de mais 
e outras coisas de menos. Uma traz a infelicidade estampada 
no rosto, outra parece feliz, mas isto decerto depende 
do bom ou do mau humor dos seus maridos. 
Tua Anne. 
Querida Kitty: 
 Com grande satisfação, soubemos no anexo que cada 
um de nós terá para o Natal meio quarto de manteiga, fora 
a do racionamento. Oficialmente recebe-se um meio quilo, 
mas isto é para os mortais felizes que vivem lá fora, na 
liberdade. Gente "mergulhada como nós que, com oito 
cartões de racionamento, só pode comprar as mercadorias 
para quatro pessoas, já fica radiante com tão pouco! 
Cada um de nós quer fazer doces com a sua manteiga. 
Eu farei bolachas e duas tortas. Temos muito que fazer 
e a mãe disse que não me deixava ler nem estudar enquanto 
não tivesse acabado as minhas obrigações domésticas. 
 A sra. van Daan está na cama,por causa da costela 
partida: lamenta-se todo o dia, temos de a atender e de 
lhe mudar as compressas, mas ela nunca está satisfeita. 
Só queria que já estivesse outra vez a pé e tratasse sòzinha 
das suas coisas. Mas tenho de lhe fazer justiça: ela é muito 
trabalhadeira e quando se sente bem, moral e fisicamente, 
chega a ser mesmo uma pessoa divertida. 
 Todo o santo dia advertiram-me com os "chut-chut", 
pois, pelos vistos, sou demasiadamente barulhenta, e, como 
se ainda não bastasse, o meu companheiro de quarto 
resolveu lançar-me também, durante a noite, os "chut-chut". 
Nem sequer admite que me vire na cama. Faço 
de conta que não dou por nada, mas qualquer dia hei-de 
retribuir-lhe uns "chuts". Aliás, aos domingos, ele dá-me 
cabo da paciência. Acende a luz muito de madrugada 
para fazer ginástica. Aquilo parece-me que dura horas e 
 como ele está sempre distraído, dá constantemente contra 
as cadeiras que servem para prolongar a minha cama. 
Por fim acordo mesmo de todo. Mas como ainda não 
tenho dormido bastante, queria adormecer de novo. 
Depois de ter percorrido os caminhos da força e da beleza", ele começa a fazer a toillete! As 
cuecas estão penduradas 
num gancho. Portanto vai até lá e volta. Mas, já se vê, esqueceu-se da gravata em cima da mesa. Lá vai ele para 
lá, para cá, esbarrando com as cadeiras. E pronto! 
 Acabou-se o meu descanso dos domingos! 
 Mas valerá a pena a gente queixar-se de homens 
velhos e esquisitos? Por vezes dá-me na gana pregar-lhe 
uma partida: fechar a luz, desaparafusar a lâmpada e 
esconder-lhe as roupas. Mas não o faço, por amor da 
santa paz. 
 Ai! Como estou a ficar ajuizada. Aqui é preciso ter-se 
juízo a cada passo: para não responder, para cumprir as 
ordens, para ser sempre amável, prestável, transigente e 
sabe Deus o que mais! Estou a abusar do meu juízo que, 
já por si, não vai longe, e receio que não me sobre nenhum 
para depois, para quando a guerra acabar. 
Tua Anne. 
Quarta-feira, 13 de Janeiro de 1943 
Querida Kitty: 
 Hoje estamos todos perturbados, não conseguimos fazer 
nada com calma. As notícias lá de fora são horríveis. Dia 
e noite arrastam a pobre gente das suas casas. Só deixam 
levar o que cabe na mochila e algum dinheiro (mas este 
tiram-lho mais tarde). Separam as pessoas em três grupos, 
homens, mulheres e crianças. É vulgar voltarem as crianças 
da escola e já não encontrarem os pais, ou voltarem as 
mulheres das compras e darem com a casa selada. O resto 
da família já foi deportada. 
 Nos círculos cristãos também já reina o desassossego. 
Os jovens são enviados para a Alemanha. Toda a gente 
tem medo! 
 E durante as noites, centenas de aviões sobrevoam a 
Holanda, para lançarem uma chuva de bombas na Alemanha. 
A cada hora tombam homens na Rússia e na 
África. A Terra enlouqueceu, há destruição por toda a 
parte. A situação melhorou para os Aliados, mas o fim 
de tudo isto ainda está longe. 
 Nós aqui estamos bem, melhor de que milhares de 
outras pessoas. Estamos em segurança e podemos fazer 
planos para os tempos do pós-guerra. Podemos pensar 
nos vestidos e nos livros que havemos de comprar em vez 
de estarmos sempre preocupados com cada tostão que 
se gasta inùtilmente e que podia servir para ajudar os 
outros, ou com aquelas coisas que se perderam e talvez 
ainda se pudessem salvar.  Há crianças, cá no quarteirão, que andam de blusinhas 
leves, de socos e sem meias, sem sobretudos, sem 
boinas ou luvas. Têm o estômago vazio, mastigam cenouras, 
fogem das casas frias para as ruas húmidas e ventosas, e estudam em escolas sem aquecimento. 
Mais: as crianças 
pedem pão às pessoas que passam! Chegaram até este 
ponto as coisas na Holanda! Ouço falar durante horas a 
fio sobre a miséria que esta guerra trouxe e fico cada 
vez mais triste. Não temos outro remédio senão esperar, 
calma e serenamente, o fim de tanta infelicidade. Esperam 
os judeus, esperam os cristãos. Esperam os povos de todo 
o Mundo... mas muitos esperam pela morte! 
Tua Anne. 
Domingo, 30 de Janeiro de 1943 
Querida Kitty: 
 Estou com uma raiva que nem podes fazer ideia. Mas 
 não a posso dar a conhecer a ninguém. Gostava de bater 
 com os pés, gritar, sacudir a mãe e não sei o que mais. 
 E isto por causa das palavras zangadas, dos olhares irónicos, 
das acusações que contra mim são lançadas todos os 
dias, como setas de um arco muito esticado. Gostava de 
gritar-lhes, à mãe, à Margot, ao Dussel e aos van Daans: 
Deixem-me em paz! Então não me deixam passar uma 
única noite sem molhar o travesseiro de lágrimas? Não 
posso adormecer uma única vez sem que os meus olhos 
ardam e a cabeça me pese centenas de quilos? Deixem-me! 
Queria-me ir embora, embora deste Mundo! 
Mas para que serviria? Eles nada sabem do meu desespero! 
Nada sabem das feridas que me fazem! Já não suporto 
por mais tempo a compaixão e a ironia deles. Só queria 
mas era chorar! 
 Acham-me exagerada quando abro a boca, ridícula 
quando me calo, malcriada quando dou uma resposta, 
manhosa quando tenho uma boa ideia, preguiçosa quando 
estou com sono, egoísta quando me sirvo mais um tudo 
nada, estúpida, covarde, interesseira, etc., etc... Todo 
o dia tenho de ouvir que sou uma criatura insuportável, 
e podes crer: embora me ria ou finja não ligar importância, 
nada daquilo me é, em boa verdade, indiferente. 
 Bem eu queria pedir a Deus uma outra natureza que 
não irritasse tanto os outros. Mas é impossível. E, de resto, 
se sou assim, sinto, no entanto, que não sou má. Faço 
muito mais esforços para lhes agradar a todos do que eles imaginam. Rio-me com eles só para não lhes mostrar a 
minha dor íntima. Mais de uma vez, quando discutia com a mãe e ela era injusta para comigo, 
bradava-lhe: "tanto se me dá como se me deu, do que estás para aí a dizer. O melhor é não te 
preocupares mais comigo, sou um caso perdido". 
 Dizem que sou malcriada e não "fazem caso de mim 
durante dois dias". E de repente tudo me é perdoado e 
esquecido. Mas eu é que não posso ser um dia muito simpática 
e carinhosa com alguém, para o odiar logo no dia 
seguinte. Prefiro não me aproximar dos extremos, guardar 
os meus pensamentos e fazer os possíveis para tratar as 
pessoas com o mesmo desdém com que me tratam a mim. 
Ai! se eu fosse capaz disso! 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 5 de Fevereiro de 1943 
Querida Kitty: 
 Há bastante tempo que não te tenho falado das nossas 
 encrencas mas não penses que alguma coisa se tenha 
modificado. Ao princípio o sr. Dussel incomodava-se bastante 
com as várias discussões que ouvia. Depois acostumou-se 
e agora já faz tentativas para servir de medianeiro. 
 A Margot e o Peter nem parecem jovens de verdade, 
são ambos monótonos e calmos. Claro, eu faço um grande 
contraste com eles e, por isso, ouço continuamente : 
 -Olha a Margot e o Peter, eles eram incapazes de 
fazer tais coisas! 
 Que maçada! E, já agora, vou confessar-te uma coisa : 
não quero de maneira nenhuma ficar como a Margot. 
A meu ver é demasiado transigente e insípida, deixa-se 
influenciar por toda a gente, cede sempre. Então não 
há-de a gente ter a sua opinião! Mas estas teorias não as 
confio a mais ninguém. Não quero que se riam de mim. 
 à mesa reina muitas vezes uma atmosfera pesada que só 
se alivia quando um ou outro hóspede come em nossa 
casa-falo das pessoas do escritório, que vêm comer um 
prato de sopa connosco. 
 Hoje, ao almoço, o sr. van Daan verificou mais uma 
vez que a Margot não come o suficiente. "Se calhar por 
causa da linha", rematou, em tom irónico, o seu discurso. 
A mãe que tira sempre as castanhas do lume para a Margot 
disse muito alto : 
 -Estou farta do seu palavriado! 
 A sra. van Daan ficou vermelha como um pimento e 
ele pôs-se a olhar para o chão, embaraçado.  Muitas vezes rimo-nos uns com os outros. Há pouco, a sra. van Daan contou coisas engraçadas 
dos vários "flirts" 
que teve e como se entendia bem com o seu pai. 
 "Se algum homem ousar ser atrevido para contigo 
deves dizer-lhe: "Meu senhor, sou uma senhora". Ele 
desistirá logo", aconselhava-lhe o pai. 
 Rimo-nos como se nos tivesse contado uma anedota 
formidável. 
 O Peter, geralmente muito calado, diverte-nos de vez 
em quando. Tem o fraco das palavras estrangeiras cujo 
significado raras vezes conhece e o resultado é uma linda 
baralhada. Certo dia, quando no escritório particular 
havia visitas e não nos era permitido utilizar o W.C., 
Peter sentiu uma necessidade terrível. Foi mesmo lá, mas 
não puxou o autoclismo. Queria avisar-nos disto e colou na 
porta do W..C. um papel com as palavras : "Sívelil vous 
plait, cheirete!". O que ele queria dizer era: "Cautela, 
cheirete!". Achou a expressão "sívelil vous plait" muito distinta 
e não fazia ideia nenhuma de que ela se traduz 
por "faz o favor". 
 Tua Anne 
Sábado, 27 de Fevereiro de 1943 
Querida Kitty: 
 Esperamos a invasão de um dia para outro. Churchill 
teve uma pneumonia, mas já está quase bom. Gandhi, o 
libertador da Índia, já fez, não sei quantas vezes, a greve 
da fome. 
 A sra. van Daan disse ser fatalista. Mas sabes quem 
tem mais medo quando caem as bombas? Claro que é 
ela, a D. Petronella! 
 O Henk trouxe-nos a pastoral dos bispos que foi lida 
em todas as igrejas. É grandiosa e incita as pessoas: Não 
vos caleis, holandeses! Cada um tem que lutar com as suas 
armas pela liberdade do povo, pela pátria e pela religião! 
Ajudai, não hesiteis!-Foi assim que falaram. Servirá para 
alguma coisa? Aos nossos correligionários com certeza 
não serve para nada. 
 Imagina o que aconteceu. O senhorio, sem avisar o sr. 
Koophuis ou o sr. Kraler, vendeu a casa. Uma manhã 
apareceu o novo proprietário com um arquitecto. 
 Queriam ver a casa. Graças a 
 Deus o sr. Koophuis estava presente e mostrou tudo 
 aos senhores, menos o anexo. Disse-lhes que deixara as chaves da porta em casa. Os 
senhores não insistiram. Oxalá não voltem para o anexo. 
Seria a nossa desgraça. 
 O pai deu-nos um ficheiro com fichas novas. Serve-nos, 
a mim e a Margot, para os livros que já lemos. Registámo-los 
não só pelo autor e título mas também com as 
 nossas observações. Para as palavras estrangeiras e os 
 ditos arranjei um caderno especial. 
 Ultimamente dou-me melhor com a mãe. Mas nunca 
seremos verdadeiras confidentes uma da outra. A Margot 
está mais impertinente do que nunca, e o pai está muito preocupado com qualquer coisa. Mas ele 
é e será o melhor de todos! 
 Novas rações de manteiga e de margarina. Cada um 
recebe a sua parte do dia num pratinho. Parece-me que 
a distribuição quando está ao cargo dos van Daans não 
corre lá com grande honestidade, mas os meus pais estão 
fartos de zangas e, por isso, calam-se. É pena. A meu 
ver, devíamos pagar-lhes na mesma moeda. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 20 de Março de 1943 
Querida Kitty: 
 Ontem à noite houve um curto-circuito. E ainda por 
cima o barulho infernal dos canhões da defesa. Não sou 
capaz de me habituar às bombas e aos aviões. Tenho 
medo e quase sempre fujo para a cama do pai. Se calhar 
achas-me muito criança, mas só queria que assistisses! 
Não ouvimos as nossas próprias palavras, tanto é o barulho 
dos canhões. A sra. van Daan, a fatalista, estava quase a 
chorar e disse, toda enfiada : 
 -Acho um horror dispararem tanto. 
 Não queria isto dizer : tenho muito medo!? De dia a 
coisa não me aflige tanto. Gritei como se tivesse febre 
e supliquei ao pai que acendesse a vela. Mas ele não 
se comoveu e continuámos às escuras. Então começou 
o ruido das metralhadoras, que acho pior ainda do que 
o dos canhões. A mãe saltou fora da cama e, com desgosto 
do pai, acendeu a vela. Ao seu protesto respondeu resolutamente : 
 -Mas a Anne não é um velho soldado como tu! 
 E acabou-se! Já te falei dos ataques da sra. van Daan? 
Tens que saber tudo o que se passa no anexo. Certo dia 
ela ouviu passos pesados no sótão. Pensou que eram ladrões. 
Ficou tão cheia de medo que acordou o marido. No mesmo 
instante o ruido terminou, o sr. van Daan só conseguiu ouvir bater o coração da fatalista. 
 Ai! Putti: (é como ela chama o sr. van Daan) se calhar 
 roubaram os chouriços e os feijões. E que terão feito ao 
 Peter? 
 -Não roubaram o Peter, não te aflijas! E deixa-me 
dormir. 
 Mas isso sim! 
Como ela não conseguia adormecer, também o não 
 deixava a ele. 
 Algumas noites depois, a família van Daan acordou 
 com um barulho esquisito. O Peter subiu para o sótão 
 com a sua lâmpada de mão e quando a acendeu viu 
 fugir um bando de ratazanas. Agora sabíamos quem eram 
 os ladrões, e pusemos o Mouchi a dormir no sótão. Os 
. hóspedes indesejáveis, pelo menos durante a noite, não 
 voltaram mais. Mas há poucos dias o Peter teve de ir ao 
 sótão (eram sete e meia e ainda dia) para buscar alguns 
 jornais velhos. Ao descer a gente tem de agarrar-se à saída. 
 Ao pousar a mão ia caindo pela escada abaixo. Uma 
 ratazana mordeu-o no braço. Quando chegou cá em 
 baixo-e de que maneira!-tinha o pijama cheio de sangue, 
 estava branco como cal e mal se aguentava nas pernas. 
 Não admira, pois ser-se mordido por uma ratazana sem 
 contar é horrível, e ainda por cima uma mordedura 
 daquelas... Chega a ser infívelame! 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 12 de Março de 1943 
Querida Kitty: 
 Posso apresentar-ta: a mamã Frank, defensora da juventude, 
reclama manteiga suplementar para a gente nova. 
Luta pelos problemas dos jovens modernos. Luta pela 
Margot, por mim e pelo Peter, e depois de grandes discussões 
consegue sempre o que pretende. 
 Estragou-se um frasco de língua de conserva. Resultado: 
Jantar de gala para o Mouchi e o Bochi. É verdade, tu 
ainda não conheces o Bochi. Dizem que já estava no 
imóvel antes de chegarmos nós, os "mergulhadores". Agora 
é o gato do armazém e do escritório e afasta os ratos. 
O seu nome político explica-se fàcilmente. Antes, a casa 
tinha dois gatos : um para o armazém, outro para o sótão. 
Quando os dois se encontravam havia sempre luta. Infalivelmente 
o do armazém é que começava, mas o do sótão 
é que vencia. E, por isso, foram baptizados : o do armazém era o alemão ou o Bochi, o do sótão, o inglês ou o Tommy. 
O Tommy desapareceu e o Bochi é a nossa distracção 
quando vamos para baixo. 
 Comemos tantas vezes feijão branco que já não posso 
vê-lo à minha frente e fico enjoada só de pensar nele. 
Ao jantar já não temos pão. 
 O pai acaba de dizer que está preocupado com vários 
assuntos. Tem olhos tristes, o pobre! 
 Ando maluca com o livro De Ylop op de Deur, de Ina 
Boudier-Bakker. É o romance de uma família, extraordinário 
nas descrições. As passagens que tratam da guerra, 
dos problemas da mulher, dos escritores, não os acho 
tão bem; com toda a franqueza, são assuntos que me 
interessam pouco. 
Bombardeamentos sobre a Alemanha. O sr. van Daan 
anda de mau génio por não haver cigarros. 
 O problema de se havíamos de comer já ou não os 
legumes de conserva resolveu-se a nosso favor. Além das 
minhas botas de ski, já não me servem nenhuns sapatos 
e as botas são bastante incómodas em casa. Umas sandálias 
de palha entrançada duraram uma semana, e acabou-se. 
 Pode ser que a Miep encontre qualquer coisa no 
mercado negro. Agora tenho de cortar o cabelo ao Pim. 
Disse ele que, mesmo depois da guerra não pode voltar 
ao cabeleireiro, por eu o servir tão bem, embora eu 
o corte tantas vezes na orelha! 
 Tua Anne 
Quinta-feira 18 de Março de 1943 
 Querida Kitty: 
 A Turquia entrou na guerra... Estamos impacientes pelas notícias da rádio. 
 É mesmo assim que a rádio transmite este repugnante 
teatro de marionetas. Dá quase a ideia de que os soldados 
têm orgulho das suas feridas: mais e melhor: 
 Um deles a quem o Führer consentiu em apertar a 
mão-caso ainda tivesse alguma-nem conseguiu falar. 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 19 de Março de 1943 
Querida Kitty: 
 à alegria seguiu-se uma decepção muito maior. Afinal a Turquia ainda não entrou na guerra. O Ministro do 
Exterior só apelou no seu discurso para que cessasse a 
neutralidade. O vendedor dos jornais no "Pan" tinha 
gritado : 
 "A Turquia está do lado dos ingleses". 
 Assim nasceu o boato e chegou até nós. 
 As notas de 500 e 1000 florins vão deixar de ter valor. 
Os negociantes do mercado "negro" e os possuidores de 
dinheiro "negro" vão-se ver em maus lençóis, mas o problema 
é também grave para as pessoas "mergulhadas". 
Quando se quer trocar uma nota de mil florins é-se obrigado 
a declarar e a provar donde ela vem. Para já, mas 
só até ao fim da próxima semana, ainda estas notas podem 
ser utilizadas para pagamento dos impostos. 
 O Dussel recebeu a sua broca de mão e, em breve, 
vai examinar os meus dentes. 
 O "Führer" de todos os germânicos falou perante os 
seus soldados feridos e depois "conversou" ainda com eles. 
Que tristeza ouvir aquilo! Um exemplo: 
 -Meu nome é Heinrich Scheppel! 
 -Onde ficou ferido? 
 -Diante de Estalinegrado. 
 -Que feridas tem? 
 -Perdi os dois pés por causa do frio e fracturei o 
pulso esquerdo! 
Tua Anne. 
Quinta-feira, 25 de Março de 1943 
Querida Kitty: 
 A mãe, o pai, a Margot e eu estávamos ontem muito 
bem dispostos quando entrou o Peter e segredou qualquer 
coisa ao pai. Ouço: "Entornou-se um barril no armazém" 
e "alguém tentou abrir a porta". 
 A Margot também ouviu, mas fez os possíveis para 
me acalmar, pois eu estava branca como a cal quando o 
pai saiu do quarto com o Peter. Ficámos os três à espera, 
mas dois minutos depois apareceu a sra. van Daan que 
tinha estado no escritório particular a ouvir rádio. O pai 
pedira-lhe que fechasse o rádio e que saísse sem fazer 
ruído. Mas quando a gente quer ter muita cautela, ainda 
é pior. E ela disse que os degraus da velha escada tinham 
rangido medonhamente debaixo dos seus pés. Mais cinco 
minutos... O pai e o Peter voltaram, ambos pálidos até 
à raiz dos cabelos. Contaram-nos o que se passava: sentados, lá em baixo, puseram-se à escuta, mas primeiro, não 
ouviram nada. Depois, de repente ouviram duas pancadas 
fortes como se alguém tivesse batido com as portas. De um 
pulo o Pim correu escada acima, o Peter foi buscar o Dussel 
que, antes de mais nada, arrumou as suas coisas. Então 
subimos todos, em meias, para cima. O sr. van Daan 
está constipado e, por isso, já se tinha deitado. Juntamo-nos 
todos em volta da sua cama e contamos, em voz 
baixa, as nossas suspeitas. Quando o sr. van Daan tossia 
alto, a sra. van Daan e eu quase desmáiavamos de susto, 
até que enfim alguém teve a ideia luminosa de lhe dar 
codeína. A tosse acalmou imediatamente. 
 Esperámos... Como não ouvimos mais nada, calculámos 
que os ladrões tinham fugido ao ouvir, de repente, 
passos numa casa tão calma. 
 Lembrámo-nos de que, por mal dos nossos pecados, o 
rádio ainda estava sintonizado para a emissora inglesa e 
que as cadeiras estavam desarrumadas. Assim, qualquer 
pessoa perceberia imediatamente que, pouco tempo antes, 
tinha estado gente naquele quarto. No caso de os ladrões 
terem arrombado a porta e os da defesa antiaérea darem 
por ela, a polícia seria avisada e as consequências podiam 
ser muito sérias. 
 O sr. van Daan levantou-se, vestiu o casaco, pôs o 
chapéu e desceu cautelosamente com o pai. O Peter ia 
atrás, levando um martelo para o que desse e viesse. 
As senhoras, a Margot e eu esperámos com grande ânsia. 
Cinco minutos mais tarde os senhores voltaram para nos 
dizer que estava tudo em ordem. Combinámos não abrir 
as torneiras e não puxar o autoclismo no W. C. Mas como 
o susto provocou o mesmo efeito em todos nós, podes imaginar 
o cheirete num certo sítio... 
 Quando acontece uma coisa má vem outra logo a 
seguir. Foi o que aconteceu. Primeiro: o sino da Westertorenjá 
não toca. Achava-o tão bonito e calmante! Segundo: 
sabíamos que o sr. Vossen tinha saído mais cedo na noite 
anterior, mas o que não sabíamos era se a Elli, depois, 
tinha levado as chaves ou se, porventura, se esqueceu de 
fechar a porta. Estávamos todos um tanto inquietos, embora 
não se ouvisse o menor ruído desde as oito horas-e já 
eram onze. Depois de estarmos menos excitados parecia-nos-pensando 
agora com calma-quase inconcebível 
que algum ladrão tivesse arrombado a porta numa hora 
em que ainda anda tanta gente na rua. A um de nós 
ocorreu a ideia de que um contramestre da casa vizinha 
tivesse estado a trabalhar. Como as paredes são pouco 
espessas, é fácil confundir o som dos ruídos, especialmente quando se está aflito, e a imaginação também toma um 
papel importante nesses momentos espinhosos. E assim 
fomo-nos deitar, mas ninguém conseguiu dormir bem. 
O pai, a mãe e o Dussel estiveram toda a noite sobressaltados 
e eu, sem exagero, não preguei olho... 
 Hoje de manhã os senhores desceram para ver se a porta de entrada estava ainda fechada. Tudo 
parecia estar 
 em ordem. Contámos os acontecimentos tão aflitivos, com 
 todos os pormenores, aos nossos protectores, que 
 troçaram de nós, mas depois de as coisas se terem 
 passado é fácil rir! Só a Elli é que nos tomou a sério. 
: Tua Anne. 
Sábado, 27 de Março de 1943 
Querida Kitty: 
 O curso de estenografia terminou. Estamos agora a 
treinar-nos em velocidade e havemos de conseguir chegar 
ao máximo. Vou contar-te coisas do meu "trabalho-de-matar-o-tempo" 
(esta designação inventei-a eu, porque, 
ao fim e ao cabo, tudo aqui se faz para preencher o tempo 
até ao dia em que já não precisarmos de estar aqui). Estou 
entusiasmadíssima com a mitologia e o que mais me 
interessa são as lendas dos Deuses gregos e romanos. "São 
entusiasmos passageiros" dizem aqui, porque nunca 
 ouviram dizer que uma adolescente se tivesse dedicado 
 à mitologia. Mas eu posso bem ser a primeira! 
 O sr. van Daan está constipado ou antes : arranha-lhe um 
bocado a garganta e ele faz disto um grande acontecimento : 
gargareja, toma chá de marcela, pincela a garganta com 
tintura de mirra, põe pomada no nariz, no pescoço, no 
céu da boca e na língua. E, além disso... tem mau génio. 
 Rauter, um dos alemães mais importantes nesta terra, 
fez um discurso: todos os judeus têm de desaparecer, 
até 1 de Julho, dos países germânicos. Far-se-á a limpeza 
(como se se tratasse de baratas!) na província de Utrecht 
do primeiro de Abril até ao primeiro de Maio, na Holanda 
do Norte; e do Sul do primeiro de Maio até ao primeiro 
de Junho. Como a um rebanho de pessoas doentes e inúteis, 
levam a pobre gente ao matadouro. Mas não quero falar-te 
mais nisto. Os meus próprios pensamentos 
 provocam-me pesadelos. Também há novidades boas : a repartição de trabalho foi sabotada, 
incendiada e, alguns dias mais tarde, aconteceu o mesmo à repartição da população. Homens 
metidos em uniformes da policia alemã subjugaram os guardas e depois fizeram desaparecer 
ficheiros importantes, de maneira que as convocações e as buscas tornam-se agora 
bem mais difíceis. 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 1 de Abril de 1943 
Querida Kitty: 
 Não há disposição para graças (repara na data)! Aqui 
justifica-se o provérbio: "Uma desgraça não vem só". 
Primeiro : o nosso protector, sr. Koophuis, que nos anima 
sempre, teve ontem uma forte hemorragia do estômago 
e tem de estar três semanas de cama. Segundo: a Elli 
está com gripe. Terceiro: para a semana o sr. Vossen dá 
entrada no hospital. Parece que tem uma úlcera e que 
o vão operar. 
 Tinham sido feitos planos para uma importante reunião 
de negócios. O pai tinha tratado tudo com o sr. Koophuis. 
Agora não há tempo para dar instruções ao Kraler e o pai 
treme só de pensar no decorrer da reunião. 
 -Se eu pudesse estar presente! - disse. - Se eu pudesse 
estar lá em baixo! 
 -Porque não te deitas no chão?-aconselhámo-lo.-Os 
senhores negoceiam no escritório particular. Com certeza 
podes ouvir tudo. 
 A cara do pai iluminou-se. às dez e meia ele e a Margot 
 tomaram as suas posições e escutaram. Duas pessoas ouvem 
 mais do que uma. As negociações não acabaram da parte 
 da manhã, mas à tarde o pai não teve coragem para se 
 deitar novamente naquela posição. Estava como que 
 moído. Quando às três horas se ouviram as vozes lá em 
 baixo, tomei eu o lugar do pai e a Margot deitou-se ao 
 meu lado. As conversas eram muito longas e aborrecidas 
 e, de repente, adormeci naquele oleado tão duro e tão frio. 
 A Margot não ousou dar-me um empurrão, com medo 
 de que lá em baixo notassem alguma coisa. Dormi uma boa 
 meia hora e quando acordei já tinha esquecido as coisas 
 mais importantes. Mas, felizmente, a Margot tinha estado 
 com mais atenção. 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 2 de Abril de 1943 
Querida Kitty:  Mais um pecado para a minha lista. Ontem estava à 
espera que o pai, como de costume, viesse para rezar 
comigo e para me dizer boa-noite. Mas veio a mãe. Sentou-se 
na minha cama e perguntou, modesta e hesitante : 
 -Anne, o pai ainda não pode vir. Vamos rezar as duas. 
 -Não, mãe-respondi. 
 A mãe levantou-se, ficou parada ao lado da minha 
cama. Depois dirigiu-se devagarinho para a porta. De 
repente virou-se e, desfigurada, disse : 
 -Não estou zangada, Anne. O amor não é coisa que 
se possa pedir a alguém. 
 Corriam-lhe as lágrimas pela cara abaixo. 
 Fiquei muito quieta e senti que fui má, por tê-la 
 afastado tão brutalmente, mas não podia responder de 
 outra maneira. Não sou capaz de fingir e de rezar com ela 
contra a minha vontade. Palavra que não sou capaz. 
 Tenho pena da mãe, muita pena até, pois compreendi, 
pela primeira vez, que a minha atitude não lhe é indiferente. 
Li a dor na sua cara, quando me disse que o amor 
não era coisa que se pudesse pedir a alguém. É duro dizer 
 a verdade. Mas a verdade é que ela me afastou de si. 
 Foi com as suas observações pouco delicadas e as suas 
 gracinhas sobre coisas que para mim são muito sérias. 
 Assim como em mim tudo se constrange quando ela é 
 dura, também agora se constrangeu o seu coração, quando 
compreendeu que entre nós se tinha extinguido o amor. 
Chorou durante toda a noite, quase não dormiu. O pai 
nem olha para mim, e quando o faz leio-lhe a acusação 
nos olhos : "Como foste capaz de ser tão má para tua mãe? 
Como pudeste fazê-la sofrer tanto?" 
 Estão à espera que peça desculpa. Mas eu não posso 
pedir desculpa, pois só disse o que é verdade, e mais cedo 
ou mais tarde a mãe ficava a sabê-lo. Parece-me que já 
não me importo tanto com as lágrimas da mãe e o olhar 
do pai. Não, já não me importo. Pela primeira vez, os 
dois se aperceberam do que eu sinto continuamente. Sim, 
posso ter pena da mãe, mas só ela própria deve procurar 
reencontrar-me. Quanto a mim continuarei calada e fria 
e nunca terei medo da verdade. É sempre melhor não 
adiar o que tem de se dizer. 
 Tua Anne. 
Terça-feira, 27 de Abril de 1943 
Querida Kitty:  Estamos todos zangados uns com os outros, os van 
Daans, a mãe, o pai, etc. Lindo ambiente, não te parece? 
A lista completa dos pecados da Anne chegou a ser desencantada 
e discutida em toda a sua extensão. 
 O sr. Vossen está no hospital. O sr. Koophuis já anda 
a pé. Desta vez a hemorragia do estômago passou mais 
depressa do que de costume. Koophuis contou-nos que a 
repartição da população ficou muito destruída depois do 
assalto. Porque os bombeiros, em vez de extinguirem o 
fogo, não, inundaram o edifício todo e os danos são agora 
enormes e o Hotel Carlton foi destruído. com o "lar dos 
oficiais" e toda a esquina da Vijzelstraat-Singel ficou 
destruída pelo fogo. 
 Dois aviões ingleses, que transportavam grande carga de 
bombas incendiárias, despenharam-se precisamente neste 
 ponto. 
 Já não há um pouco sequer de sossego durante as noites. 
Tenho grandes olheiras porque não consigo dormir. 
 A comida está uma miséria : os pequenos almoços pão 
 seco e cevada. Ao almoço há mais de quinze dias, ou 
 espinafres ou salada, e as batatas, de vinte centímetros de 
 comprimento são vermelhas e doces. Quem quiser emagrecer que venha viver connosco 
Os de cima gemem. Mas nós ainda não fazemos disto uma 
tragédia. 
 Todos os homens que tinham sido mobilizados ou que 
 combateram "na guerra de cinco dias" em 1940 foram 
 convocados como prisioneiros de guerra e têm de trabalhar para o "Führer". Mais uma medida 
de precaução contra a invasão! 
 Tua Anne. 
Sábado, 1 de Maio de 1943 
Querida Kitty: 
 Se me ponho a pensar na nossa vida aqui, chego sempre 
 à mesma conclusão : nós, em comparação com os 
judeus que não conseguiram esconder-se, ainda estamos 
como que no paraíso. Mas mais tarde, quando tudo estiver 
normalizado e eu me puser a pensar naquilo que vivi, 
ficarei, decerto, admirada dos limites a que nós chegámos, 
especialmente no que respeita aos nossos costumes. Usamos, 
por exemplo, desde que aqui entrámos, a mesma toalha 
de oleado na mesa, e deves calcular que ela não ficou mais 
bonita pelo uso. Com um trapo, que é mais buracos do que 
trapo, tento dar-lhe um pouco de "brilho", mas em vão. 
Os van Daans não puderam lavar, durante todo o Inverno, o lençol de flanela que serve para poupar os colchões, 
porque o sabão é raro e muito fraco. O pai anda com umas 
calças no fio e a gravata já está muito gasta. A cinta da 
mãe rasgou-se-lhe, de velha, e a Margot usa um soutien 
que lhe é apertado de mais. A mãe e a Margot, durante o 
Inverno remediaram-se as duas com três camisas, e as minhas 
estão-me curtas, dão-me pela anca. Isto agora ainda vai. 
Mas assusta-me quando pergunto a mim mesma : será 
possível que nós tão terrivelmente esfarrapados, com tudo 
 tão gasto, a começar pelas minhas solas e a acabar no 
 pincel de barbear do pai, voltemos algum dia à mesma 
 vida de outrora? 
 Hoje os aviões bombardearam a cidade terrivelmente, 
 sobretudo durante a noite. Estive resolvida a juntar o 
 indispensável e preparar uma "mala de fuga", mas a mãe 
 disse e muito bem: 
 -Para onde querias fugir? 
 Toda a Holanda está a ser castigada, por haver sabotagens por toda a parte. Foi declarado o 
estado de sítio e tiraram uma ração de manteiga a cada pessoa. É assim 
que se castigam as crianças mal comportadas! 
 Hoje, à tardinha, lavei a cabeça à mãe. Não é coisa 
fácil. Temos de nos remediar com o sabão amarelo e pegajoso 
e, além disso, custa muito pentear o cabelo forte da mãe 
com o pente da família que já só tem dez dentes. 
Tua Anne 
Terça-feira, 18 de Maio de 1943 
Querida Kitty: 
 Observámos um combate aéreo entre aviões alemães 
e ingleses. Infelizmente a tripulação de dois ingleses teve 
de abandonar os aparelhos, saltando em pára-quedas. 
O nosso leiteiro que mora no caminho para Harlen, viu 
quatro canadianos, dos quais um falava perfeitamente 
holandês e que lhe pediu lume para o cigarro. Contou-lhe 
que a sua tripulação se compunha de seis homens, mas que 
o piloto, infelizmente, morrera no incêndio e o sexto 
companheiro se tinha escondido não se sabia onde. Depois 
veio a polícia verde e prendeu os quatro aviadores. é 
 admirável a calma e presença de espírito destes homens, 
depois de um salto assim! 
 Embora já haja calor, precisamos de acender o fogão 
para queimar os despojos da hortaliça e de outras porcarias. 
Temos de ter cautela por causa do criado do armazém 
e não podemos deitar nada no balde do lixo. Qualquer pequeno desleixo podia traír-nos. 
 Todos os estudantes são obrigados a assinar uma declaração 
de lealdade como sinal de simpatia para com os 
ocupantes. Depois podem continuar os estudos. Oitenta 
por cento, no entanto, não foram capazes de assinar contra 
a sua convicção e de se vender. As consequências não se 
fizeram demorar. Todos os estudantes que não assinaram 
são obrigados a trabalhos forçados na Alemanha. O que 
vai ser da juventude holandesa se as coisas continuarem 
assim? 
 Hoje à noite a mãe fechou a janela porque o barulho 
dos bombardeamentos tornava-se insuportável. Eu dormia 
na cama do Pim. De repente ouvimos a sra. van Daan a 
gritar. Saltou fora da cama como se uma tarântula a tivesse picado. Depois ouviu-se uma forte 
explosão. Imaginei logo 
que uma bomba incendiária tinha caído junto da cama 
dela e gritei : 
 -Luz, luz!!! 
 Pim acendeu a luz e eu esperava que o quarto, dentro 
de poucos minutos, fosse devorado pelo fogo. Mas tudo 
ficou na mesma. Precipitámo-nos escada acima para ver 
o que tinha acontecido. Os van Daans tinham visto um 
clarão de fogo pela janela. Ele era de opinião que o incêndio 
devia ser perto, em qualquer parte, mas ela na sua imaginação, 
já estava a ver a nossa casa a arder. A explosão 
fê-la saltar da cama. Mas como não se ouvia nem via 
mais nada voltámos a deitar-nos. Depois de um quarto 
de hora o barulho dos canhões recomeçou. A sra. van Daan 
fugiu do quarto, desceu a escada e refugiou-se junto do 
sr. Dussel. Pelos vistos o marido não a sabia proteger! 
O sr. Dussel recebeu-a com estas palavras: 
 -Deita-te ao meu lado, minha filhinha! 
 Desatámos todos a rir e assim salvámos a situação. 
Tua Anne 
Domingo, 13 de Junho de 1943 
Querida Kitty : 
 O poema que o pai me escreveu para os meus anos 
é tão lindo que tens de o conhecer. Depois de um apanhado 
dos acontecimentos deste ano, prossegue assim: 
Como és a mais nova de todos, 
Ainda que já bem crescida, 
Não é lá muito fácil a tua vida. Todos pretendem dar-te lições 
Mas o que te dão são aflições: 
Repara na nossa competência. 
Passamos por tudo isso afinal, 
E sabemos distinguir entre o bem e o mal. 
Assim te falam sem interrupção. 
Porque os defeitos próprios 
 nunca são muito graves 
Enquanto que os dos outros são os grandes entraves. 
Avisam-te, fazem-te ver... 
Como se fosse para teu prazer. 
E nós, os pais desta filha querida 
Nem sempre podemos dar-te razão 
Porque a transigência na vida 
É uma forte condição. 
O ano que finda 
aproveitaste-o bem. 
Trabalhaste, leste, aprendeste. 
E quase nunca te aborreceste. 
No que respeita à roupa, ouço-te perguntar: 
 O que é que vou usar? 
 As coisas já não me servem 
 Os sapatos tanto apertam que me enervam 
 A saia, a camisa, tudo encolhido. 
 Reduzido a uma tanga ficou o meu vestido 
 Dez centímetros que a gente se lembre de crescer 
 Bastam para em coisa nenhuma se caber. 
 A Margot fez um Poema sobre a comida. Mas os versos 
são pouco jeitosos e não tos vou transcrever. Todos foram 
 simpáticos, e deram-me muitas prendas bonitas. 
 entre outras coisas deram-me um calhamaço 
sobre o meu interesse pela mitologia da Grécia e de 
Roma. Não me posso queixar, pois sacrificaram alguma 
 coisa das suas últimas reservas. 
 Sou a mais pequena da "família-mergulhada". Tenho 
de confessar que recebo mais mimos do que mereço. 
 Tua Anne. Terça-feira, 15 de Junho de 1943 
 Querida Kitty : 
 Aconteceram muitas coisas, mas receio que todas estas 
histórias te comecem a aborrecer e que eu acabe por 
maçar-te com as minhas cartas. Prometo ser breve. 
 O sr. Vossen não foi operado ao estômago. Depois 
de terem feito o golpe no abdómen os médicos verificaram 
que ele tem um cancro, infelizmente tão adiantado que já 
nada podia fazer-se. Fecharam, trataram-no 
do coração. não veio para casa. Ficou fora durante três 
semanas. Tenho muita pena dele, e custa-me não poder sair 
daqui para o visitar e distrair um bocado. Sempre era ele que nos vinha contar o que se passava 
no armazém. Era-nos de um grande auxílio, sempre preocupado connosco, o bom Vossen. 
Faz-nos uma falta enorme. 
 No próximo mês seremos provàvelmente obrigados a 
entregar o nosso rádio. O sr. Koophuis tem um desses 
aparelhos "Baby" que nos vai ceder para substituirmos o 
nosso grande "Philips". Que pena, termos de nos desfazer 
do lindo aparelho! Mas numa casa onde há gente escondida 
nada se deve arriscar. O que importa antes de mais 
 nada é a gente desembaraçar-se das autoridades. O rádio 
 pequeno ficará cá em cima. Para um rádio há sempre 
 lár, mesmo em casa de judeus escondidos, que compram 
 tudo com dinheiro "negro". Toda a gente anda empenhada 
 em arranjar um aparelho antigo para o entregar às autoridades em vez daquele que tem em casa. 
A rádio é para 
 nós a única ligação com o mundo exterior. E a verdade 
 é que, quando estamos deprimidos da vida! o Melhor é 
 ter um rádio para nos dár coragem. 
 Tua Anne. 
Domingo, 11 de Julho de 1943 
 Querida Kitty: 
 Torno a falar-te sobre "educação". Asseguro-te que 
tenho feito todos os possiveis para ser prestável, amável 
e simpática. Assim a avalancha de criticas está a abrandar. 
Mas custa muito,comportarmo-nos bem com gente que 
não podemos ver à nossa frente. Alguém me ouve dizer como há vantagem de fingir um bocado 
na cara de pessoas aquem 
costumava, dar a minha opinião 
afinal, não ligam importância à minha opinião. 
 Mas por vezes esqueço mais tantas injustiças. Depois,  poder esconder a minha raiva. 
durante semanas fala-se da "mais malcriada rapariga do 
Mundo!" Não achas que sou digna de pena? Ainda bem 
que tenho senso critico, pois de outro modo azedava e 
perdia por completo a boa disposição. 
 com a estenografia, Resolvi não me preocupar tanto 
 preciso de mais tempo para os meus outros trabalhos. 
 primeiro por causa dos olhos. Ultimamente estou a ficar míope, o que não é nada bom. 
 Precisava de óculos (decerto ficaria com cara de coruja), 
 mas como sabes, os "mergulhados" não têm licença... 
 Ontem passámos todo o dia a falar de uma coisa só: 
 a mãe andava com a ideia de me mandar com a sra. 
 Koophuis ao médico da vista. Ao ouvir aquilo, no primeiro 
 momento fiquei tonta. Não é brincadeira nenhuma sair 
 à rua, imagina à rua! Tive a sensação de morrer de medo, 
 não é coisa simples. 
 e depois fiquei toda contente. Mas a coisa não é assim 
 tão fácil. Tem todas as dificuldades e perigos 
 Era preciso pensar bem e dcidir as coisas 
 importantes, e as personalidades que entenderem. A Miep queria levar-me imediatamente e fui 
logo ao armário tirar o meu casaco cinzento. Mas este estava-me tão acanhado como se 
pertencesse a uma irmã mais nova. Estou ansiosa por saber 
se, de facto, vou ao médico. Mas se calhar resolvem adiar. 
 Os ingleses desembarcaram na Sicília e o pai diz que 
a guerra já não pode demorar muito. A Elli entrega-nos, 
a mim e à Margot, uma parte do seu trabalho do escritório. 
Gostamos muito de o fazer, e a Elli poupa tempo. 
Julgo que qualquer pessoa sabe classificar a correspondência 
e assentar as vendas, mas nós somos especialmente 
cuidadosas. 
 A Miep é o nosso burro de carga, coitada! Quase todos 
os dias descobre alguma hortaliça e trá-la na sua saca 
amarrada à bicicleta. Também é ela quem cuida, todos os 
sábados, da troca dos livros, na biblioteca. Estamos sempre 
ansiosamente à espera do sábado, como criancinhas que 
esperam por uma renda nova mas não a podem usar. E fazem uma 
vida de espera. 
 Que significam os livros para gente isolada do mundo 
exterior? 
 Ler, estudar e ouvir rádio... é este o nosso mundo. 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 16 de Julho de 1943 
Querida Kitty:  Outra vez ladrões, mas desta vez a valer! Da parte 
da manhã o Peter foi, como sempre, ao armazém e verificou 
que as portas do armazém e da rua estavam abertas. 
Foi logo ter com o Pim que, antes de mais nada, ligou 
o rádio para a emissora alemã e fechou a porta. Depois 
os dois vieram para cima. As ordens, num caso destes, 
são : não abrir as torneiras, não andar pela casa, estar 
vestido e arranjado às oito horas, não utilizar o W.C. 
Estávamos contentes por não termos dado por nada durante 
a noite, pois, pelo menos, dormimos bem. Só às onze 
e meia é que chegou o sr. Koophuis e contou que os 
ladrões conseguiram abrir a porta exterior com uma 
alavanca para em seguida arrombar a porta do armazém. 
Viram logo que no armazém não havia nada que valesse 
a pena roubar e então tentaram a sorte no andar de cima. 
Levaram a caixa do dinheiro com quarenta florins e os 
livros de cheques em branco, mas o pior é que lhes cairam 
nas mãos todas as senhas do racionamento do açúcar, 
de mais ou menos 1,50 quilos. 
 O sr. Koophuis supõe que se tratava dos mesmos 
ladrões que tentaram, há seis semanas, arrombar uma das 
portas. Nessa altura não o tinham conseguido. Ficámos 
todos bastante aflitos. Parece que cá no anexo não se pode 
passar sem acontecimentos sensacionais. Ainda bem que 
as máquinas de escrever e a caixa, grande estavam cá 
em cima onde, aliás, as guardamos todas as noites. 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 19 de Julho de 1943 
Querida Kitty: 
 No domingo, o Porto de Amesterdão foi terrivelmente 
bombardeado. Dizem que as destruições são medonhas. 
Ruas inteiras estão transformadas em montões de entulho 
e ainda hão-de passar-se muitos dias sem se terem encontrado 
todos os cadáveres. Até agora contam-se duzentos 
mortos e inúmeros feridos. Os hospitais estão apinhados. 
Crianças vagueiam entre as ruinas à procura dos pais. 
Ainda agora estremeço ao lembrar-me do estampido das 
explosões e do ruído surdo das derrocadas que nos prediziam 
toda esta destruição. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 23 de Julho de 1943 Querida Kitty : 
 Elli descobriu uma loja onde ainda se vendem, sem 
talões, cadernos e livros de escritório para a Margot, 
que está a aprender contabilidade. Mas não queiras saber 
o aspecto dos cadernos : papel cinzento com linhas tortas 
e só com doze folhas. E caros como fogo! 
 Agora hás-de divertir-te um bocado. Vou contar-te o 
que cada um de nós deseja em primeiro lugar quando 
estiver em liberdade. 
 A Margot e o sr. Daan gostavam de tomar um banho 
quente, numa banheira cheia até cima e ficar lá dentro, 
pelo menos, uma meia hora. A sra. van Daan quer ir 
direitinha a uma confeitaria e comer torta. O Dussel não 
pode pensar em outra coisa senão na sua mulher e na 
Lottinha; a mãe tem saudades de uma chávena de café. 
O pai quer visitar, antes de mais nada, o sr. Vossen; o 
Peter pensa em ir logo ao centro da cidade e ao cinema 
-e eu? Acho que de tanta felicidade nem era capaz de 
saber o que havia de fazer primeiro. 
 Parece que o meu maior desejo é voltar à nossa casa, 
onde posso estar à vontade, onde faço o que me apetece. 
Queria também ser orientada nos estudos, isto é: queria 
ir para a escola! 
 A Elli tem possibilidades de arranjar fruta no mercado 
 " negro". Mas os preços não são brincadeira nenhuma: 
uvas, cinco florins, groselhas, setenta cent., um pêssego 
cinquenta cent., um quilo de melão, um florim. Isto, 
apesar de nos jornais se ler todos os dias: "Qualquer subida 
de preços é considerada como especulação". 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 26 de Julho de 1943 
Querida Kitty: 
 O dia de ontem foi bastante tumultuoso e ainda estamos 
 excitados. Com certeza gostavas de perguntar se não 
é possível passar-se aqui um único dia sem aflições. 
 Estávamos sentados à mesa e a tomar o pequeno almoço 
quando as sereias deram o primeiro alarme. Isto não nos 
incomoda grande coisa porque quer dizer apenas que os 
aviões inimigos se estão a aproximar da costa. Depois do 
 pequeno almoço deitei-me de novo na cama. Tinha terríveis 
dores de cabeça. Eram aí duas horas quando vim para baixo. às duas e meia a Margot terminou os 
trabalhos para o escritório. Ainda não tinha arrumado 
 as coisas quando se ouviu de novo o toque de alarme, 
 mas desta vez mais forte. Subimos num instante a escada 
 e não foi sem tempo, pois cinco minutos mais tarde o 
 barulho tornou-se medonho. Resolvemos refugiar-nos no 
 nosso cantinho de "abrigo" no corredor. A casa tremia. 
 Ouvimos nitidamente o cair das bombas. Apertei a minha 
 malinha debaixo do braço, mais para sentir algum amparo 
 do que para fugir. 
 Depois de uma boa meia hora os aviões foram rareando 
 e toda a gente da casa começou a sair dos seus esconderijos. 
 O Peter desceu do seu posto de observação nas águas-furtadas, o sr. Dussel estivera no grande 
escritório, a sra. van Daan achara que só no escritório particular estaria em segurança e o sr. van 
Daan observara o espectáculo lá do alto do sótão. Só nós tínhamos ficado no cantinho de 
"abrigo". Agora subimos todos para o andar de cima donde víamos nitidamente as nuvens de 
fumo sobre o porto de Amesterdão. Em breve chegou até nós o cheiro a queimado: era o 
incêndio. Tive a impressão de que um nevoeiro espesso envolvia a cidade. Um incêndio assim 
não é um espectáculo agradável. Cada um de nós voltou ao seu trabalho, contente por ter 
escapado. à hora do jantar, outra vez alarme. Estávamos a comer umas coisas boas mas eu perdi 
o apetite logo que ouvi o terrível uivar das sereias. Tudo, porém, ficou calmo e três quartos de 
hora depois deram sinal de fim do alarme. Mas mal tínhamos lavado a louça, tudo recomeçou : 
alarme, estampidos horríveis, muitos, muitos aviões por cima de nós. Pensámos : "céus! Isto 
agora já passa das marcas!". 
Mas ninguém queria saber o que nós pensávamos. Choveram 
 bombas sobre bombas, desta vez do outro lado 
(no Schiphol). Foram os ingleses que deram a notícia. 
Os aviões mergulhavam, subiam. O ar parecia vibrar. 
Tive receio de que algum caísse por cima de mim. 
 Podes crer, já nem me segurava nas pernas quando 
às nove horas fui para a cama. 
 à meia-noite em ponto, aviões! O Dussel estava precisamente 
a despir-se. Eu quis lá saber. à primeira explosão 
saltei cama fora. Duas horas de voos constantes e, por isso, 
fiquei na cama do pai. Só depois, quando já não se ouvia mais 
nada, voltei para o meu quarto. às duas e meia adormeci. 
 Sete horas. Acordei num sobressalto. O sr. van Daan 
estava no quarto do pai. "Tudo", ouvi-lhe dizer. "Pronto, 
ladrões", pensei e imaginei logo que nos tinham roubado 
tudo. Mas não! Seguiu-se um relatório como não tínhamos 
ouvido há meses, talvez mesmo durante toda esta guerra: 
 Mussolini caiu, o rei da Itália tomou conta do governo. 
 Ficámos radiantes. Depois do susto de ontem, enfim 
alguma coisa de bom e... um pouco de esperança! Esperança 
do fim. Esperança da paz! 
 Chegou o Kraler e contou que Fokker está muito destruído. 
Entretanto, tivemos também outro alarme, de noite. Vieram muitos aviões e depois outra vez alarme. Parece 
que sufoco com tantos alarmes aéreos, não durmo o suficiente 
e não consigo trabalhar como deve ser. Mas agora 
a ansiedade e a esperança de que esteja a chegar o fim 
de tudo isto, fazem com que não desanimemos. Oxalá 
tudo acabe ainda este ano. 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 29 de Julho de 1943 
Querida Kitty: 
 A sra. van Daan, o Dussel e eu estávamos a lavar a 
louça e, o que acontece raras vezes e que eles devem também 
ter estranhado, eu estava excepcionalmente silenciosa. 
Para evitar perguntas, procurei um tema neutro e, por 
fim, comecei a palrar sobre o livro Henri van den O Cerkant. 
Mas enganei-me nos cálculos. Se não é a sra. van 
Daan que me diz das suas, então é com certeza o Dussel. 
É que a coisa foi esta: o Dussel tinha-nos recomendado 
o livro como uma coisa extraordinária. Mas nem a Margot 
nem eu lhe encontrámos nada de especial. A figura do 
rapaz está bem descrita, mas o resto... é melhor não 
falar nisso. Enfim, eu disse-lhe o que pensava do livro. 
Havias de ouvi-lo : 
 -O que é que sabes tu afinal da psicologia de um 
homem? Se o livro tratasse de uma criança, vá lá. És 
nova de mais para compreenderes um livro destes. Nem 
um jovem de vinte anos o entende bem. (Só gostava de 
saber porque é que ele tanto nos recomendou o livro). 
 E agora desataram ambos a atacar-me : 
 -Sabes coisas de mais, coisas que ainda não te dizem 
respeito. Tiveste uma educação errada. Mais tarde não 
te contentarás com coisíssima nenhuma. Hás-de dizer: 
"aquilo? Já o li há uns anos num livro". Apressa-te se 
ainda queres apanhar um marido ou se queres apaixonar-te. 
Se calhar só hás-de encontrar defeitos em toda 
 a gente! Sabes muita coisa em teoria, mas na prática 
 tudo é diferente. 
 Parece que eles pensam que é boa educação incitarem-me 
 contra os meus pais. Gostam disso. Acham também que 
 é um método excelente não falar com uma rapariga da minha idade sobre "assuntos de adultos". 
Ora os resultados de uma educação assim são sempre desastrosos! 
 Apeteceu-me dar-lhes na cara pelas suas manias ridículas. 
Fervi de raiva. Ah! se pudesse começar a contar 
os dias que faltam para me ver livre deles! A sra. van Daan, que encanto!... é que me deve servir de exemplo! Sim, 
de exemplo... daquilo que se não deve ser! 
 Todos o sabem: ela é impertinente, egoísta, espertalhona, 
interesseira e nunca está satisfeita. Eu podia escrever 
livros sobre esta senhora, e quem sabe se não o farei 
um dia. O seu "verniz" estala com facilidade. Ela faz-se 
simpática e amável, principalmente junto dos homens. 
Mas isso não passa de um "bluff"! A mãe acha-a estúpida 
 de mais e que nem vale a pena perder palavras com 
ela. A Margot acha-a insignificante. O Pim diz que é 
feia, física e moralmente, e eu percebi depois de a ter 
observado-pois não tenho preconceitos-que todas essas 
opiniões estão certas, mais do que certas! Tem tantas 
qualidades más que nem sei a qual delas havia de dar 
o primeiro lugar. 
 Tua Anne 
 P. S. Peço à querida leitora que se não esqueça de que 
esta carta foi escrita com raiva ainda não esfriada! 
Terça-feira, 3 de Agosto de 1943 
 Querida Kitty: 
 Politicamente, tudo vai às mil maravilhas. Na Itália 
 proibiram o partido fascista. Em várias regiões o povo 
 bate-se contra os fascistas. Até os soldados tomam parte. 
 Como querem que um povo assim ainda se ponha a lutar 
 contra a Inglaterra! 
 Pela terceira vez a cidade foi violentamente bombardeada. Cerrei os dentes e disse para comigo: 
"Coragem!". 
 A sra. van Daan que até agora sempre dizia: "É melhor 
 acabarem os sustos de uma vez do que ficar à espera indefinidamente", é agora a mais cobarde 
de todos. Hoje de 
 manhã tremia como varas verdes e depois desatou a chorar. 
 O marido, com quem depois de uma semana de vida de cão e gato acabou por fazer as pazes, 
acalmou-a carinhosamente. A gente ia ficando quase sentimental perante aquela linda cena. 
 A propósito de gatos. Afinal não são apenas úteis. 
 A Mouchi deu-nos a prova disso. Andamos todos com pulgas, 
 e a praga torna-se, de dia para dia, mais insuportável. 
 O sr. Koophuis espalhou por toda a parte um pó amarelo 
 que parece não ter efeito algum sobre as pulgas. Já andamos todos nervosos. Não nos 
conseguimos abstrair disso, 
 sentimos os bichinhos a correr pelos braços, pelas pernas 
 e por toda a parte do corpo. A gente exibe-se com os 
 movimentos mais cómicos deste Mundo, procurando caçar  os minúsculos verdugos. Mas todo o movimento nos causa 
 embaraço. Falta-nos ojeito porque fazemos pouca ginástica 
 e já não temos o corpo flexível. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 2 de Agosto de 1943 
 Querida Kitty: 
 Depois de passarmos mais de um ano fechados no 
anexo, já estás bem informada sobre a nossa vida. Há 
coisas que dificilmente se conseguem escrever. Tudo é 
tão complicado e diferente da vida em liberdade! Mas 
para que possas fazer melhor ideia, vou contar-te de 
vez em quando aquilo que acontece regularmente todos os 
dias. Hoje vou começar pelo fim do dia. 
 às nove horas toda a gente começa a fazer os preparativos 
para se deitar. Puxam-se cadeiras, vão-se buscar 
as roupas das camas, estendem-se os cobertores. Realmente 
nada fica onde estava durante o dia. Eu durmo 
no pequeno sofá que tem mais ou menos metro e meio 
e preciso de cadeiras para o prolongar. Durante o dia o 
meu "edredon", os cobertores, o travesseiro e os lençóis 
guardam-se na cama do Dussel. 
 No quarto ao lado ouve-se chiar e ranger: a cama 
da Margot é "armada". E de novo surgem cobertores e 
almofadões, sabe-se lá de onde. 
 Podia julgar-se que estava a trovejar se não se soubesse 
que é a cama da sra. van Daan que está agora a ser arrastada 
para a janela. "Sua Majestade", de "liseuse" cor-de-rosa, 
tem de respirar, através do seu belo narizinho, o 
ozone fresco junto da janela. 
 Depois de o Peter estar arranjado-mais ou menos 
às nove horas- entro eu no "quarto de banho" para me 
lavar minuciosamente, e então uma pulguinha perde, 
não raras vezes, a sua vida. Depois lavo os dentes, ponho 
os "bigoudis", arranjo as unhas e trato de outros pequenos 
segredos da toilette... e tudo isto numa escassa meia hora. 
 às nove e meia meto-me no roupão de banho, saio ràpidamente, levando o sabão, os alfinetes, 
bigoudis, algodão em rama!, etc., e a roupa sobre o braço. Mas muitas vezes sou chamada para 
voltar atrás, por ter enfeitado o lavatório com um ou outro dos meus lindos cabelos pretos, o que, 
pelos vistos, não agrada ao meu sucessor. 
 Dez horas: apagam-se as luzes. Boa-noite. Durante um 
quarto de hora ainda se ouve o ranger das camas e os 
suspiros das molas escangalhadas. Depois tudo é silêncio, 
pelo menos quando lá em cima não há discussão conjugal.  às onze e meia abre-se a porta do "quarto de banho." 
Um magro raio de luz, um arrastar de sapatos. ívelum 
roupão largo, largo de mais para aquela figura, entra o 
Dussel, que tinha estado a trabalhar no escritório do Kraler. 
Durante dez minutos anda às furtadelas, mexe com 
papéis, anda a esconder as guloseimas, arranja a cama, 
desaparece de novo e, de tempos a tempos, ouvem-se 
ruídos suspeitos no W.C. 
 às três horas tenho eu de me levantar para fazer uma 
coisa que ninguém pode fazer por mim. Debaixo da lata, 
que serve para isso, há um bocado de tapete de borracha 
para todas as eventualidades, pois a lata pode começar 
a verter. Retenho de todas as vezes a respiração para apreciar 
o ruído; parece-me ouvir correr um ribeirinho sobre 
calhaus. E depois a figurinha branca que ouve troçar a 
Margot noite após noite: "Oh, que camisa tão imoral!", 
torna a desaparecer debaixo dos cobertores. 
 Durante um quarto de hora escuto ainda os ruídos nocturnos. 
Primeiro : lá em baixo não estará algum ladrão? 
Depois concentro a minha atenção nos ruídos dos vizinhos 
de cima, do lado e do que está junto de mim. Por eles 
podia fazer-se um resumo de temperamentos. Alguns 
estão pesadamente ferrados no sono, outros estão meio 
acordados, o que não é coisa agradável, quando se trata 
do sr. Dussel. Primeiro dá a impressão de um peixe que 
procura apanhar ar com a boca, e isso por aí umas dez 
vezes. Depois humedece os lábios e dá estalinhos com a 
língua. Ao mesmo tempo volta-se para um lado, volta-se 
para o outro e puxa pelo travesseiro até encontrar uma posição 
cómoda. Com pequenos intervalos todas estas manobras 
se repetem pelo menos três vezes e, finalmente, o bom 
doutor adormece. 
 Por vezes acontece haver bombardeamentos. Mal 
começam estou logo meio acordada, com os pés no chão. 
Há também noites em que sonho com verbos irregulares 
ou com uma discussão conjugal, lá em cima. Só então 
é que me acontece ter a sorte de não acordar e de não 
dar conta dos bombardeamentos. Mas das outras vezes 
saio da cama de um pulo, pego no travesseiro e no lenço, 
enfio o roupão e os chinelos e corro para a cama do pai. 
A Margot descreveu a cena num poema de aniversário. 
Quando de noite um avião mal se adivinha 
 certo e sabido que uma certa mocinha 
Vai aparecer ao pai a impLorar 
Que lhe ceda na cama um pouco de lugar!  Recolhida na cama do pai, o pior susto para mim já 
passou, caso o barulho não se torne mesmo dramático. 
 Um quarto para as sete : rrring... o despertador lá 
em cima. 
 Ping, pang... é a sra. van Daan que o desliga. O seu 
marido levanta-se-a gente bem o ouve-põe a água a 
ferver e vai para o quarto de banho. Uma meia hora 
depois é a vez do Dussel. Finalmente estou só-, abro os 
cortinados escuros - um novo dia começa no anexo! 
Tua Anne. 
Quinta-feira, 5 de Agosto de 1943 
Querida Kitty : 
 Hoje vou-te falar da hora do almoço. 
 Meio-dia e meia hora: todo o nosso ninho respira de 
alívio. Os criados do armazém saíram. Lá em cima ouve-se 
o aspirador com que a sra. van Daan trata carinhosamente 
uo seu querido e único tapete. A Margot mete os livros 
debaixo do braço e vai ter com o seu aluno Dussel que é 
um pouco tapadinho para aprender holandês. O Pim 
retira-se para um cantinho onde possa gozar o seu querido 
Dickens. A mãe sobe para o andar de cima e dá uma 
ajuda à "perfeita dona de casa", enquanto eu me meto no 
quarto de banho, faço uma pequena arrumação das coisas 
e dou uma arranjadela à minha pessoa. 
 Uma menos um quarto: um após outro aparecem: 
o sr. v. Santen, o sr. Koophuis ou o Kraler, a Elli e quase 
sempre também a Miep. 
 Uma hora : todos ouvem animosamente as notícias 
 da B. B. C. São estes os únicos momentos em que os habitantes do anexo não se interrompem 
uns aos outros, pois 
 o que está a falar não pode ser contrariado, nem sequer 
 pelo sr. van Daan. 
 Uma hora e um quarto : uma refeição simples : uma 
 chávena de sopa para cada visitante. E se há sobremesa 
 é também repartida com eles. Contente, o sr. v. Santen 
 recosta-se no canto do sofá, desdobra o jornal, o gato ao 
 seu lado, a chávena em frente. É a jovialidade em pessoa. 
O sr. Koophuis conta novidades da cidade. É uma fonte 
inesgotável. O Kraler sobe a escada aos pulinhos, bate 
 um tanto rápido e seco à porta, entra esfregando as mãos 
 e, conforme a disposição, mostra-se animado e alegre ou 
 deprimido e calado. 
 Duas menos um quarto: os hóspedes despedem-se, voltam ao trabalho. A mãe e a Margot lavam a louça, 
o sr. e a sra. van Daan vão dormir, o Peter desaparece no 
seu quarto, o pai estende-se um bocadinho, o Dussel faz 
o mesmo, eu leio ou escrevo. É esta a hora mais simpática. 
Quando as pessoas dormem não nos estorvam. 
 O Dussel sonha com boa comidinha. Leio-lho no seu 
rosto. Mas não gasto tempo a estudar o Dussel, porque o 
tempo passa tão depressa! Um minuto depois das quatro 
aquele caturra já está ao meu lado a resmungar por eu 
ainda não ter deixado a mesa. 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 9 de Agosto de 1943 
Querida Kitty: 
 Vou continuar com o boletim. O nosso jantar: o 
sr. van Daan é o primeiro a servir-se e serve-se abundantemente 
de tudo... isto é, se houver coisas ao seu paladar. 
Fala sempre, mete-se em tudo, impinge as suas opiniões 
e depois de as ter impingido não há ninguém que lhas 
possa modificar. Ai daquele que se atreva a contrariá-lo. 
Bufa como um gato... e se alguém se atreve uma vez, não 
fica com vontade de repetir. Só ele é que tem opiniões 
certas, só ele é que sabe tudo! É um finório, isto não se 
lhe pode negar, mas a sua presunção é qualquer coisa de 
descomunal. 
 A ilustre senhora: o melhor seria eu nem falar nela. 
Por vezes, principalmente quando está de mau génio, nem 
me apetece olhar para ela. Vistas bem as coisas, é quase 
sempre ela quem provoca as discussões, mesmo que não 
sejam sobre a sua pessoa. Por amor de Deus, isso não! 
Todos evitam zangar-se com ela. Mas o que eu queria 
dizer é que a sra. van Daan provoca as discussões. Provocar, 
sim, esta arte conhece-a a fundo! Provocar a sra. Frank 
e a Anne! Com o pai e com a Margot a coisa já é mais 
difícil, porque eles não lhe dão motivo. 
 à mesa, a sra. van Daan não fica nunca em desvantagem, 
embora imagine que fica. As batatas mais pequenas, os 
pedaços mais delicados, apanhar sempre o melhor, é esta 
a sua divisa! Os outros que se arranjem. O essencial é que 
ela tenha conseguido aquilo que queria! E nunca mais 
se cala! 
 Tanto se lhe dá como se lhe deu se as pessoas estão 
a ouvir ou não interessadas. Está convencida de que as suas 
palavras douradas são um gozo para toda a gente. Sempre a sorrir com "coquetterie", pretende saber 
todas as coisas, dá, maternalmente, conselhos e pensa que 
está a causar a melhor das impressões. Mas examinando-a 
bem, descobre-se logo que atrás de tudo aquilo há muito 
pouca coisa. 
 característica número 1 - aplicação. Segundo - alegria. Número 3 - "coquecterie". E por vezes 
boa apresentação. Petronella 
van Daan. 
 O terceiro companheiro de mesa, o jovem sr. van Daan, 
refila pouco. i não chama a atenção sobre si. 
 O seu estômago deve ser uma espécie de tonel das 
Danaides, pois mesmo quando a comida é forte e depois 
de ter consumido uma porção fantástica, afirma, com a 
cara mais séria deste mundo, que teria sido capaz de comer 
o dobro. 
 o quarto é a Margot. Fala pouco e come como um passarinho. 
As únicas coisas que lhe escorregam bem pela garganta 
abaixo são hortaliças e frutas. "Amimalhada", é a 
sentença dos van Daans. Mas a nossa opinião é outra: 
"Falta de ar e de movimento". 
 Ao lado a mãe. Come bem, fala muito e com gosto. 
Ninguém a tomaria por dona de casa como à sra. van Daan. 
E porquê? Porque a ilustre senhora é que cozinha e a 
mãe só limpa e lava a louça. 
 Somos 6 e : a respeito do pai e de mim não vou dizer 
muita coisa. O Pim é o mais modesto de todos à mesa. 
Olha primeiro à sua volta, a ver se os outros estão bem 
servidos. Não necessita de nada em especial e tudo o que 
é bom vai para as filhas. É o exemplo da bondade e da 
grandeza de alma... e ao seu lado fica sentado o feixe de 
nervos do anexo! 
 O sr. Dussel: serve-se mas não olha para ninguém. 
come e não fala. Mas se é absolutamente indispensável 
falar, então escolhe o tema "comida" por ser um tema 
que não provoca conflitos, quando muito dará lugar a 
algumas fanfarronices. Consegue engolir porções gigantescas, 
nunca diz que não, tanto faz que a comida seja 
boa como má. Puxa as calças demasiado para cima, usa 
um colete vermelho e chinelos pretos e sobre o nariz 
pousam-lhe uns óculos de armação escura. É assim que se 
apresenta na mesa de trabalho, às refeições, durante a sesta e quando vai ao seu lugar favorito, 
uma, duas, Três, quatro ou cinco vezes por dia está algum de nós em frente da porta do W.C. 
saltando de impaciência de um pé para o outro, quase sem poder esperar mais. 
Julgas que isso o comove? Nem pensar em tal! Podem 
registar-se sessões dessas das sete e um quarto às sete e 
meia, da meia-hora à uma, das duas às duas e um quarto, 
das quatro às quatro e um quarto, das seis às seis e um quarto e das onze e meia à meia-noite. Disso não desiste 
e nem a voz mais suplicante, a profetizar um acidente, 
o pode comover. 
 Um outro, não é pròpriamente um membro da família 
do anexo, mas companheira de casa e de mesa, a Elli. 
Tem bom apetite, não é esquisita e nunca deixa ficar 
restos no prato. Fica contente com a coisa mais insignificante 
e dá-nos também prazer com isso. Está sempre 
alegre e de bom humor, é prestável e simpática, enfim 
só tem boas qualidades. 
Tua Anne 
Terça-feira, 10 de Agosto de 1943 
Querida Kitty: 
 Uma ideia nova! Converso à mesa mais comigo própria 
do que com os outros, o que tem duas vantagens: provàvelmente 
todos ficam contentes quando falo pouco e, além 
disso, não preciso de me aborrecer com as opiniões dos 
outros. Como acho as opiniões dos outros quase sempre 
tolas e só as minhas certas, o melhor é não dizer nada. 
Da mesma maneira procedo quando há uma comida de 
que não gosto. Imagino que aquilo é muito bom, finjo 
mesmo que assim penso, e antes que consiga reflectir, já 
engoli tudo. Pela manhã quando me levanto-outra coisa 
desagradável - salto da cama e digo para comigo: 
"Vais-te já deitar outra vez". Tiro os cortinados escuros da 
camuflagem, respiro um pouco de ar fresco pelas fendas 
até ficar bem acordada. Quando depois tiro as roupas da 
cama, já não sinto a tentação de deitar-me. 
 Sabes como a mãe chama a isto? "A arte de viver". 
Uma expressão patusca, não achas? 
 Há uma semana que não sabemos as horas exactas, 
porque levaram o nosso tão querido e fiel sino da torre 
Oeste. Supomos que querem transformá-lo num canhão. 
Quase nunca sabemos que horas são. Espero que descubram 
alguma coisa que nos imdique o tempo e substitua também 
o lindo som. É preciso que o quarteirão não sinta tanto 
a falta do seu sino. 
 Seja como for que eu esteja, lá em cima ou cá em 
baixo, todos olham sempre com admiração para os meus 
pés. É que os meus pés ostentam sapatos novos. A Miep 
conseguiu comprá-los em segunda mão por vinte e sete 
florins e meio. São de camurça cor de vinho e têm um salto 
largo e bastante alto. É como se fossem umas andas e pareço ainda mais alta do que sou. Ontem tive pouca 
sorte. Piquei-me no polegar direito com uma agulha grossa. 
Não pude descascar as batatas, e a Margot teve de fazê-lo 
por mim. Depois dei com a testa contra a porta do armário 
e tão forte foi a pancada que quase caí ao chão. E como 
aquilo não se passou sem estrondo, apanhei um raspanete 
ainda por cima. Não pude refrescar a testa porque estávamos 
proibidos de abrir as torneiras. Agora ando com um 
galo enorme sobre o olho direito. E para cúmulo entalei 
o dedo pequeno do pé direito no aspirador. Mas as minhas 
outras dores eram já tão grandes que não liguei a esta 
nova. Fui tola porque a ferida infectou, tenho de andar 
com o pé ligado... e não posso calçar os meus lindos sapatos. 
 O Dussel fez-nos indirectamente correr perigo de vida. 
Pediu à Miep-que nada sabia destas coisas-para lhe 
trazer um livro que está proíbido, um panfleto contra 
Hitler e Mussolini. Precisamente esta manhã uma moto 
das SS esbarrou contra a bicicleta dela. Ela perdeu a 
cabeça e gritou-lhes: "Patifes!", mas, felizmente, 
pôs-se a andar. O melhor é a gente não imaginar o que teria 
 acontecido se a tivessem levado ao posto da polícia. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 18 de Agosto de 1943 
Querida Kitty: 
 Hoje vou descrever-te o nosso dever quotidiano de descascar 
as batatas. 
 Um de nós vai buscar os jornais (para as cascas), outro 
as facas (e, evidentemente, fica para si com a melhor), 
outro traz as batatas e o último, um panelão com água. 
 O sr. Dussel começa, descasca bastante mal, mas, sem 
interrupção, olha, de vez em quando, para a direita e 
para a esquerda, porque quer verificar se os outros 
 trabalham tão bem como ele. Chega à conclusão de que isso 
não sucede. 
 -Anne, não vês? Eu pego na faca assim, e descasco 
de cima para baixo. Não, assim não! Olha, assim é que 
deve ser! 
 -Acho o meu modo mais cómodo-ouso dizer finalmente. 
 -Olha que como eu faço é melhor, podes crer. Mas, 
afinal, que me importa a mim? Faze como entenderes. 
 Continuamos a descascar. Olho de esguelha para o 
meu vizinho da esquerda. Está a abanar a cabeça, por 
minha causa, suponho. Mas não me diz nada. Continuo a descascar. Depois olho para o pai que está em frente 
de mim. Para ele, descascar batatas não é uma brincadeira 
mas sim um trabalho de precisão. Quando o pai está a 
ler, tem uma ruga profunda na testa, mas quando descasca 
batatas ou quando ajuda a preparar a hortaliça, 
então dá a impressão de ser impermeável a tudo o que 
acontece à sua volta. Nestas ocasiões põe a sua cara "para 
batatas", e nunca entregará uma só que não esteja descascada 
impecàvelmente. Com uma cara assim também 
seria impossível não se fazer coisa perfeita, e era ELe sempre a trabalhar. levanto os olhos de 
quando 
 em quando, e sei logo tudo, Não tira os olhos dele, mas 
chama sobre si a atenção do Dussel, pisca-lhe os olhos. 
 ele Finge não dar por nada. Depois ela como que pensa 
 - bem, isto não está mau. - E Ele contimua a descascar. Ela 
ri-se, mas também não deixa de descascar. A sra. van Daan diz: - Porque não pões o avental? 
 -Não me sujo. 
 E ela continua a cismar. 
 - Porque não te sentas? 
-Estou muito bem assim, gosto de estar de pé. 
 Novo silêncio. 
 - Putti, vês, agora fizeste saltar a água. 
- Está bem, Mammi, hei-de ter mais cautela. 
 E ela a inventar outro tema. 
 -Oh, Putti, dize lá, porque é que os ingleses deixaram 
 de bombardear? 
 -por causa do mau tempo, suponho. 
 -Mas ontem esteve bom tempo e eles não vieram. 
 -E se falássemos de outras coisas? 
 -Mas porque não há-de a gente falar sobre isto? 
 -Porque não. 
 -Mas porquê? 
 -Cala-te Mammi! 
 -O Frank nunca deixa de responder à mulher quando ela quer saber alguma coisa. 
O sr. van Daan não responde. 
ela retoma a conversa Depois de uns minutos de silêncio: 
- Nunca mais fazem a invasão. 
 O marido fica vermelho de raiva. Ela bem o vê e cora. 
Agora a bomba rebenta: 
- Cala a boca! Caramba, caramba. 
Eu nem olho para ninguém. Minha mãe mal pôde esconder o riso 
Cenas destas ou semelhantes repetem-se quase todos os dias, a não ser que o casal esteja 
amuado, o que é de grande vantagem, porque, ao menos, não diz nada. 
 Tenho de ir ao sótão buscar mais batatas. Vejo o 
Peter a catar o gato. Quando me aproximo, ele ergue os 
olhos. O gato, ao perceber que não está preso, dá um pulo 
e foge pela janela. O Peter roga pragas, eu rio e desapareço.  Tua Anne. 
Sexta-feira, 20 de Agosto de 1943 
Querida Kitty: 
 às cinco e meia em ponto os operários saem do armazém 
 e a nossa liberdade recomeça. 
 Quando a Elli sobe, sabemos que já não há perigo e 
começamos a mexer-nos à vontade. Quase sempre vou 
com ela para cima, onde ficou guardada uma lambarice. 
Mal a Elli se senta, logo a sra. van Daan começa a 
 enumerar os seus desejos: 
 - Ai, Elli!, eu gostava tanto de... 
 A Elli pisca-me os olhos. É raro alguém do escritório 
aparecer lá em cima sem que a sra. van Daan deixe de ter 
algum desejo. É esta a razão por que ninguém gosta de 
subir até ao andar dos van Daans. 
 Seis menos um quarto. A Elli deixa-nos e eu vou descer 
à cozinha, depois entro no escritório particular, abro a 
porta da carvoeira ao Mouchi, que quer ir para lá caçar 
ratos. Por fim vou ao escritório do sr. Kraler, onde o 
sr. van Daan está a examinar as pastas e as gavetas para 
ver a correspondência do dia. O Peter vai buscar a chave 
do armazém e também o Bochi. O Pim leva a máquina 
de escrever para cima. A Margot procura um sítio calmo 
para se entregar aos trabalhos do escritório. A sra. van Daan 
põe um panelão de água a ferver; a mãe está a descer 
com uma panela de batatas. Cada um cumpre a sua 
obrigação. 
 O Peter volta do sótão. A sua primeira pergunta é 
se não se esqueceram de pôr o nosso pão no escritório do 
Kraler. Esqueceram-se! Então ele não tem outro remédio 
senão ir procurá-lo no escritório grande. Gatinha como 
os bebés para que ninguém de fora o possa ver. Abre o 
armário, tira o pão e desaparece, isto é, quer desaparecer, mas durante aquele passeio, o Mouchi 
saltou por cima 
dele e depois escondeu-se debaixo da escrivaninha. O Peter 
procura em todos os cantinhos. Por fim, descobre o gato. 
Sempre de gatinhas procura apanhar o bicho pelo rabo. 
O gato bufa, o Peter suspira. Mouchi senta-se à janela e 
lambe o pêlo. Como última tentativa, o Peter estende-lhe 
um pedaço de pão. E agora a coisa dá resultado. Mouchi 
deixa-se "levar", vai atrás dele, e a porta pode fechar-se. 
 Eu estive a observar todo o espectáculo através de 
uma frincha. Depois voltei ao meu trabalho. Tac, tac, tac! Bater três vezes, é sinal de que o jantar está pronto! 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 23 de Agosto de 1943 
Querida Kitty: 
 Continuação do boletim:-O relógio dá as nove horas 
da manhã. A mãe e a Margot estão nervosas. 
 - Ghut! Pai... Otto, chut... Pim! São nove horas, 
fecha a torneira! 
 -Não pises o chão dessa maneira! 
 É assim que avisam o pai, que ainda está no quarto 
de banho. às oito e meia ele tem de estar no quarto. 
E nem mais uma gota de água! Não utilizar o W. C, não 
andar de um lado para o outro, silêncio absoluto. Se ainda 
não houver gente no escritório, os ruídos ainda ecoam 
mais fortes no armazém. 
 Lá em cima, os van Daans abrem a porta e batem 
três vezes no chão: 
 -A papinha para a Anne está pronta! 
 Subo num instante para ir buscar a minha tijelinha 
de cachorro. Depois ando numa roda viva: pentear, despejar 
o "vaso", pôr a roupa da cama no sítio. E silêncio, 
o relógio deu horas! 
 A sra. van Daan ainda se arrasta de chinelos pelo 
quarto, e o marido também. Depois não se ouve mais nada. 
 Se cá estivesses podias agora presenciar uma linda 
cena familiar. Eu começo a ler ou a escrever. Também 
a Margot e os pais gostam de aproveitar esta meia hora 
de calma para a leitura. O pai pega, já se vê, no seu querido 
Dickens e senta-se na borda da cama que range sempre 
e que tem colchões que já nem o nome de colchões merecem. 
 Os dois "edredons" que lhe queremos dar, recusa-os : 
 -Não preciso. Assim estou muito bem. 
 Uma vez pegado na leitura, já não se interessa por 
mais nada. Por vezes ri-se, procura ler baixinho uma 
passagem à mãe. Mas ela diz : 
 -Agora não, por favor. Não tenho tempo. 
 Ele fica um bocadinho desapontado. Mas logo que 
descobre outra passagem engraçada, tenta novamente: 
 -Mãezinha, isto tens de ouvir! 
 A mãe está na cama de armar, lê, costura, faz malhas 
e estuda um bocado. De repente ocorre-lhe uma ideia e 
ela não pode guardá-la: 
 -Anne, sabes... Margot, toma nota.  Uns minutos de silêncio. Depois a Margot fecha ruidosamente 
o seu livro. O pai cerra as sobrancelhas num arco 
muito patusco, mas logo a seguir aparece a ruga de leitura, 
sinal de que ele está mergulhado no livro. A mãe, então, 
começa a conversar baixinho com a Margot. Curiosa, 
escuto. 
 Por fim o Pim também escuta... Nove horas. Pequeno 
almoço! 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 10de Setembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Quase sempre que te escrevo, alguma coisa aconteceu 
e, de um modo geral, alguma coisa desagradável. Mas 
desta vez posso contar-te um acontecimento simpático. 
Na quarta-feira (8 de Setembro) estávamos todos, às 
sete horas da tarde, a ouvir rádio. 
 -Here follows the best news of the whole war. Italy 
has capitulated! 
 A Itália capitulou incondicionalmente. 
 às oito começou a emissora de Orange : 
 - Ouvintes! Depois de eu, há uma hora, ter lido as 
notícias do dia, recebemos a maravilhosa notícia da capitulação incondicional da Itália! Deitei ao 
cesto dos papéis com o maior prazer as notícias ultrapassadas. 
 Tocaram "God save the king", "Star spangled banner" 
e também a "Internacional". A emissora de Orange foi, 
como de costume, animadora, mas não demasiadamente 
optimista. 
 Estamos preocupados por causa do sr. Koophuis. Como 
sabes, gostamos todos muito dele. Embora esteja adoentado 
e tenha dores, e embora não possa comer grande coisa e 
tenha de ter muita cautela consigo, continua sempre 
animado, amável e admiràvelmente corajoso. 
 -Quando o sr. Koophuis entra, nasce o Sol - costuma 
dizer minha mãe e tem muita razão. Agora tem de ser 
operado aos intestinos e não pode aparecer durante quatro 
semanas. Havias de ver quando se despediu. Não como 
 alguém que vai ser operado, mas como se simplesmente 
 saísse para fazer compras. 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 16 de Setembro de 1943 Querida Kitty: 
 à medida que o tempo vai passando, mais mal se vão 
dando as pessoas umas com as outras. Quase já ninguém 
ousa abrir a boca à mesa (a não ser para meter a 
comida), pois tudo o que se diz é levado a mal ou mal 
entendido. Eu, por mim, engulo todos os dias "Valeriana-Dispert" por causa das depressões, mas 
isto não me impede de me sentir ainda mais mal disposta no dia seguinte. 
Ai, se pudesse rir, só uma vez, rir de todo o coração, 
seria melhor remédio do que dez dessas pastilhas brancas. 
Mas já nem sabemos o que é rir assim. Por vezes tenho 
receio de ficar muito feia depois de sair daqui e vejo-me 
com uma boca comprimida e rugas de preocupações. 
Os outros não se sentem melhor do que eu : todos aguardam 
o Inverno com medo. 
 Mais uma coisa pouco animadora : um dos homens 
do armazém, um certo M., ficou desconfiado a respeito 
do anexo. Isto podia não ter grande importância se ele 
não fosse tão curioso e se se deixasse convencer fàcilmente. 
Também não sabemos a que ponto é de confiança. 
 Um dia o sr. Kraler quis ser mais cauteloso: à uma 
hora menos dez pegou no chapéu e na bengala, saiu e 
entrou na drogaria da esquina. Cinco minutos depois 
voltou e subiu, com mil cautelas, como um ladrão, a 
escada do anexo. à uma e um quarto quis ir-se embora, 
mas encontrou a Elli, que o impediu, porque o tal M. 
estava no escritório. Kraler voltou para cima e ficou até 
à uma e meia. Depois descalçou os sapatos, pegou neles na mão e, em meias, caminhou até à 
porta do sótão, pisou 
cautelosamente os degraus e depois voltou da rua para 
o escritório. A Elli que conseguira, entretanto, despachar 
o M. do escritório, veio para avisar o Kraler. Mas este 
já estava a fazer as suas acrobacias na escada. O que 
 terão pensado as pessoas na rua que o viram calçar as 
botas? 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 29 de Setembro de 1943 
Querida Kitty: 
 A sra. van Daan faz anos. Oferecemos-lhe, além de 
- um bónus para queijo, carne e pão, um frasco de compota. 
 O marido, o Dussel e os nossos queridos protectores também lhe ofereceram, além de flores, 
coisas de comer. 
 Sinal dos tempos!  Esta semana a Elli teve uma crise de nervos. Tem de[ 
 andar sempre de um lado para o outro para ir buscar 
 isto ou aquilo, muitas vezes mandam-na trocar as coisas 
 por ela se ter enganado. E se a gente se lembra de que ela 
 tem muito que fazer no escritório, que o Koophuis está 
 doente e a Miep na cama por causa de uma constipação, 
 que ela própria torceu um pé, que tem aflições por causa 
 do namorado de quem o pai não gosta, não é difícil imaginar que já não aguenta mais. 
Consolámo-la e pedimos-lhe 
 que, sempre que não tiver tempo para nós, no-lo diga 
 calma e friamente. Assim, ao menos, a lista das compras 
 ficará diminuída. 
 Deve ter havido sarilho com os van Daans. O pai 
 anda furioso, mas não sei porquê. Vai haver zaragata, 
 com certeza. Quem me dera estar longe daqui, quem me 
 dera poder fugir! Aquela gente dá cabo de nós! 
Tua Anne. 
Domingo, 17 de Outubro de 1943 
 Querida Kitty : 
, graças a Deus! Ainda está pálido, 
 Koophuis voltou 
mas já trabalha e está a tentar vender roupas dos van Daans. 
É uma coisa bem penosa, porque se lhes acabou o dinheiro. 
A senhora tem muitas coisas mas não quer desfazer-se 
delas e um fato do marido custa a vender, pois não querem 
dar o que ele pede. Mas ainda há-de haver trapalhada. 
Provàvelmente é o casaco de peles da senhora que vai ser 
sacrificado! Por causa disso houve grande discussão lá em 
cima, depois seguiu-se um período pacífico e agora só se 
ouve: 
 -Oh, meu querido Putti! 
 Eu já estou meio tonta de tantas discussões e das palavras 
feias que se ouvem ùltimamente na nossa casa honrada. 
O pai anda de lábios cerrados e se a gente lhe dirige 
a palavra, assusta-se como se estivesse com medo de algum 
acontecimento desagradável em que tivesse de intervir. 
A mãe, de tanta aflição, tem manchas vermelhas na cara, 
a Margot queixa-se de dores de cabeça, o Dussel não 
 pode dormir, a sra. van Daan lamenta-se todo o dia e 
 eu estou completamente desconcertada. Para dizer a 
 verdade : há ocasiões em que me esqueço de quem são os que 
 andam zangados uns com os outros e quem são os que 
 já fizeram as pazes. A única distracção é o trabalho, e eu  trabalho muito! 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 29 de Outubro de 1943 
Querida Kitty: 
 Houve "tempestade" lá em cima. Como eu já te contei, 
eles não têm dinheiro. Um dia o Koophuis falou-lhes de 
um negociante de peles de quem é amigo. O sr. van Daan, 
então, sempre se resolveu a vender o casaco da mulher. 
É de pele de coelho e tem dezassete anos de uso. Receberam 
trezentos e setenta e cinco florins por ele. É bem pago. 
A sra. van Daan quis guardar o dinheiro para comprar 
coisas novas mais tarde. O marido com muito custo sempre 
conseguiu convencê-la de que o dinheiro era absolutamente 
necessário para o sustento. Não podes imaginar 
como ela ralhou, gritou, vociferou e bateu com os pés no 
chão... E nós cheios de pavor. Estávamos os quatro com 
a respiração suspensa, ao pé da escada, prontos para 
separar aqueles dois furiosos. Cenas assim são tão aflitivas 
que me fazem chorar, de noite, quando estou na cama, 
grata, no entanto, por ter uns momentos de solidão. 
 O sr. Koophuis já tem de ficar novamente em casa. 
O estômago não o deixa em paz e ainda não se sabe se 
a hemorragia acalmou por completo. Foi ao contar-nos 
que se sentia mal e que ia para casa que, pela primeira 
vez, o vimos deprimido. Eu, por mim, não estou doente, 
só não tenho apetite. Mas estão sempre a dizer-me : 
 -Estás com mau aspecto. 
 Tenho de confessar: a minha família esforça-se muito 
para que eu tenha saúde e robustez. Dão-me, alternadamente, 
glucose, levedura, cálcio, óleo de fígado de bacalhau, 
para me fazer aguentar. Mas nem sempre consigo 
dominar os meus nervos. É aos domingos que os sinto 
mais, pois nesses dias reina uma má disposição geral, uma 
espécie de sonolência pesada como chumbo. Não se ouvem ruídos lá fora e qualquer coisa parece 
estar para acontecer. 
É como se pesos grandes me puxassem. Uma voz gritasse na 
escuridão, insondável. 
 indiferentes, até o pai, mas 
 Nessa altura todos me são muito amigos, sobretudo a mãe 
 e a Margot. Ando por toda a casa, de um quarto 
para o outro escada acima, escada abáixo. Sinto-me como 
um pássaro a quem cortaram as asas ebate contra as grades da 
gaiola estreita. em mim soa como que um grito: para fora! Tenho saudades, 
 -Quero sair. Sair daqui, para o ar livre, quero poder rir à 
vontade!Não há resposta! Mas sei que esses gritos não 
 têm poder, e deito-me na cama para matar estas horas tão 
terrivelmente silenciosas e cheias de angústia. 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 9 de Novembro de 1943 
Querida Kitty : 
 O pai, cuja constante preocupação é a de nos distrair e, 
ao mesmo tempo, de nos cultivar, mandou vir o prospecto 
de um instituto que dá lições por correspondência. A Margot 
já folheou o calhamaço por três vezes mas ainda não 
,encontrou o que queria. Julgava ela que tinha de pagar 
o curso com o seu dinheiro da semana e, por isso, achava 
 tudo demasiado caro. Mas o pai mandou vir uma lição 
para experimentarmos : latim para principiantes. A 
 Margot atirou-se ao trabalho e mandou depois vir o curso 
 completo. 
 Embora eu gostasse de aprender latim, acho-o ainda 
 difícil de mais. 
 Mas para que eu também possa aprender alguma coisa 
 nova, o pai pediu ao sr. Koophuis que procurasse uma 
 bíblia para crianças. Quer que eu fique a conhecer o 
 Novo Testamento. 
 -Queres dar à Anne uma bíblia para a festa de Ghanuca? 
-perguntou Margot admirada. 
 -Sim... enfim... acho que o S. Nicolau será a melhor 
 ocasião para isso. Jesus não liga lá muito bem com a festa 
de Ghanuca-foi a resposta do pai. 
 Estragou-se o aspirador. Agora tenho eu de limpar o 
tapete, todas as noites, com uma escova velha. E isto 
dentro de um quarto com as janelas fechadas, com a luz 
eléctrica acesa, onde está um calor sufocante. 
 -Isto não acaba bem-pensei de mim para mim. 
A mãe começou a ter dores de cabeça por causa do pó 
que se fixava no quarto. O pó, ao fim e ao cabo, não 
desaparecia e o pai achava que toda a sala tinha um aspecto 
sujo. A ingratidão é a paga de muita gente. 
Agora há menos discussões, só o Dussel é que anda 
zangado com os van Daans. Quando nos fala da sra. van 
Daan diz "a vaca estúpida" ou "a velha cabra.", e ela, em 
contrapartida, chama-lhe a ele, que tem um curso superior 
e é imfalível, "a solteirona" ou "o solteirão chéché"! Um burro a chamar burro a outro! 
 Tua Anne 
Segunda-feira, 8 de Novembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Se te desses ao trabalho de ler todas as minhas cartas 
umas atrás das outras, verias que as escrevi com as mais 
diversas disposições. É aborrecido ser-se dependente da 
disposição de momento, aqui no anexo. Mas isto não 
acontece só comigo, é o mesmo com todos os outros. 
Depois de ter lido um livro e ainda estar debaixo de uma 
impressão muito forte, tenho de me meter, a mim própria, 
na ordem antes de aparecer a alguém, senão eram capazes 
de me acharem maluquinha. Decerto já estás a perceber 
que me encontro de novo num período de abatimento e 
de falta de coragem. E nem posso explicar porquê, pois 
não há nenhuma razão especial. Creio tratar-se de uma 
certa cobardia que nem sempre consigo vencer. Hoje, à 
tardinha, quando a Elli estava aqui, tocaram a campainha 
permanentemente e com força. Fiquei logo pálida, tive 
dores de barriga, palpitações e muito medo. De noite, 
deitada na cama, tenho visões terríveis. Vejo-me na prisão, 
sòzinha, sem meu pai e minha mãe. Por vezes ando a 
vaguear por qualquer parte, não sei onde, ou vejo o anexo 
a arder, ou eles vêm, de noite, para nos buscar. Sinto tudo 
isto como se fosse realidade e a ideia de que me vai acontecer alguma catástrofe não me larga. 
 A Miep diz, por vezes, que tem inveja de nós por 
 termos aqui calma e sossego. Em princípio, ela podia ter 
 razão, mas não se lembra de que vivemos sempre com 
 medo. Não consigo já imaginar que o Mundo possa voltar a 
 ser para nós o que era dantes. Digo muitas vezes : "Depois 
 da guerra". Mas digo-o como se se tratasse de um castelo 
no ar e não de um tempo que se tornará, algum dia, para 
mim realidade. Quando penso na nossa vida em casa, na escola, com todas as suas alegrias e 
sofrimentos, em tudo 
o que era "antigamente"; tenho a sensação de não ter sido 
eu quem viveu essas coisas mas sim uma estranha, alguém 
totalmente diferente. 
 Vejo-nos a nós aos oito do anexo, numa pequena 
nuvem, clara e azul, no meio de outras nuvens, pesadas e 
escuras. O nosso lugar ainda é seguro, mas as nuvens estão 
a ficar cada vez mais densas e o círculo que nos separa 
do perigo tão próximo, vai-se apertando. Por fim ficamos todos de tal maneira envolvidos na escuridão que, com o 
desejo desesperado de encontrar uma saída, esbarramos 
uns contra os outros. Olhamos para baixo onde os homens 
 lutam, olhamos para cima onde há felicidade e paz. Mas 
estamos isolados por uma massa grossa e impenetrável que 
nos barra todos os caminhos e nos encerra, como um muro 
invencível, um muro que nos destruirá quando a hora 
 soar. E eu só posso clamar e suplicar: - Oh, círculo, 
círculo, alarga-te e abre-te para nós! 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 11 de Novembro de 1943 
Ode à minha caneta de tinta permanente 
"In memoriam" 
 A minha caneta foi para mim, sempre, uma coisa 
preciosa. Apreciava-a imenso por ter um bico grosso e 
redondo, porque só escrevo bem com bicos assim. Ela 
viveu uma vida de caneta bem longa e interessante, que vou aqui descrever. 
 Quando fiz nove anos, chegou (embrulhada em algodão 
em rama) como "amostra sem valor". Foi a avòzinha que, 
nessa altura, ainda vivia em Aachen, que me enviou uma 
prenda tão generosa. Estava eu precisamente deitada na 
cama, com gripe, e lá fora uivava o vento de Fevereiro. 
A gloriosa caneta vinha num estojo de couro vermelho. 
Mostrei-a, logo que pude, a todas as amigas e conhecidos. 
Eu, Anne Frank, possuidora orgulhosa de uma caneta de 
tinta permanente! 
 Quando fiz dez anos, recebi licença de a levar para a 
escola, e a professora deixou-me escrever com ela. 
 No ano seguinte o meu tesouro teve de ficar em casa 
porque a directora de ciclo, no liceu, só permitia canetas 
vulgares. 
 Quando aos doze anos entrei no Liceu judaico, deram-me 
um estojo novo com duas divisões. Uma era para 
a lapiseira. Esse estojo tinha um fecho "èclair" e era muito 
vistoso. 
 Quando fiz treze, a caneta veio comigo para o anexo 
e foi a minha companheira fiel quando te escrevia a ti ou 
 quando trabalhava. Agora que tenho catorze, chegou ao 
 fim da sua existência. Na sexta-feira saí do meu quarto para escrever junto dos outros, na mesa 
da sala. Mas 
afastaram-me sem piedade, pois a Margot e o pai estavam 
a estudar latim. A caneta ficou em cima da mesa. A Anne 
teve de contentar-se com um cantinho onde a fizeram "dar lustro" aos feijões, quer dizer, limpar feijão vermelho 
que tinha bolor. 
 às seis menos um quarto varri o chão e deitei o lixo 
com os restos dos feijões no fogão. Ergueu-se uma chama 
colossal e eu fiquei satisfeita por isso, porque o fogo tinha 
estado quase apagado. "Os latinos" acabaram de estudar 
e eu recebi licença para voltar à mesa e continuar o meu 
trabalho. Mas a caneta não estava lá. Procurei-a por todos 
os lados, a Margot ajudou-me, depois também ajudou a 
mãe, o pai e o Dussel, mas a minha amiga fiel tinha 
 desaparecido sem deixar vestígios. 
 - Se calhar, deitaste-a ao fogão com os feijões - disse 
 a Margot. 
 - Não posso acreditar - disse eu. 
 Mas quando a hora do jantar chegou sem a caneta ter 
 regressado, já não tínhamos dúvidas: ardeu! E o celulóide 
 que arde tão bem! A triste suposição confirmou-se, quando 
 na manhã seguinte o pai encontrou o "clip" na cinza. 
 Do bico de ouro não restava nada. 
 -Provàvelmente derreteu com o lixo-disse o pai. 
 Só me resta uma consolação : a minha caneta foi 
 cremada, precisamente como eu queria que um dia me 
 fizessem! 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 17 de Novembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Modificações tremendas. Em casa da Elli há difteria 
e ela não pode vir cá durante seis semanas por causa do 
contágio! Agora tudo se tornou complicado cá em casa 
no que respeita aos víveres e às outras compras, não falando 
no nosso desgosto pessoal. O sr. Koophuis ainda está de 
cama e há três semanas que está só a leite e a papas. 
O Kraler tem imenso que fazer! A Margot tinha enviado 
ao professor os seus exercícios de latim que vieram devolvidos 
com as dvidas correcções. O professor parece ser 
um homem amável e também espirituoso e, com certeza, 
está todo contente por ter uma aluna tão boa. A correspondência fáz-se em nome da Elli. 
 O Dussel anda sorumbático. Ninguém sabe porquê. 
Aquilo começou por ele nem falar com o sr. van Daan 
nem com a senhora. Todos nós reparámos nisso. Passados 
uns dias, a mãe falou a sós com ele, dizendo-lhe que não 
era bom arranjar sarilhos. A sra. van Daan era capaz de 
tomar a coisa muito a peito. O Dussel respondeu que o 
sr. van Daan tinha começado a ignorá-lo e a deixar de lhe falar e agora não era ele, Dussel, quem havia de romper 
o silêncio. Mas.ontem, 16 de Novembro, fazia um ano que 
o Dussel entrou cá no anexo. Por esse motivo ofereceu 
flores à minha mãe. A sra. van Daan já tinha, ùltimamente, 
dado a entender que, em tais ocasiões, as pessoas costumam 
oferecer alguma coisa. E, agora, ele ignorou-a completamente. 
Em vez de agradecer o altruísmo com que foi cá 
recebido, calou-se. 
Quando eu lhe perguntei, da parte da manhã, se lhe 
devia dar os parabéns ou antes os pêsames, respondeu-me 
que tanto lhe fazia. A mãe, que queria fazer o papel de 
anjo da paz, não conseguiu nada e, assim, tudo ficou na 
mesma. 
O homem é grande de espírito 
Mas mesquinho nas acÇões. 
 Tua Anne 
Sábado, 27 de Novembro de 1943 
 Querida Kitty: 
 Ontem à noite, antes de adormecer, tive uma visão 
nítida: a minha amiga Lies Estava diante de mim, coberta 
 de trapos e com o rosto escaveirado. Com os seus grandes 
 olhos contemplou-me, 
triste e acusadora, como se quisesse dizer : 
 -Anne, porque é que me abandonaste? Ajuda-me! 
Salva-me deste inferno. 
 Mas eu não posso ajudá-la. Os outros têm de sofrer 
e de morrer e eu não passo de um espectador; só posso 
pedir a Deus que não os deixe morrer e que me devolva 
os meus amigos. Sim, foi precisamente a Lies que eu vi 
e isto compreende-se. Sempre a julguei mal, eu era ainda 
muito infantil e não podia compreender as suas preocupações. 
Ela gostava da sua nova amiga e tinha receio que 
eu lha roubasse. Ai, como deve ter sofrido! Sei-o agora, 
pois já conheço melhor tais ressentimentos! 
 Por vezes pensava nela passageiramente, depois mergulhava 
com egoísmo nos meus divertimentos e 
 preocupações. 
 Não procedi bem e foi por isso que ela olhou para mim 
assim, de rosto pálido e de olhos suplicantes, tão tristes. 
Oh!... se pudesse dar-lhe uma ajuda! 
 Oh! Meu Deus, tenho aqui tudo o que necessito e ela 
foi arrastada para o destino mais duro que há! Tem sido 
pelo menos tão crente como eu, e só desejava o bem. Porque é que fui eleita para viver e ela para morrer? Qual é a 
diferença entre nós? Porque é que estamos tão longe uma 
da outra? 
 Para ser franca, tinha-me esquecido dela há quase 
um ano. Não esquecido por completo, isso não, mas não pensava nela de uma certa maneira, 
assim, como a vi 
agora na sua miséria. 
 Oh! Lies, quem me dera que te pudesse acolher, que 
tu sobrevivesses a esta guerra, porque queria remediar um 
pouco o mal que te causei. 
 Mas quando eu estiver em condições de a ajudar, já 
ela não precisará. Será possível que ainda se lembre de 
mim? E que sentirá ela? 
 Meu Deus, ajuda-a, não a deixes ficar tão só. Faz-lhe 
saber do meu amor e da minha compaixão por ela. Pode 
ser que assim lhe dês força para resistir. Não posso pensar 
mais nisso. Não consigo desprender-me da visão. Sempre 
e sempre vejo os grandes olhos dela fixos em mim 
 Não sei se a Lies traz em si uma fé muito forte ou se 
a obrigaram a tê-la. Não sei, nunca lho perguntei. Oh! 
Lies, Lies, se te pudesse ir buscar, se pudesse dividir 
contigo o que aqui tenho! É tarde demais! não Poder ser 
 eu! ninguém, não posso remediar o mal que as pessoas 
 fazem. 
nunca me esquecerei da Lies e hei-de rezar por ela. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Uma gripe bastante séria impediu-me de te escrever 
mais cedo. É quase uma catástrofe estar-se doente aqui. 
Quando me vinha a vontade de tossir, metia-me depressa 
debaixo dos cobertores e tentava acalmar a garganta, mas 
o resultado era que sempre a comichão aumentava e só 
abrandava com leite e mel ou com pastilhas. Só ao lembrar-me 
dos tratamentos que tive de suportar, fico quase 
tonta. Suores, compressas no pescoço, ligaduras húmidas 
e secas no peito, bebidas quentes, estar deitada sem me 
mexer, gargarejar, pincelar, almofada eléctrica, botijas e, 
de duas em duas horas, ver a temperatura. E queriam que 
eu, assim, ficasse bem! O pior de tudo era que o Dussel 
fazia de médico, encostando a cabeça com brilhantina ao 
meu peito para verificar se havia ruídos lá dentro. Não 
só os seus cabelos me faziam muitas cócegas como também tinha vergonha dele, apesar de ser um facto irrefutável 
ele ter tirado, há trinta anos, o curso de medicina e possuir 
o diploma de doutor. Mas o que tem ele que procurar 
no meu coração? Eu não o amo. O que se passa no meu 
coração não é ele que o pode descobrir. Acho mas é que 
ele devia, antes de mais nada, mandar fazer uma limpeza 
aos ouvidos, pois estou certa de que ouve bastante mal! 
 Mas não falemos mais na minha doença! Estou bem 
agora; cresci um centímetro e aumentei um quilo. Ainda 
estou pálida mas cheia de actividade e contente por poder 
voltar a trabalhar. 
 Não tem havido coisas novas. Ao contrário do que 
costuma suceder, todos se entendem bem cá em casa. 
Não tem havido zangas. Há, pelo menos, seis meses que 
não conhecíamos um ambiente tão pacífico. 
A Elli ainda não pode vir cá. 
 No Natal vamos receber uma ração suplementar: 
azeite, doces e geleia de nabo para pôr no pão. A minha 
prenda é bonita e corresponde aos tempos que correm: 
um broche feito de uma moeda de dois cêntimos e meio, 
tão polidinha que resplandece. O Dussel pediu à Miep 
que fizesse uma torta para a minha mãe e para a sra. van 
Daan, e ela já tem tanto que fazer! Tenho também uma 
prenda para a Miep e a Elli: há perto de dois meses que 
venho poupando o açúcar que devia deitar sobre a papa, 
e agora o sr. Koophuis vai levá-lo para mandar preparar 
doces. 
 O tempo está mole, o fogão deita fumo, a comida 
pesa-nos no estômago, o que é aliás comprovado por certos 
ruídos pouco estéticos. 
 A guerra não ata nem desata... Disposição abaixo de zero! 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Já te tenho dito muitas vezes que o ambiente aqui 
depende da nossa disposição. E eu, a tal respeito, estou 
cada vez pior. Pode aplicar-se-me o dito: "alegria celeste, 
tristeza mortal". Sinto uma "alegria celeste" quando me 
lembro como estou bem aqui em comparação com outros 
 judeus. "Tristeza mortal"... invade-me, sim, quando ouço 
contar que a vida lá fora continua. Hoje esteve cá a 
sra. Koophuis e contou que a sua filha Corrie faz desporto, 
passeia numa canoa com amigos e representa num teatro de amadores. Não sou invejosa, mas quando oiço falar 
em tais coisas, apetecia-me tomar parte nelas, pelo menos 
uma vez; queria divertir-me como todos os outros, não ter 
 preocupações, ser feliz, rir! Justamente nesta época tão 
 bonita, em que há as férias do Natal e do Ano Novo 
 estamos aqui como párias. Bem sei que não devia escrever 
tais coisas, por parecer que sou ingrata e exagerada. Mas 
mesmo que tu penses agora mal de mim... não posso 
guardar tudo isto e cito mais uma vez aquela frase que 
escrevi no princípio: "O papel é paciente!" 
 Quando chega alguém de fora, ainda com a frescura 
do cheiro a vento nas roupas e com a cara vermelha do 
frio, apetecia-me enterrar a cabeça nos cobertores para não 
pensar sempre no mesmo : "Quando é que poderemos ir 
lá para fora e respirar o ar e a liberdade?!" Mas não me 
posso esconder, pelo contrário, tenho de me mostrar direitinha 
e corajosa e, contudo, os pensamentos não se deixam 
dominar, vêm e tornam a vir. Acredita, quando se está 
fechada há ano e meio, chegam momentos em que se julga 
não se poder suportar mais. Ainda que eu seja injusta e 
ingrata, não sou capaz de negar o que sinto! Apetecia-me dançar, assobiar, andar de bicicleta, ver 
o Mundo, gozar 
a minha juventude, ser livre. Digo-te isto a ti, mas não 
o posso dizer a mais ninguém porque se todas as oito 
 pessoas cá no anexo se lamentassem e mostrassem caras 
infelizes, aonde iríamos então parar? 
 Por vezes penso: 
"Será possível que alguém me compreenda Ou só 
vêem em mim a adolescente que não quer outra coisa 
senão divertir-se?" Não sei e não posso falar sobre isto com 
ninguém, pois era capaz de desatar a chorar. Todavia... 
Seria um alívio poder chorar uma vez à vontade A despeito 
de todas as teorias, de todos os esforços, sinto a cada 
passo a falta de uma mãe que me compreenda. Por isso 
penso sempre, ao trabalhar ou ao escrever, que quero ser, 
mais tarde, para os meus filhos, aquela mãe que eu desejava 
ter, essa "mamsi" que não arranja logo uma tragédia com 
tudo o que se diz sem intenção, mas que toma antes a 
sério o que preocupa os seus filhos intimamente. Estou a 
sentir que não me exprimo como queria, mas a palavra 
"mamsi" já diz tudo. Sabes o que descobri para chamar 
a mãe com um nome parecido com Mamsi? Chamava-lhe 
muitas vezes "Mansa" e depois ficou Mansi, o que é 
 uma "Mamsi" incompleta. Muito gostava eu de poder 
 honrá-la com mais um tracinho no "n. Mas a mãe de 
 nada suspeita, o que é bom, porque se soubesse ficaria 
 infeliz.  Basta! Já aliviei o coração da minha "tristeza mortal", 
 e sinto-me melhor. 
 Tua Anne 
Sábado, 25 de Dezembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Hoje, primeiro dia de Natal, tenho de pensar constantemente 
no Pim e naquilo que ele me contou, o ano passado, 
 do seu primeiro grande amor. Nessa altura não 
penetrei tão bem como hoje o significado das suas palavras. 
Oh! se ele me falasse outra vez naquilo, mostrar-lhe-ia 
que agora o còmpreendo. 
 Creio que o Pim, que tantos segredos conhece dos 
outros, precisou de desabafar, pelo menos uma vez; pois 
o Pim não costuma falar de si e suponho que nem a Margot 
suspeita do que ele sofreu. 
 Pobre Pim, a mim não engana ele, eu sei que ainda 
não se pôde esquecer! Nunca se poderá esquecer. É uma 
pessoa equilibrada. Oxalá eu seja parecida com ele, mas 
sem precisar de passar pelo que ele passou. 
Tua Anne. 
Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Pela primeira vez tive uma prenda pelo Natal. As 
raparigas, o Koophuis e o Kraler fizeram-me uma surpresa 
encantadora. A Miep fez um bolo enfeitado com "PapEl" 
conseguiu arranjar meio quilo de bolachas de antes 
da guerra. Além disso, o Peter, a Margot e eu recebemos 
um frasco de "yogurth" e os adultos uma garrafa de cerveja. 
Tudo estava embrulhado com graça e todos os pacotinhos 
traziam escrita uma quadra. 
 Os dias de Natal passaram tão depressa! 
Tua Anne 
Quarta-feira, 29 de Dezembro de 1943 
Querida Kitty: 
 Ontem à noite, estive muito triste. Tive a visão da avòzinha e da Lies! Avòzinha, querida avòzinha! Não 
compreendemos bem quanto ela sofria. Só pensava em 
nós, mostrando-se sempre muito compreensiva em face 
dos nossos problemas. Sofria de uma grave doença. 
 Sabê-lo-ia ela e nunca falou nisso para não nos afligir? 
A avòzinha era sempre amável e boa e ninguém a procurava 
sem ouvir um conselho ou uma consolação, ou 
sem receber uma ajuda. Mesmo quando eu estava insuportável, 
a avòzinha encontrava sempre para mim uma desculpa. 
Avòzinha, dize, gostaste muito de mim ou também 
não me compreendeste? Oh! Não sei. 
 Como a avòzinha se deve ter sentido só, tão só, embora 
estivéssemos todos junto dela. Sim, porque uma pessoa 
pode sentir-se só, mesmo no meio de muita gente amiga, 
se souber que não ocupa um lugar muito especial no coração 
de alguém. E a Lies? Ainda viverá? O que estará a fazer? 
Meu Deus, não a deixes morrer, faze com que ela volte 
para junto de nós. Pensando em ti, Lies, compreendo 
qual podia ter sido o meu destino e ponho-me muitas 
vezes no teu lugar! Mas, então, porque é que me afligem 
tanto as condições em que vivo aqui no anexo? Não devia 
eu sentir-me alegre e satisfeita, excepto quando penso na 
Lies e nos outros que sofrem como ela? 
 Sou egoísta e cobarde! Não sei porque é que os meus 
sonhos e pensamentos só giram à volta das coisas tristes, 
até quase me apetecer gritar. De certo não tenho bastante confiança em Deus! Afinal Ele deu-me 
tanta coisa que não 
mereço e eu só faço asneiras. 
 "Quando pensamos no próximo, devíamos chorar". 
A dizer a verdade não devíamos fazer mais nada do que 
chorar. Resta-nos pedir a Deus que faça um milagre e 
que salve aquela pobre gente! 
 E eu rezo do fundo do meu coração. 
Tua Anne. 
Domingo, 2 de Janeiro de 1944. 
Querida Kitty: 
 Hoje de manhã, ao folhear o meu diário, encontrei 
várias cartas em que falo da mãe, num tom impulsivo, 
quase irado. Assustei-me e perguntei a mim própria: 
"Isto és tu, a Anne, que fala assim com tanto ódio?" 
 Com o livro aberto na mão, fiquei algum tempo sentada 
a tentar descobrir a razão desse ódio, dessa ira. Fiz os 
possíveis para compreender a Anne daqueles dias e para a desculpar, pois a minha consciência não acalma enquanto 
eu não conseguir explicar-te como foi que cheguei a fazer 
tamanhas acusações. Sofria e ainda sofro de depressões e, 
nestas alturas, sou-falando em linguagem figurada-como 
um mergulhador debaixo de água, que vê tudo deformado. 
Via tudo subjectivamente e nem tentava reflectir com 
calma sobre aquilo que os outros diziam. Se o tivesse feito, 
teria, com certeza, compreendido melhor o sentido dos 
argumentos dos meus antagonistas e teria procedido de 
outro modo e sem magoar ninguém com o meu temperamento impetuoso. 
 Só me via a mim, fechava-me na minha concha, não 
fazia caso dos outros e sentia alívio ao confiar ao papel 
as minhas alegrias, a minha troça e, também, a minha 
tristeza. Este diário é para mim de grande valor por se 
ter tornado o meu livro de memórias. Mas muitas das suas 
páginas podia agora riscá-las ou escrever por baixo "já 
passou". 
 Muitas vezes ficava furiosa com a mãe e ainda agora 
me acontece o mesmo. Ela não me compreendia, é uma 
verdade, mas eu também não a compreendia. Sou sua 
filha e ela é boa e carinhosa para mim. Mas como lhe 
criava tantas vezes situações desagradáveis, é compreensível que me ralhasse. Pois, por isso 
mesmo e ainda por 
tantas coisas que ela sofria, é que não pôde deixar de 
ficar nervosa e irritada. Eu não compreendia isso, ofendia-a, 
era insolente e agressiva e então ela ficava triste. E assim 
havia sempre entre nós algum mal-entendido e desgostos, 
o que não era agradável para nenhuma de nós. Mas tudo 
isso passou! 
 Que eu não quisesse admitir essas coisas e tivesse tido 
 pena de mim própria, também se compreende. As minhas 
atitudes eram arrebatamentos de maldade, das quais, numa 
vida normal, me teria libertado de maneira completamente 
diferente e sem testemunhas... Teria, por exemplo, sózinha 
no meu quarto, batido fortemente com os pés no chão, 
desabafando sem que ela percebesse o que se passava no 
meu coração. 
 Aquele tempo em que a mãe chorava por minha causa 
já passou. Sou mais sensata, mais razoável e os nervos da 
mãe também acalmaram. A maior parte das vezes calo-me 
 quando ela me arrelia, e ela faz o mesmo. Assim, as coisas 
 córrem bastante melhor. Amar a mãe incondicionalmente, 
 como fazem tantas crianças, não me é possível; qualquer 
 coisa em mim se revolta contra isso. Mas acalmo a minha 
 consciência com a convicção de que sempre é melhor 
 escrever estas coisas no papel do que magoar os sentimentos 
 de minha mãe.  Tua Anne 
Quarta-feira, 5 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Hoje vou confiar-te duas coisas o que, talvez, me leve 
um pouco de tempo. Mas é-me indispensável desabafar, 
e só contigo gosto de o fazer, pois tu guardas silêncio, aconteça o que acontecer. Em primeiro 
lugar, trata-se da mãe. 
Bem sabes que me tenho queixado dela muitas vezes e 
que me tenho esforçado sempre por ser boa para ela. 
De repente descobri o que não me agrada na mãe. Ela 
própria tem-nos dito que vê em nós antes amigas do que 
filhas. Isso é uma coisa bonita, mas uma amiga não pode 
substituir a mãe. Eu queria ter na mãe um exemplo, um 
modelo a seguir, queria poder erguer para ela os olhos. 
Pressinto que a Margot pensa de outra maneira a tal 
respeito e que nunca podia compreender as minhas ideias, 
e o pai evita falar no assunto. Na minha imaginação uma 
mãe tem de ser, antes de mais nada, alguém com muito 
tacto, principalmente quando se trata dos filhos. Não deve 
fazer como faz minha mãe, que se ri quando eu choro 
lágrimas que não são de dor física mas de dor íntima. 
 Há uma coisa-pode parecer incompreensível-que 
nunca lhe perdoarei. Quando um dia tive de ir ao dentista, 
a mãe e a Margot acompanharam-me e acharam bem que 
eu levasse a bicicleta. Mas quando, acabado o tratamento, 
estávamos à porta do dentista, as duas disseram-me que 
ainda iam ao centro da cidade fazer compras e ver umas 
coisas-já não sei bem o que era. Eu queria ir também, 
mas não me deixaram por causa da bicicleta. Fiquei 
furiosa e as lágrimas vieram-me aos olhos, mas as duas 
começaram a rir. Então perdi a cabeça e, no meio da rua, 
deitei-lhes a língua de fora. Por acaso passou uma mulher 
do povo que me olhou horrorizada. Fui sózinha para casa 
e chorei muito. 
É estranho, mas essa ferida que a mãe, há tanto tempo, 
me causou, arde ainda todas as vezes que penso nisso ou 
quando me zango com a mãe. 
 Falar do segundo assunto custa-me muito, pois trata-se 
de mim própria. Li ontem um artigo de Sis Heyster sobre 
o corar. Aquilo parecia ser escrito para mim, embora eu 
não core tão fàcilmente. Mas o resto aplica-se-me perfeitamente. 
Diz ela que uma rapariga, ao entrar na puberdade, 
fica mais calma e mais pensativa e que se debruça sobre o milagre do seu corpo. É precisamente o que acontece 
comigo ùltimamente e agora até tenho vergonha da 
Margot e dos pais. Mas a Margot que, em outras ocasiões, 
é muito mais acanhada do que eu, não faz cerimónias com 
estas coisas. 
 Dou-me conta das transformações exteriores do meu 
corpo e, mais ainda, daquilo que está a ficar tão diferente 
no meu íntimo. E como não falo sobre isto com ninguém, 
tento compreender sòzinha. 
 De todas as vezes que tenho o "incómodo" - e já me 
veio três vezes - tenho a sensação, apesar das dores e de 
tudo o que é desagradável e repugnante, de trazer comigo 
um segredo muito delicado. Alegro-me quando vivo de 
novo este meu segredo. Diz Sis Heyster que as raparigas 
da minha idade ainda não têm segurança mas que pouco 
a pouco se vão revelando e começam a ter ideias, pensamentos 
e hábitos próprios. Vim para o anexo quando 
tinha treze anos e, por isso, fui obrigada a reflectir mais 
cedo sobre o Mundo e a fazer a descoberta de mim mesma 
como de um ser humano que deseja ser independente. 
Por vezes, de noite, não posso deixar de tocar nos meus 
seios e de sentir o bater calmo e seguro do meu coração. 
 Já antes de vir para aqui sentia, inconscientemente, 
 coisa parecida, pois uma vez, quando dormi com uma 
 amiga minha, perguntei-lhe se, como prova de amizade, 
 não podíamos tocar nos seios uma da outra, mas ela 
 recusou-se. Eu gostava de lhe dar beijos e beijei-a 
 muitas vezes. 
 Sempre que vejo uma figura de mulher nua, como, por 
 exemplo a Vénus, fico como em êxtase. É uma coisa tão 
 bela que tenho de me dominar para não desatar a chorar! 
 Ai! Quem me dera ter uma amiga! 
 Tua Anne 
 Quinta-feira, 6 de Janeiro de 1944 
 Querida Kitty: 
 O meu desejo de falar com alguém tornou-se tão forte, 
ùltimamente, que escolhi, não sei porquê, o Peter como 
vítima. Quando eu estava lá em cima com ele sentia-me 
bem. Mas como é modesto e incapaz de pedir a alguém 
para o deixar em paz, mesmo se se sentir molestado, eu 
nunca tinha coragem de me demorar com receio de que 
me pudesse achar aborrecida. 
 Discretamente, faço agora tentativas para ficar mais um bocadinho para conversarmos e ontem, por acaso, 
houve um pretexto bom, pois o Peter tem a mania das 
palavras cruzadas e se pudesse não faria mais nada em 
todo o dia. Ajudei-o, e assim ficámos à mesa, um em 
frente do outro, ele na cadeira, eu no divã. 
 Sempre que eu olhava para os seus olhos escuros e 
observava o sorriso bailar-lhe à volta da boca, tinha uma 
sensação estranha. Adivinhava-lhe o íntimo. Lia-lhe no 
rosto a insegurança, o desamparo e, ao mesmo tempo, um 
laivo de certeza de se saber homem. O seu embaraço 
enterneceu-me e precisei de o olhar de novo nos olhos. 
Apeteceu-me pedir-lhe : 
 - Conta-me tudo o que sentes e não tenhas medo de 
que eu seja indiscreta. Contigo nunca o serei! 
 Mas a tarde foi passando e nada de especial aconteceu 
a não ser que lhe falei a respeito do corar mas, evidentemente, não lhe disse tudo o que escrevi 
aqui. Só falei 
nisso por causa dele, para ele sentir mais segurança. quando 
de noite, na cama, pensei em tudo aquilo, a situação 
parecia-me desagradável e achei então um exagero da 
minha parte cobiçar assim as boas graças do Peter. Acho 
esquisito a gente tentar tanta coisa para satisfazer um desejo. Dou-me a mim como prova. 
Resolvi procurar mais 
vezes o Peter e fazê-lo falar. Não julgues que estou apaixonada por ele, não, nem pensar nisso. 
Se os van Daans, 
em vez de um filho, tivessem uma filha, eu faria as mesmas 
tentativas para conseguir a sua amizade. 
 Hoje de manhã acordei às sete horas e lembrei-me 
nitidamente do que sonhei. Estava eu sentada à mesa, em 
frente do Peter... Folheávamos um livro ilustrado. 
O sonho tinha sido tão nítido que até ainda me lembro 
das gravuras. Mas não acabou aqui. Os nossos olhares 
encontravam-se e eu via os olhos do Peter, tão belos, de 
um castanho aveludado. Depois o Peter disse, baixinho 
e carinhoso : 
 -Se eu soubesse, já te teria procurado há mais tempo. 
 Virei-me bruscamente porque estava muito comovida. 
Então senti a face do Peter junto da minha e senti-me 
tão bem, ai! tão bem! 
 Quando acordei parecia-me sentir ainda o seu contacto 
e tive a sensação de que os seus queridos olhos castanhos 
tinham penetrado até ao fundo do meu coração e que 
tinham compreendido quanto eu gostava dele, e ainda 
gosto. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, fiquei 
triste por ele estar tão longe de mim, mas também fiquei 
contente por sentir com tanta força que ainda gosto do 
 Peter. Estranho: tenho aqui visões tão nítidas. Uma noite  apareceu-me a avó paterna com tanta nitidez que lhe consegui 
ver as rugazinhas aveludadas na pele. Depois veio a avó materna como anjo da guarda e depois a 
Lies, que para mim é o 
 símbolo da infelicidade das minhas amigas e de todos os 
judeus. Ao rezar por ela incluo sempre os judeus e todos 
 os homens perseguidos e infelizes. 
 E agora apareceu-me o Peter, o meu querido Peter! 
 Nunca o tinha visto tão claramente na minha imaginação. 
 Não tenho dele nenhuma fotografia, nem é preciso, pois 
 tenho-o bem gravado na memória! Como é bom e simpático! 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 7 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Que estúpida que sou. Nunca me lembrei de te contar 
a história dos meus admiradores. 
 Ainda eu era pequena, andava no jardim-escola, 
quando simpatizei com Karl Samson. Ele já não tinha 
pai e vivia com a mãe em casa de uma tia. Bobby, o filho 
desta, era um rapazinho esperto, esbelto e moreno, que 
conseguia sempre chamar a atenção sobre si mais do que 
o Karl, gordinho e patusco. Mas eu não me importava 
com o aspecto exterior e fui amiga do Karl, durante anos. 
Éramos camaradas autênticos. 
 Depois o Peter Wessel entrou na minha vida e foi a 
minha primeira paixão. Ainda nos vejo-de mãos dadas - 
a correr pelas ruas, ele com um fato de linho, eu com 
um vestido de Verão. 
 Quando ele foi para o liceu passei eu para a última 
classe da escola primária. Ia buscar-me à escola ou eu ia 
buscá-lo a ele ao liceu. O Peter era um lindo rapaz, alto, 
esbelto, bem feito, com uma cara calma, séria e inteligente. 
Tinha cabelo escuro, a pele tostada, grandes e belos olhos 
castanhos e um nariz afilado. Do que eu mais gostava nele 
era do sorriso que lhe dava um ar de maroto. 
 Passei as férias grandes com a família, fora. Quando 
regressámos o Peter tinha mudado de casa, morava agora 
com um rapaz mais velho do que ele e de quem era muito 
amigo. Decerto esse rapaz fez-lhe ver que eu não passava, 
afinal, de uma criança e o Peter não quis saber mais de 
mim. Eu, ao princípio, nem queria acreditar, tanto gostava 
dele! Por fim tive de me conformar, pois, se fosse a 
andar atrás dele, chamavam-me maluca. 
 Os anos iam passando. O Peter andava com raparigas da sua idade, e a mim nem sequer me cumprimentava já, 
mas eu não conseguia esquecê-lo. Quando entrei para o 
liceu judaico, muitos dos rapazes apaixonaram-se por 
mim. Achava aquilo engraçado, mas não sentia nada 
de especial por nenhum deles. Mais tarde era o Harry 
quem andava atrás de mim. Mas como já disse: nunca 
mais me apaixonei. 
 Há um provérbio que diz: "O tempo cura todos os 
males". Parecia que era assim mesmo, e eu imaginava 
que me ia esquecendo do Peter e que já nem gostava dele. 
Mas a recordação vivia tão fortemente no meu subconsciente 
que, um dia, tive de confessar a mim mesma o ciúme que 
sentia de todas as raparigas do seu círculo. Por força quis 
então achá-lo pouco simpático. 
 Hoje de manhã compreendi, no entanto, que nada se 
modificou, antes pelo contrário: á medida que os anos 
iam passando e eu me desenvolvia, o amor pelo Peter 
crescia em mim. Compreendo que ele me tenha achado 
infantil, mas não posso deixar de sentir uma certa dor 
por me ter esquecido tão depressa. Vi-o muito nitidamente 
diante de mim e sei que nunca ninguém poderá encher da 
mesma maneira o meu coração. 
 O sonho confundiu-me. Quando o pai me beijou esta 
 manhã, apeteceu-me gritar: "Ai!, se fosses antes o Peter!" 
 Só posso pensar nele e durante todo o dia repito de mim 
 para mim : 
 -Oh, Peter, meu querido Peter! 
 Ninguém me pode ajudar. Tenho de continuar a viver 
 e a pedir a Deus que me deixe reencontrar o Peter logo 
 que eu fique em liberdade. Então há-de ler nos meus 
 olhos que o amo e há-de dizer : 
 -Oh! Anne, se eu soubesse já te tinha procurado há 
 mais tempo! 
 O pai disse-me uma vez, ao falar comigo sobre sexualidade, que eu ainda não podia 
compreender este desejo, 
 esta ânsia. Mas eu sabia que podia compreender, e agora 
 compreendo sem dúvida! Nada me é tão caro como tu, 
 meu Peter! 
 Contemplei a minha cara no espelho e achei-a transformada. Os meus olhos são agora muito 
claros e profundos, 
a pele é rosada como a não tinha há muitas semanas, e a 
boca parece-me mais meiga. Tenho um ar de pessoa feliz 
e, todavia, há qualquer tristeza no meu olhar que afugenta 
o sorriso dos meus lábios. Não, não posso ser feliz, porque 
sei que os pensamentos do Peter não estão comigo. Mas 
sinto os seus queridos olhos fixos em mim e a sua face, 
suave e fresca, contra a minha.  Oh! Peter, Peter, como me hei-de libertar da tua imagem? 
Qualquer outro que venha a tomar o teu lugar 
não passará de um substituto mesquinho! É a ti que amo, 
e de tal forma te amo que o amor não coube no meu 
coração e rompeu para se me revelar em toda a sua imensa 
plenitude. 
 Ainda há uma semana, mesmo ainda ontem, se me 
tivessem perguntado com quem eu queria casar-me, teria 
respondido:-Não sei.-Mas agora queria gritar alto para 
que me ouvissem: 
 -Quero o Peter, só o Peter! Amo-o com todo o meu 
coração, com toda a minha alma-mas não quero que ele 
toque senão no meu rosto. 
 Estive hoje no sótão junto da janela aberta e imaginei 
conversar com ele. Acabámos por chorar os dois e senti 
nitidamente a sua boca e o seu rosto cheios de ternura 
por mim. 
 -Oh, Peter, pensa em mim! Vem, meu querido, querido 
 Peter! 
Tua Anne. 
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 1944. 
Qerida Kitty: 
 Há quinze dias voltou a Elli. A Miep e o Henk não 
puderam vir durante dois dias porque comeram alguma 
coisa que lhes fez mal ao estômago. 
 A maior novidade que tenho a dar-te é que me interesso 
agora pelo "ballet" e treino-me a dançar todas as noites. 
A Mansa transformou-me um vestido de renda azul-claro 
num ultramoderno vestido de "ballet". Uma fita passa no 
decote e cruza sobre o peito. Um laçarote enorme remata 
tudo. Mas em vão tentei transformar os meus sapatos de 
ginástica em sandálias de "ballet". Os meus membros, que 
tinham ficado quase rígidos, começam a tornar-se flexíveis 
como eram dantes. Um exercício estupendo, é assim: 
sentada no chão e segurando em cada mão um calcanhar, 
levantar as duas pernas sem dobrar os joelhos. Para fazer 
isto sento-me em cima de uma almofada para não torturar 
tanto o meu pobre cóccix. 
 Os adultos estão a ler um livro: Manhã sem nuvens. 
A mãe acha-o muito bom. Focam-se nele problemas da 
juventude. Cheia de ironia pensei de mim para mim: 
 -E se tu tratasses antes de compreender os jovens 
com quem vives? Julgo que a mãe está convencida de que a Margot e eu vivemos nas melhores relações do mundo 
com os nossos pais e que ninguém compreende tão bem 
os filhos como ela. Mas em boa verdade isso só sucede 
com a Margot e, creio-o bem, porque ela não tem pensamentos 
e problemas como eu. Não tenciono fazer ver à mãe que no íntimo de uma das suas filhas as 
coisas se 
 passam de uma maneira muito diferente do que ela imagina. 
 Ficaria admirada mas não seria capaz de resolver nada a 
meu respeito. Sentir-se-ia apenas triste, e não vale a pena 
 dar-lhe este desgosto, principalmente porque tudo, ao 
fim e ao cabo, ficaria na mesma. 
 A mãe bem sente na Margot uma dedicação maior do 
que em mim. Mas está convencida de que também eu me 
 modificarei. A Margot tem agora para mim muitos carinhos. Parece-me tão diferente! Já não 
troça de mim e 
 é uma amiga a valer. Já não vê em mim apenas a miudinha com quem não se pode falar a sério. 
 É curioso : por vezes olho para mim como se fosse 
 outra pessoa a olhar-me. Estou contemplando esta Anne 
 com serenidade e calma e folheio o livro da minha vida 
 como se fosse pessoa estranha. Antigamente, na nossa casa, 
 quando eu ainda não cismava tanto, estava convencida 
 de que não pertencia ao pai, nem à mãe, nem à Margot, 
julgava-me uma espécie de ovo de cuco. Representava 
sòzinha o papel de uma órfã e acabava por achar-me 
ridícula nesta figura tão triste quando, na realidade, 
levava uma boa vida. Depois seguiu-se um tempo em que 
me esforçava por ser amável: todas as manhãs, quando 
ouvia alguém subir a escada do nosso quarto, fazia votos 
para que fosse a mãe para nos dar os bons-dias. Cumprimentava-a com meiguice e ficava muito 
contente por ela 
olhar para mim com carinho. às vezes ela, por causa disto 
ou daquilo, não estava tão simpática e, então, eu ia para 
a escola muito triste e desconsolada. Quando regressava, 
pelo caminho, arranjava desculpas para ela, pensava que 
decerto tinha preocupações; e entrava em casa bem disposta 
e alegre, ansiosa por contar as minhas aventuras... até 
suceder a mesma coisa e eu ir, de novo, triste e pensativa 
para a escola. Por vezes resolvia mostrar o meu desapontamento. Mas ao voltar para casa tinha 
sempre tantas 
coisas para contar, que me esquecia. Só queria a todo o 
custo que a mãe me desse atenção. 
 Depois veio um período em que já não me importava 
de ouvir os passos na escada. Sentia-me só, enterrava a 
cabeça na almofada e chorava. Aqui é tudo muito pior. 
Tu bem o sabes. Mas Deus deu-me uma ajuda na minha miséria: o Peter! Pego no medalhão que 
trago sempre 
comigo, beijo-o e penso:  -Que tenho eu que ver com toda esta trapalhada? 
Tenho o meu Peter. E o meu segredo. 
 Desta maneira hei-de vencer muitas coisas. Haverá 
quem adivinhe o que se passa na alma de uma adolescente? 
Tua Anne 
Sábado, 15 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Não faz sentido eu repetir-te constantemente, com todos 
os pormenores, as zangas e as disputas. Só te quero contar 
que guardamos agora muitas coisas separadas, o pingue, 
a carne e a manteiga, por exemplo, e fritamos as nossas 
batatas à parte. Conseguimos mais um bocado de pão de 
centeio suplementar, porque às quatro horas da tarde os 
nossos estômagos já não aguentavam com a fome. 
 Aproxima-se o aniversário da mãe. Já recebeu açúcar 
do Kraler para o dia da festa, e agora a sra. van Daan 
está com inveja por ele não lhe ter dado nenhum a ela 
no dia dos seus anos. Não é lá prazer nenhum assistir todos 
os dias a cenas de choros e ouvir gritos de raiva. Podes 
crer, Kitty, estamos cheios até não poder mais. 
 A mãe exprimiu o desejo de não ver os van Daans 
durante quinze dias. Mas é um desejo que ninguém lhe 
pode satisfazer. Eu pergunto-me se será sempre assim na 
vida: as pessoas obrigadas a viver juntas durante muito 
tempo acabam por ter conflitos. Ou temos nós pouca 
sorte neste caso especial? A maioria dos homens será na 
verdade egoísta e mesquinha? Em certa medida, acho bem 
adquirir aqui alguns conhecimentos humanos, mas agora 
já me chega e sobra. A guerra ainda não acabou, e as 
nossas disputas, a fome de ar e de liberdade continuam. 
Temos de tentar "to make the best of it". 
 Para que estou eu aqui a fazer sermões? Se continuo 
assim, ainda dou numa velha seca e casmurra! E gostava 
tanto de ser uma moça a valer! 
Tua Anne. 
Sábado, 22 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Podes tu dizer-me porque é que a maioria das pesoas 
esconde tão ciosamente o que lhe vai no íntimo? E como se explica que eu me porte, junto das outras pessoas, tão 
diferentemente do que deveria ser? Deve haver razões 
para isso. Mas acho horrível não nos confiarmos inteiramente, 
mesmo àqueles que nos são mais queridos. Tenho 
a sensação de ter ficado mais velha depois daquele sonho, 
de ter agora mais "personalidade". Com certeza ficas 
admirada por eu te confessar que até vejo os van Daans 
com outros olhos. Não vejo as suas discussões e os seus 
atritos só do nosso ponto de vista parcial. Porque será 
que estou tão modificada? 
 Mas escuta. Reflecti sobre tudo isto e cheguei à conclusão 
de que o nosso convívio podia ser diferente, se 
minha mãe fosse a Mamsi ideal. Bem sei que a sra. van Daan 
não é uma pessoa delicada. Mas talvez metade dos conflitos 
se pudessem ter evitado se a mãe não fosse tão difícil 
nas suas relações com os outros e se tivesse mais tacto nas 
conversas, pois a sra. van Daan tem também o seu lado 
bom: apesar do egoísmo, da mesquinhez e da mania das 
discussões, consegue-se fàcilmente levá-la a ceder. O 
 principal é que a gente a não irrite nem espicace. Não é 
 que esta receita dê sempre resultado mas, com um bocado 
de paciência, a coisa vai. Questões sobre educação, mimos, 
comida, etc., deviam ter sido todas abordadas com franqueza 
e amizade. Assim não teríamos chegado a este ponto 
nem veríamos só os lados desagradáveis dos outros. 
 Sei exactamente o que me queres dizer, Kitty! 
 -Mas, Anne, estas palavras são tuas. Então não tens 
 recebido tantas censuras dos de lá de cima? Não te 
lembras já de todas as injustiças?-Sim, sim, lembro! 
Mas, mesmo assim, as palavras são minhas. Quero eu 
própria aprofundar tudo e não papaguear o que dizem 
os mais velhos... Não! Quero observar os van Daans e 
verificar o que é verdade e o que é exagero. Se depois disto 
ainda continuar desapontada, concordarei com os pais. 
Mas se os van Daans forem melhores do que nos têm 
parecido a nós, tentarei emendar a opinião errada do pai 
e da mãe; e se mesmo isto não der resultado, hei-de continuar 
a manter a minha opinião e o meu parecer. Hei-de 
aproveitar, de agora em diante, todas as ocasiões para falar 
com a sra. van Daan e não me acanharei de dizer-lhe 
sempre o que penso. Pois sempre fui considerada uma 
rapariga atrevida. 
 Não penses sequer que quero agir contra a minha 
própria família, mas fazer má-língua e ter preconceitos não 
é coisa que me agrade por mais tempo. Até agora,julgava 
firmemente que os van Daans eram os culpados de tudo, 
mas não nos cabe a nós alguma culpa também? Pode ser que tenhamos razão em princípio. Mas as pessoas razoáveis 
-e julgo que nós somos pessoas razoáveis-devem fazer 
os possíveis para conviver com toda a espécie de gente. 
Reconheço isto e espero ter ocasião de poder aplicar as 
minhas ideias na prática. 
 Tua Anne. 
Segunda-feira, 24 de Janeiro de 1944 
Qerida Kitty : 
 Aconteceu-me qualquer coisa de muito estranho. Antigamente 
falava-se em casa, em segredo, das coisas sexuais, 
e na escola só se falava disso de um modo feio. As raparigas 
falavam baixinho e por meias palavras e se alguma não 
percebia o que aquilo queria dizer riam-se dela. Eu 
achava tudo aquilo esquisito e pensava: 
 -Porque é que se fala destas coisas em segredo e de 
uma maneira tão feia? Mas como não podia modificar 
nada, calava-me ou falava do assunto, de longe em longe, 
com uma amiga mais íntima. Mais tarde comecei a compreender 
tudo e os pais também resolveram explicar-me 
as coisas. A mãe disse uma vez : 
 -Anne, dou-te o conselho de não abordares este tema 
com os rapazes e, sempre que eles queiram começar, muda 
de assunto. 
 Ainda me lembro de que respondi: 
 -Pois claro, mãe, que ideia! 
 E assim mantive as coisas até agora. 
 Aqui, nos primeiros tempos, o pai falava-me, de vez 
em quando, de coisas que eu antes preferia ter ouvido da 
boca da mãe. O resto aprendi-o nos livros e nas conversas. 
 O Peter van Daan não se atrevia a dizer nada a tal respeito 
 e só uma vez, muito no princípio, falou no assunto, mas não 
 era para provocar uma resposta. 
 A sra. van Daan disse uma vez que nem ela nem o 
 marido falavam sobre isso com o Peter. Ela nem fazia 
 ideia até que ponto o Peter sabia dessas coisas. Ontem, quando a Margot, o Peter e eu estávamos 
a descascar 
batatas, a conversa caiu sobre Boschi, o gato. 
 -Ainda não sabemos se Boschi é gato ou gata-disse eu. 
 -Eu sei-disse o Peter-, é gato. 
 -Lindo gato - retorqui - que está à espera de gatinhos. 
 Pois umas semanas antes o Peter tinha dito que Boschi 
estava grávida porque tinha a barriga muito gorda. Provàvelmente isso era consequência do 
costume de roubar petiscos, pois os tais gatinhos faziam-se esperar. Agora o 
Peter quis defender-se. 
 -Queres vir ver? - disse -Quando eu, outro dia, andava 
a brincar com ele, vi nitidamente que era gato. 
 Não consegui dominar a minha curiosidade e fui com 
ele ao armazém. Mas Boschi não havia meio de aparecer. 
Esperámos um bocado e depois subimos porque estava 
muito frio. à tardinha ouvi o Peter descer. Cheia de 
 coragem atravessei a casa silenciosa e fui ao armazém. 
 O Peter estava a brincar com o Boschi, estava precisamente 
a pesá-lo na balança. 
 -Olá, então queres ver agora? 
 Não fez cerimónias. Agarrou no Boschi pela cabeça, 
segurou-lhe as patas, virou-o e a lição começou! 
 -Aqui é o sexo, aqui alguns cabelos soltos e isto é o 
traseiro. 
 O Boschi deu meia volta e pôs-se em cima das suas 
patinhas brancas. Se qualquer outro rapaz me tivesse 
mostrado assim "o sexo masculino" eu nunca mais olharia 
para ele. Mas o Peter tratou com tanta naturalidade este 
tema melindroso que acabei por não achar mal nenhum. 
Brincámos com o Boschi, divertimo-nos, falámos bastante 
e por fim subimos devagarinho a escada. 
 - Quase sempre encontro num livro ao acaso aquilo 
que gostava de saber. Tu também? - perguntei. 
 -Mas porquê? Eu cá pergunto ao meu pai. Ele sabe 
muita coisa e tem grande experiência. 
 Estávamos em cima da escada e eu calei-me. Com outro 
rapaz não podia ter falado com tanta simplicidade. 
 Quando a mãe me aconselhou que evitasse falar neste 
assunto com rapazes, devia ser justamente isto o que ela 
receava. Senti-me todo o dia um tanto confusa ao pensar naquele encontro no armazém. Mas 
aprendi que se pode 
falar com rapazes de uma maneira ajuizada e sem dizer 
piadinhas estúpidas. 
 Será verdade que o Peter conversa muito com os seus 
pais? E será ele, na realidade, como se me mostrou ontem. 
Que sei eu dele, afinal? 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 27 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Ultimamente deu-me a paixão pelas árvores genealógicas, 
em especial pelas das casas reais. Se uma vez se começa a investigar, é preciso recuar cada vez mais no 
tempo e, por fim, chega-se a descobertas interessantíssimas. 
 Os meus estudos estão a ir bem, tenho feito progressos, 
já consigo perceber o "Home-Service" das emissões inglesas. 
Mas aos domingos passo o tempo a fazer a escolha para a 
minha colecção de "estrelas" de cinema, aliás uma colecção 
já muito respeitável. O sr. Kraler, amável como é, traz 
às segundas-feiras a revista de cinema. Embora os companheiros 
cá do anexo, todos pouco dados a este assunto, 
achem que isto de comprar uma revista de cinema é 
deitar fora o dinheiro, não podem deixar de se admirar 
por eu ainda saber, depois de mais de um ano de isolamento, 
quem eram os artistas que trabalhavam em determinados 
filmes. A Elli, nos dias de folga, vai quase sempre 
ao cinema com o namorado, e quando ela me diz quais 
são os filmes da semana seguinte, digo-lhe logo quem são 
os artistas que entram e as críticas dos filmes. A Mansa 
disse outro dia que eu, quando sairmos daqui, já não 
preciso de ir ao cinema, visto que já sei o conteúdo, a 
qualidade do filme e a distribuição dos papéis. 
 Quando apareço com um penteado novo, todos olham 
para mim com ar de censura e perguntam quem é a 
"estrela" que anda assim penteada. E, se lhes digo que 
fui eu sòzinha que inventei aquilo, só me acreditam com 
grandes reservas. E, já se vê, não me aguento mais de meia 
hora com o penteado porque os critiqueiros estragam-me 
o prazer. Acabo sempre por ir ao quarto de banho 
 restabelecer o meu penteado de todos os dias. 
 Tua Anne. 
Sexta-feira, 28 de Janeiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Hoje de manhã perguntei, de mim para mim, se tu não 
te sentirás como uma vaca que tem de ruminar todas as 
notícias velhas e quejá está aborrecida com esta alimentação 
monótona, e se não bocejas ao ler estas cartas que te não 
dão novidades. Sim, bem sei, estas velhas tretas são enfadonhas, mas podes crer que eu também 
já estou maçada! 
Quando à mesa se não fala de política ou de boas comidas, 
a mãe e a sra. van Daan põem-se a desencantar recordações 
da sua juventude. Outras vezes o Dussel delira ao lembrar-se 
do guarda-roupa da mulher, sempre cheio de 
coisas bem escolhidas, ou falando de cavalos de corrida, 
de um barquinho de remos já com rombos, de crianças milagrosas que já sabiam nadar aos quatro anos de idade, 
ou até de dores de músculos e de clientes medrosos. Já 
chegámos a este ponto : se um dos oito começa a contar 
uma coisa, qualquer outro pode substituí-lo e continuar 
sòzinho a história até ao fim. Já conhecemos o final de 
todas as anedotas; só quem as conta se ri ainda com elas. 
Já passámos, não sei quantas vezes, revista aos fornecedores das nossas ex-donas de casa, aos 
carniceiros, 
merceeiros e padeiros e, palavra, não sei o que ainda se 
poderia ouvir inédito aqui no anexo. Tudo tem barbas! 
 Mas isto ainda seria suportável se os adultos não 
 tivessem o hábito desagradável de contar as histórias do 
 Koophuis, da Miep e do Henk dez vezes de formas diferentes, sempre enfeitadas com outras 
invenções. Tenho de 
 me beliscar debaixo da mesa para não interromper o 
narrador entusiasmado, visto que meninas como a Anne 
não devem, de maneira nenhuma, corrigir os adultos, mesmo 
se estes disserem petas ou começarem a inventar. 
 O Koophuis e o Henk contam-nos tudo o que sabem 
de outra gente escondida e "mergulhada". Isto interessa-nos 
imenso e vivemos e sofremos com aqueles que foram 
apanhados como se de nós próprios se tratasse. Ficamos 
radiantes ao ouvir que algum prisioneiro foi posto em 
liberdade. 
 "Mergulhar" e desaparecer são agora coisas tão correntes 
como eram antigamente os chinelos do pai à espera, 
no Inverno, diante do fogão. 
 Organizações como, por exemplo, "A Holanda Livre" 
fabricam falsos cartões de identidade, procuram esconderijos 
seguros, fornecem os protegidos de dinheiro e de 
víveres e arranjam, para os rapazes cristãos "mergulhados", 
trabalho com mestres ou em empresas de confiança. 
É admirável com que dignidade e altruismo certas pessoas 
fazem estes serviços, arriscando a sua própria vida para 
prestarem auxílio aos outros. O melhor exemplo são os 
nossos protectores que, até agora, nos têm ajudado sem 
interrupção, e que nos hão-de levar, se Deus quiser, até 
ao fim de tudo isto. Se alguma coisa falhar, eles terão o 
mesmo triste destino de todos aqueles que protegem os 
judeus. Nunca deixam transparecer que lhes somos um 
fardo-e não há dúvida de que somos-. nunca se queixam 
das maçadas que lhes estamos a causar. Todos os dias 
sobem até aqui, falam com os homens sobre o negócio e 
a política, com as senhoras sobre as dificuldades do governo 
da casa e connosco, os jovens, sobre livros e jornais. Entram 
sempre de cara satisfeita, não se esquecem, nos dias de 
festa, das flores e das prendas e estão sempre prontos a ajudar. Não devemos esquecer nunca, apesar de todas as 
heroicidades nos campos de batalha e de toda a luta 
contra os opressores, os sacrifícios dos nossos amigos, aqui, 
junto de nós, as provas diárias de simpatia e de amor! 
 Contam-se as histórias mais fantásticas deste Mundo, 
mas são quase todas verdadeiras. O Koophuis falou-nos 
de um desafio de futebol no Nelderland, onde de um lado 
jogavam só "mergulhados" e do outro membros da guarda-nacional. 
Em Hilversum houve distribuição de novos cartões de 
racionamento. Para que toda aquela gente que vive "mergulhada" 
não ficasse privada das rações, os funcionários 
do conselho convocaram os "protectores" para uma hora 
certa, para lhes entregarem os cartões dos seus "mergulhados". 
Mas é preciso cautela: tais façanhas não devem 
chegar aos ouvidos dos "boches". 
Tua Anne 
 Quinta-feira, 3 de Fevereiro de 1944 
 Querida Kitty: 
 Estamos à espera da invasão mais dia menos dia. Se 
 tu aqui estivesses, viverias, decerto, debaixo da mesma 
 ansiedade que nós ou, daí, talvez te risses desta gente que 
 parece quase maluquinha. Os jornais não falam doutra 
 coisa. As pessoas já não sabem o que hão-de pensar. Lê-se: 
 "No caso de um desembarque dos Ingleses na Holanda as 
 forças alemãs defendê-la-ão, mesmo se para tanto, 
 for necessário inundar todo o país". 
 Publicam-se mapas em que as zonas em questão estão 
 sombreadas. Amesterdão está abrangida e já estamos a 
 pensar no que se há-de fazer quando a água atingir um 
 metro de altura nas ruas. Ouve-se dizer: 
 -Como não se pode nem correr nem andar de bicicleta 
 temos de passar a vau. 
 -Talvez possamos nadar. Vestidos de fato de banho 
e com capacetes de mergulhador, ninguém perceberá que 
somos judeus. 
 -Disparate! Vejo as senhoras a fugir a nado quando 
as ratazanas as morderem nas canelas. 
 (Claro, era um homem a fazer troça das mulheres. 
Mas vamos a ver quem grita mais, se são eles ou nós!) 
 -Nós não conseguiremos salvar-nos com certeza. 
 O armazém está tão podre que a casa, ao primeiro impulso 
da água, vai abaixo, 
 - Falando a sério: pronto! arranjaremos um barquinho e mais Não é preciso! Cada um pega num dos velhos caixotes 
 do açúcar do sótão e depois rema com uma colher 
de cozinha. 
- Eu vou atravessar sobre andas. Era campeão em 
pequeno. 
 -O Henk van Santen não precisa de nada disso. 
E se levar a sua Miep às costas, ela terá boas andas. 
 Agora podes fazer uma ideia, Kitty. Estas conversas 
têm graça. Mas a realidade talvez venha a ser diferente. 
Surge um segundo problema ligado ao desembarque. Que 
vamos fazer se Amesterdão for evacuada pelos alemães? 
 -Vamos com eles, sem dar nas vistas. 
 -Não, de maneira nenhuma! Ficamos aqui, que ainda 
é o melhor. Os alemães são capazes de nos obrigar a ir 
para a Alemanha e depois não poupam ninguém! 
 -Está claro, ficaremos aqui. Ao menos estaremos mais 
seguros. Temos de convencer Koophuis a vir também para 
aqui com a família. Será preciso arranjar serrim para 
podermos dormir no chão. A Miep e o Koophuis deviam 
trazer já alguns cobertores. Só temos trinta quilos de farinha, não chegará para todos, é preciso 
conseguir mais. 
O Henk talvez possa arranjar legumes secos. Temos trinta 
quilos de feijão e cinco quilos de ervilhas em casa e ainda 
cinquenta latas de legumes de conserva. 
 -Mãe, não será melhor fazer um balanço aos víveres? 
 -Bem: dez latas de peixe, quarenta de leite, cinco quilos 
de leite em pó, três garrafas de azeite, quatro frascos 
de manteiga e quatro de carne, quatro frascos de morangos, 
dois garrafões de sumo e vinte de puré de tomate, cinco 
quilos de flocos de aveia, quatro quilos de arroz. Eis 
tudo! 
 -Não é nada mau. Mas se quisermos alimentar as 
visitas e se só tivermos isto para comer, não parece que 
seja muita coisa. Carvão e lenha ainda temos que chegue; 
velas também. Era bom que cada um tivesse já um saquinho 
de pendurar ao pescoço para levar o dinheiro, se for 
preciso. 
 -Acho que devíamos fazer listas daquilo que, em caso 
de fuga, faz mais falta e devíamos já encher as mochilas. 
Depois duas pessoas deviam estar de guarda, uma na 
mansarda, outra no sótão. 
 - Mas para que nos vão servir os víveres se não tivermos 
nem gás, nem água, nem electricidade? 
 Cozinhamos no fogão da sala. Filtramos a água e fervemo-la. Havemos de limpar uns garrafões 
para ter sempre alguma água. 
 Estas conversas ouço-as todo o santo dia. Invasão 
 para disputa aqui, para invasão acolá!  sobre a morte pela fome, sobre bombas, sacos de dormir, 
bombas incendiárias 
 certificados de judeus, gases venenosos e assim por 
 diante. 
 Para te dar uma ideia mais nítida das preocupações 
 constantes da gente do anexo, vou reproduzir-te uma 
 conversa com o Henk. 
 Anexo: Estamos com medo de que os alemães, numa 
 eventual retirada, levem toda a população com eles. 
 Henk: Impossível. Não têm comboios que cheguem. 
 Anexo: Comboios? Mas o senhor pensa que eles vão 
 levar a gente de comboio? Nem pensar nisso! Fazem-nos 
 mas é andar à pata. "per pedes apostolorum, costuma 
 dizer o Dussel a cada passo). 
 Henk : Não creio. Vocês são pessimistas de mais 
 que vantagem teriam eles em arrastar assim toda a população? 
 Anexo: Sabe o que disse Goebbels: se tivermos que 
 retirar, fecharemos atrás de nós todas as portas dos países 
 ocupados. 
 Henk: Oh! Já disseram tanta coisa! 
 Anexo: Pensa que os alemães são demasiado nobres ou 
 humanitários para agir assim? Logo que lhes cheire a 
 perigo, hão-de arrastar consigo tudo o que encontrarem 
pelo caminho. 
 Henk: Digam o que quiserem. Eu não acredito. 
 Anexo : É sempre a mesma coisa. As pessoas só vêem 
o perigo depois de o terem experimentado no seu 
 próprio corpo. 
 Henk: Mas nada se sabe de positivo. Tudo isso são 
apenas hipóteses. 
 Anexo: Mas já passámos por túdo isso, primeiro na 
Alemanha, depois aqui. E não vê o que estão a fazer na 
Rússia? 
 Henk: Esqueçam-se, por um instante, do problema dos 
judeus. Ninguém sabe o que se está a passar no Leste. 
Se calhar a propaganda russa e inglesa exagera tanto 
como a alemã. 
 Anexo : Não pode ser. A rádio inglesa tem dito sempre 
a verdade. Mas, supondo mesmo que há exageros, os factos conhecidos já são bastante 
eloquentes. Não pode 
negar que os alemães estão a matar e a gasear milhões de 
inocentes na Polónia e na Rússia, não é verdade? 
 Não te vou maçar com mais conversas. Faço os possíveis 
para me conservar calma e para não me preocupar. Já 
cheguei a um ponto em que me é indiferente viver ou 
morrer. O Mundo não parará por causa de mim, e eu, 
pela minha parte, não posso também fazer parar os acontecimentos. Venha o que vier. Entretanto, estudo e trabalho e tenho esperança de que tudo acabará em bem. 
 Tua Anne 
Sábado, 12 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 O Sol brilha, o céu é de um azul intenso, sopra um vento 
maravilhoso, e eu... eu tenho saudades. Saudades... de 
tudo, da liberdade, dos amigos. Saudades de poder desabafar 
 e... de estar só comigo. Ai!, se pudesse chorar à 
vontade, uma vez só que fosse. Queria aliviar o meu 
 coração, queria chorar para me sentir melhor, mas sei que 
não pode ser. Estou irrequieta, ando de um quarto para 
o outro, ponho-me por trás da janela fechada e procuro 
respirar o ar de lá de fora através das frinchas, sinto o 
coração a bater como se me estivesse a pedir : satisfaz o 
meu desejo! 
 Creio que a culpa é da Primavera. Sinto-a despertar 
em todo o meu corpo e em toda a minha alma. Tenho de 
fazer esforços para me conservar calma, sinto uma grande 
confusão, não consigo ler, nem escrever, nem fazer seja 
o que for. Só sei que tenho saudades. 
Tua Anne. 
Domingo, 13 de Fevereiro de 1944 
 Querida Kitty: 
 De ontem para hoje muita coisa se tem modificado 
. Ontem estava cheia de saudades e ainda estou, em 
 mim a satisfação já não é a mesma coisa. Hoje de 
 manhã notei que tudo era diferente. Mas... notei 
com satisfação, digo-o com toda a franqueza, o Peter 
 não tirava de mim os olhos. Não olhava para mim 
como de costume, era diferente, não sei dizer nem escrever 
como. Sempre pensei que o Peter gostava mas era da 
Margot, e agora senti que não é nada disso. Durante todo 
o dia não olhei muito para ele, pois sempre que o encarava 
ele estava a olhar também. Invadia-me então uma sensação 
maravilhosa. Bem sei que isso não está certo, que não 
deve repetir-se muitas vezes. Queria tanto estar só! O 
 peter já percebeu que estou diferente, mas não lhe posso 
contar tudo! "Deixem-me em paz", gostava de lhes gritar a 
todos. Mas, quem sabe, talvez ainda venha um dia em que estarei mais só do que é meu desejo.  Tua Anne. 
Segunda-feira, 14 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 No domingo, à noite, estavam todos a ouvir na rádio 
o programa "Música imortal dos mestres alemães", só o 
Pim e eu é que não. O Dussel estava constantemente a 
mexer no botão do aparelho. O Peter ficou aborrecido com 
isso, e os outros também. Depois de uma meia hora, o 
Peter, que já estava muito nervoso, pediu ao Dussel, num 
tom irritado, que acabasse com aquilo. O Dussel respondeu 
meio condescendente, meio desdenhoso : 
 -Eu bem sei o que estou a fazer. 
 O Peter enfureceu-se, seu pai deu-lhe razão e o Dussel 
não teve outro remédio senão ceder. Foi tudo. Não era 
coisa de importância mas, pelos vistos, o Peter ficou muito 
aborrecido porque quando eu, hoje de manhã, andava a 
remexer no caixote dos livros, no sótão, ele começou a 
contar-me tudo. Até então eu nem sequer sabia que tinha 
havido alguma coisa, e o Peter, como compreendeu que 
eu ouvia com interesse, entusiasmou-se. 
 -Repara - disse-, eu fico quase sempre calado, porque 
sei de antemão que não sou capaz de me exprimir bem. 
Desato a gaguejar, coro e digo muitas vezes o que não 
queria. Por fim desisto por não encontrar as palavras 
certas. Assim aconteceu ontem. Queria dizer uma coisa 
mas, mal tinha começado, fui perdendo o sangue-frio. 
Isto é horrível. Antigamente tinha um mau costume mas, 
por vezes, ainda hoje, preferia fazer o mesmo. Quando 
me zangava com alguém, em vez de discutir, servia-me 
dos meus punhos. Bem sei que não é bom método e, por 
isso, é que te admiro. Tu sabes falar bem, dizes sempre a 
toda a gente o que tens a dizer e não te acanhas. 
 -Estás enganado-respondi-, quase nunca digo o que queria dizer. E falo de mais, parece que 
nunca mais acabo, 
e isto também é mau. 
 Cá no meu íntimo estava a rir-me de contente, mas 
não queria que ele soubesse, pois há muito desejava que 
ele me falasse de si. Sentei-me confortàvelmente no chão 
numa almofada, cruzei os braços, apoiei o queixo nos 
joelhos e olhei para ele. Toda eu era atenção. 
 Estou radiante por haver alguém nesta casa, que 
, consegue enraivecer-se como eu. Via-se bem que o Peter 
se sentia aliviado ao criticar o Dussel com expressões fortes sem ter medo de que eu o denunciasse. E eu, enfim, achei 
aquilo estupendo, porque senti renascer em mim o autêntico 
sentimento de camaradagem que antigamente 
 experimentava junto das minhas amigas. 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 A Margot faz anos. Ao meio-dia e meia hora veio o 
 Peter para ver as prendas e, contra o costume, ficou bastante tempo. à tarde fui buscar um pouco 
de café e também batatas porque achava que a Margot neste dia devia 
 ser bem tratada. O Peter, ao ver-me passar pelo seu quarto, 
 tirou logo todos os seus papéis da escada e eu perguntei-lhe 
 se queria que fechasse o postigo. 
 -Está bem-disse ele-e, quando voltares, bate que 
 eu abro imediatamente. Agradeci-lhe e subi. Durante dez 
 minutos andei a remexer no barril para escolher as batatas 
 mais pequenas. Depois senti dores nas costas, de estar 
 tanto tempo curvada, e também senti frio. Não bati, abri 
 o postigo sózinha. Mas o Peter veio a correr imediatamente para pegar no panelão. 
 - Andei muito tempo à procura mas não encontrei 
batatas mais pequenas - disse eu. 
 - Viste no barril grande? 
 - Vi. Remexi-o todo com a mão. 
 Eu estava agora ao pé da escada e ele olhou, com ar 
 de quem percebe, para dentro da panela que segurava 
 na mão. Depois entregou-ma e disse : 
 - São boas, são óptimas. 
 E, ao dizê-lo acariciou-me com um olhar tão quente 
e tão suave que toda eu me senti por dentro quente e 
suave. Compreendi que ele quis ser amável para comigo. 
Mas como não sabe fazer grandes discursos, pôs todos os 
seus pensamentos no olhar. 
 Que bem que eu o compreendi! E estava-lhe grata de 
todo o meu coração. Ainda agora me sinto contente ao 
reviver as suas palavras e o seu olhar. 
Quando voltei, a mãe disse que as batatas não chegavam 
 para o jantar. Ofereci-me logo para subir novamente. 
 Ao entrar no quarto do Peter pedi desculpa por incomodá-lo 
novamente. Levantou-se, pôs-se entre a parede 
e a escada e quis, a toda a força, reter-me. 
 -Agora vou eu ao sótão-disse. 
 Respondi que não era preciso, que eu não ia escolher 
outra vez as batatas mais pequenas. Convenceu-se e soltou-me. Quando voltei, abriu a fresta e pegou na panela. 
Ao sair da porta perguntei-lhe : 
 - Que estás a fazer? 
 - Francês-respondeu. 
 Perguntei se me deixava ver. Lavei as mãos e sentei-me 
à sua frente, no divã. 
 Depois de eu lhe ter explicado algumas coisas, começámos 
a conversar. Contou-me que mais tarde, queria ir 
trabalhar para as plantações na índia Holandesa. Falou 
também da sua vida em casa, do mercado "negro" e, por 
fim, disse que era um inútil. Respondi-lhe que ele tinha 
mas era um forte complexo de inferioridade. Depois falou 
dos judeus. Achava mais cómodo se pudesse ser cristão 
e gostava de o ser depois da guerra. Então eu quis saber 
se tinha a intenção de se baptizar depois da guerra, mas ele 
disse-me que, afinal, não queria, porque depois da guerra 
ninguém saberia se ele era cristão ou judeu. Esta atitude 
fez-me doer, por um momento, o coração. É pena haver 
nele sempre um pedacinho de desonestidade. 
 Falámos ainda de meu pai, de conhecimentos humanos 
 e de outras coisas mais. Só o deixei às quatro e meia. 
 à noite disse-me ainda uma coisa bonita sobre o retrato 
 de uma "estrela" do cinema que lhe dei uma vez e que tem 
 pendurado, há para aí ano e meio, no quarto. Como tinha 
 gostado tanto, ofereci-lhe mais retratos de "estrelas" de 
 cinema. 
 - Não-disse ele-, não me dês mais. Prefiro olhar só 
 para aquela todos os dias, porque já se tornou para mim 
 uma amiga. 
 Agora compreendo porque é que ele anda sempre com 
 o Mouchi ao colo. Tem necessidade de carinho. 
 mais um assunto em que falou, quase me ia esquecendo. 
 - Não sei o que é medo - disse - a não ser quando estou 
doente. Mas mesmo isto há-de passar. 
 O seu complexo de inferioridade é muito grande. 
Pensa que é estúpido e que nós somos inteligentes. Quando 
lhe dou uma ajuda no francês, agradece-me mil vezes. 
Hei-de dizer-lhe qualquer dia: 
 - Deixa-te disso. Em compensação sabes muito mais 
inglês e geografia do que eu. 
Tua Anne. 
Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty:  Sempre que vou lá para cima é com a ideia de o ver 
a "ele". A minha vida agora é mais bela porque tem de 
novo um sentido e todos os dias me espera uma alegria. 
 E, ao menos, o objecto da minha amizade encontra-se 
sempre nesta casa, não tenho de recear rivais (com excepção 
da Margot). Não julgues que estou apaixonada. Não é 
bem isso. Mas sinto que entre mim e o Peter ainda se 
desenvolverá algum sentimento muito belo, que fará de 
nós amigos e confidentes. Sempre que posso, vou ter com 
ele. Agora já não é como dantes quando ele não sabia o 
que me havia de dizer. Pelo contrário: já estou a sair 
da porta e ele ainda a falar. 
 A mãe não vê com bons olhos que eu vá tantas vezes 
lá para cima. Disse que eu não devia incomodar o Peter, 
que o devia deixar em paz. Não compreende ela que se 
trata da minha vida íntima? Sempre que vou ao quarto 
dele, ela olha-me de um modo estranho. E quando volto 
 pergunta-me de onde venho. Não suporto isto, acho 
 detestável. 
Tua Anne. 
Sábado, 19 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Já é outra vez sábado e sabes o que isto quer dizer. 
 De manhã houve silêncio. Ajudei um bocado mas com 
"ele" só falei de fugida. às duas e meia fui com um cobertor 
para o escritório particular, para poder ler ou escrever na 
escrivaninha com calma. Passado pouco tempo eu não 
podia mais: enterrei a cabeça nos braços e comecei a chorar. 
As lágrimas corriam, sentia-me muito infeliz. Ai! Se "ele" 
tivesse ido consolar-me! Eram quatro horas quando voltei 
cá para cima. Tive de ir buscar batatas e pensei que ia agora 
encontrá-lo. Mas enquanto eu dava um jeito ao cabelo, 
 no quarto de banho, ouvi-o descer com o Boschi ao 
 armazém. 
 Chorei outra vez e fugi para o W.C. levando ainda 
 comigo o espelho de cabo: Aí fiquei, muito triste, e o meu 
avental vermelho encheu-se de manchas de tantas lágrimas. 
 -Assim não chego a cativá-lo-pensei.-Se calhar, ele 
nem se importa comigo nem tem nenhuma necessidade 
de se abrir e se confiar. Pensará ele em mim de uma maneira 
superficial? Só me resta seguir o meu caminho, sózinha 
 sem o Peter. De novo sem esperança e sem consolo. 
 Gostava de encostar, ao menos uma vez, a cabeça no seu ombro, para não me sentir tão desesperada e tão só. 
Talvez ele me não ache nada de especial e olhe para os 
outros do mesmo modo simpático. O seu olhar quente 
e suave só terá existido na minha imaginação? Oh, Peter, 
se me pudesses ouvir ou ver! Mas eu não podia suportar 
uma verdade que me desiludisse. 
 Enquanto nos meus olhos ainda havia lágrimas, já 
no meu íntimo surgia uma nova esperança. 
Tua Anne. 
Domingo, 20 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Nós fazemos ao domingo o que a outra gente faz à 
semana. Enquanto os outros andam a passear, todos catitas, 
andamos nós a tratar das limpezas. 
 Oito horas: sem consideração pelos dorminhocos, o 
Dussel levanta-se. Vai ao quarto de banho, depois desce, 
volta para cima e lava-se durante uma hora. 
 Nove e meia: Abrimos as cortinas, acendemos os fogões 
e os van Daans lavam-se. 
 Dez e um quarto: Os van Daans estão a assobiar. 
O quarto de banho está livre. Os nossos dorminhocos 
levantam-se. Andam depressa de um lado para o outro. 
Sucessivamente, a Margot, a mãe e eu, a fazermos as 
nossas abluções. Está um frio de rachar, e ainda bem que 
temos calças compridas. O pai é o último a lavar-se. 
 Onze e meia: pequeno almoço. Nem quero falar disso. 
Já basta ouvir falar tanto de comida nesta casa. 
 Meio-dia e um quarto: cada um faz o que lhe apetece. 
O pai, vestindo uma bata, anda dejoelhos a escovar o tapete 
e fá-lo com tanto entusiasmo que todo o quarto fica envolto 
numa nuvem de pó. O Dussel vira a cama dele e 
assobia o concerto de violino de Beethoven. Ouvem-se os 
passos da mãe no sótão. Estende a roupa lavada. O sr. van 
Daan põe o chapéu na cabeça e desaparece para o andar 
de baixo; o Peter, com o Mouchi ao colo, quase sempre 
vai também. A sra. van Daan põe um avental comprido, 
veste um colete de lã preta, calça as galochas, envolve a 
cabeça num grosso xaile vermelho, pega numa trouxa 
de roupa e despede-se com uma vénia muito bem ensaiada. 
A Margot e eu lavamos a louça e arrumamos o quarto. 
Tua Anne. Quarta-feira, 26 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 O tempo está desde ontem maravilhoso e sinto-me 
verdadeiramente espevitada. Vou todas as manhãs ao 
sótão onde o Peter trabalha e onde respiro ar fresco. Do meu 
lugar favorito no chão vejo um pedaço de céu azul e o 
castanheiro sem folhas, em cujos ramos cintilam gotinhas, 
e vejo as gaivotas que, no seu voo planado, parecem de 
prata. 
 O Peter, com a cabeça encostada à viga, e eu, sentada, 
respiramos o ar puro, olhamos lá para fora. Há entre nós 
qualquer coisa que não queremos afugentar com palavras. 
Olhámos assim muito tempo lá para fora e quando o 
Peter se teve de ir embora para rachar a lenha, eu sabia 
que ele era um óptimo rapaz. Subiu a escadinha estreita, 
segui-o, e durante um quarto de hora, enquanto ele trabalhava, 
não pronunciámos uma única palavra. Vi bem 
que se esforçava por me mostrar que tem força. 
 Mas vi também, através da janela aberta, um pedaço 
de Amesterdão: olhei sobre os telhados até à linha do 
horizonte que de tão azul e de tão límpido quase se não 
distinguia do céu. 
 -Enquanto ainda há disto, pensei, um Sol tão brilhante, 
um céu sem nuvens e tão azul, e enquanto me é 
dado ver e viver tamanha beleza, não devo estar triste. 
 Para qualquer pessoa que se sinta só ou infeliz, ou 
que esteja preocupada, o melhor remédio é sair para o 
ar livre, ir para qualquer parte, onde possa estar só 
com o céu e com a natureza, e com Deus. Então compreende 
que tudo é como deve ser e que Deus quer ver os homens 
felizes no meio da natureza, simples e bela. Enquanto 
assim for-e julgo que será sempre assim-sei que há uma 
consolação para todas as dores e em todas as circunstâncias. 
Creio que a natureza alivia os sofrimentos. 
 Talvez eu possa, em breve, partilhar esta felicidade 
suprema com alguém que sinta as coisas como eu. 
 Estamos privados de muita coisa e há muito tempo. 
Sinto-o como tu. Não estou a falar de coisas exteriores, 
as que temos ainda chegam. Não, falo daquilo que se 
passa dentro de nós. Tal como tu, eu queria liberdade 
e ar, mas creio agora que temos boa compensação disto 
que nos falta. Foi o que compreendi, de repente, hoje de 
manhã, quando estava sentada junto da janela; quero 
dizer, uma compensação íntima. Ao olhar lá para fora 
e ao reconhecer Deus na natureza, senti-me feliz, apenas feliz. Oh, Peter, enquanto esta felicidade está em nós, 
esta felicidade da natureza, da saúde e de muitas coisas 
mais, enquanto formos capazes de conservar tudo isto 
em nós, a felicidade voltará sempre de novo. Fortuna, 
fama, tudo podes perder, mas a felicidade do coração, 
ainda que por vezes esteja obscurecida, torna a vir enquanto 
viveres. Enquanto puderes erguer os olhos para o céu, 
sem medo, saberás que tens o coração puro, e isto significa 
felicidade. 
 Tua Anne. 
Domingo, 27 de Fevereiro de 1944 
 Querida Kitty: 
 De manhã até à noite não posso pensar senão no Peter. 
Adormeço com a sua imagem nos olhos, sonho com ele 
e quando acordo sinto o seu olhar em mim. 
 Parece-me que o Peter e eu não somos tão diferentes 
como podia parecer à primeira vista. A ambos nos falta 
uma mãe. A dele é demasiado superficial, gosta do "flirt" 
e não se preocupa com a vida íntima do filho. A minha 
pensa em mim, mas não possui o tacto com que as mães 
devem compreender as coisas. 
 Ambos lutamos contra o que se passa dentro de nós. 
Falta-nos ainda a segurança, somos acanhados e frágeis, 
não suportamos que alguém toque o nosso íntimo com 
grosseria. Quando isso acontece comigo, a minha primeira 
reacção é: "quero ir-me embora,. Mas como é impossível, 
escondo os meus sentimentos e porto-me tão mal que 
toda a gente desejava que eu realmente me fosse embora. 
 O Peter, por sua vez, fecha-se na sua concha, não 
fala, sonha e esconde-se, cheio de receios. 
 Mas como e onde nos havemos de juntar? Não sei 
durante quanto tempo poderei dominar este meu desejo. 
Tua Anne 
 Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 1944 
Querida Kitty: 
 Já está a ser um pesadelo! Estou sempre junto dele; 
não devo deixar transparecer nada, tenho de parecer 
despreocupada e alegre, ao passo que, no meu íntimo 
 tudo é desespero.  Agora Peter Wessel e Peter van Daan formam um 
Peter só. E este Peter é bom e eu amo-o e quero-o para 
mim. A mãe está insuportável, o pai sempre gentil e, 
por isso, mais insuportável ainda, a Margot pretende tornar-se 
amável, e eu só queria que me deixassem em paz. 
 O Peter não veio ter comigo quando eu estava no 
sótão. Saiu para se pôr a carpinteirar. A cada martelada 
eu ia perdendo mais a coragem e ficando mais triste. 
Do outro lado toca o carrilhão: "O corpo erecto! O 
 coração ao alto! 
 Estou a ser uma sentimentalona, bem sei. Estou desesperada 
e não tenho juízo, também sei! 
 Oh! Ajuda-me! 
 Tua Anne. 
Quarta-feira, 2 de Março de 1944 
 Querida Kitty: 
 As minhas preocupações passaram Para segundo plano 
e isto por causa de um roubo. Estes roubos já não têm 
graça nenhuma, mas o que se há-de fazer se os ladrões 
sentem um prazer especial em honrar a firma Kolen & Go. 
com a sua visita? Desta vez a coisa foi mais complicada 
do que em Julho do ano passado. Quando o sr. van Daan 
desceu ontem, como de costume, ao escritório do Kraler 
viu que as portas envidraçadas e a porta do escritório 
estavam abertas. Surpreendido, resolveu dar uma volta 
para inspeccionar o resto e ainda mais surpreendido ficou 
ao ver o cáos no escritório principal. 
 -Ladrões!- até aí para se certificar disso correu, escada 
abaixo até à porta de entrada. Mas a porta e o fecho de 
segurança estavam intactos. 
 - Peter e a Elli foram desleixados - pensou então. 
Ficou algum tempo no escritório do Pai e depois fechou 
 as Portas, a luz, subiu e não se ralou mais com as 
 portas abertas nem do estranho cáos no escritório. 
 e de manhã o Peter bateu cedo à nossa porta e 
 deu-nos a notícia desagradável de que a porta da rua 
 estava largamente aberta e de que tinham desaparecido do 
 armário o aparelho de projecção e a nova pasta do Kraler 
 O Peter recebeu ordens para fechar a porta da rua e, 
 só agora o sr. van Daan nos contou as suas observações da 
 noite anterior. Ficámos muito preocupados. 
 Esta história só tem uma explicação : o ladrão possui 
 uma chave igual à chave de segurança, pois a porta  não estava arrombada. Decerto meteu-se dentro da casa 
 muito cedo, fechou a porta atrás de si e, ao ouvir o sr. 
van Daan, escondeu-se. Depois de este ter subido, desatou 
a fugir o mais depressa que pôde, com as coisas roubadas 
e, com a atrapalhação, esqueceu-se de fechar a porta da 
rua. Mas quem será o homem que possui a chave? E porque 
é que não entrou no armazém? Será mesmo um dos 
próprios empregados do armazém? E se ele nos denunciar? 
agora que ouviu e provàvelmente viu o sr. van Daan? 
Tudo isto é quase sinistro, porque nunca sabemos se e 
e quando o ladrão virá de novo abrir a porta. Ou será 
 possível que ele próprio se tenha assustado por ter 
 visto alguém dentro da casa? 
 Tua Anne. 
Quinta-feira, 3 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 A Margot e eu estivemos hoje no sótão. Mas o prazer 
não foi o mesmo, embora eu saiba que em muitas coisas 
ela sente como eu. 
 Ao lavar a louça, a Elli confessou à minha mãe e à 
sra. van Daan o seu desespero. E queres saber como 
as duas a consolaram? Sabes qual foi o conselho que a 
mãe lhe deu? Que devia pensar em todos aqueles que 
estão agora a perecer no Mundo! Mas quando uma pessoa 
está desesperada, pode valer-lhe de alguma coisa pensar 
nas misérias dos outros? Foi o que eu disse, mas responderam-me : 
 -Não sabes ainda nada destas coisas. 
 Os adultos são tapados, são estúpidos. Como se a 
Margot, o Peter, a Elli e eu não sentíssemos todos o mesmo! 
Só o amor de uma mãe ou o amor de um grande amigo 
nos pode consolar. As nossas mães não têm uma centelha 
de compreensão para nós sequer, e acho que a sra. van 
Daan ainda tem mais um bocado do que minha mãe. 
Eu gostaria de ter dito à pobre Elli algumas palavras, 
dessas palavras que confortam, como sei por experiência 
própria. Mas o pai interveio e afastou-me. São tão estúpidos, todos eles! Nós não temos direito a 
ter uma opinião! 
Eles são imensamente modernos! Então a gente não sabe 
pensar? Pode obrigar-se alguém a não falar, mas nunca 
a não ter uma opinião. Não é possível proibir-se isto a 
ninguém, seja qual for a idade. A Elli, ao Peter, à Margot 
e a mim só o amor autêntico, abnegado, pode valer, 
mas o amor assim não nos é dado. Nenhum de todos estes sábios idiotas nos compreende aqui, porque nós somos 
muito mais sensíveis, muito mais avançados nas nossas 
ideias do que eles imaginam. 
 Presentemente, a mãe anda a criticar-me a torto e 
a direito. Tem ciumes da sra. van Daan, com quem agora 
falo mais do que com ela. 
 Hoje de tarde consegui apanhar o Peter. Conversámos 
pelo menos uns três quartos de hora. O Peter tem muita 
dificuldade em falar de si próprio, mas pouco a pouco 
há-de fazê-lo. Contou-me que os pais se zangavam a cada 
passo por causa da política, dos cigarros e de outras coisas 
que tais. Estava embaraçado. Depois falei-lhe dos meus pais. 
O Peter tem grande entusiasmo por meu pai, disse que 
era um tipo "bestial". Assim falámos da nossa família. 
Ficou admirado quando eu lhe disse que não gostávamos 
muito dos seus pais. 
 - Peter - disse-lhe -, sabes que sou sempre franca. 
 Porque é que não te devia de contar? Conhecemos os 
 defeitos dos teus pais! 
 E depois ainda lhe disse : 
 - Peter, eu gostava de ajudar-te. Não será possível? 
Tu andas metido entre os dois e sei que isto te faz mal. 
 - Sim, gostava que me ajudasses, agradecer-te-ia toda 
a vida. 
 - Mas talvez seja melhor tu falares com meu pai, 
podes ser franco com ele; nunca denuncia ninguém. 
 - Ah, sim, deve ser um camarada a valer. 
 -Gostas dele, não gostas? 
 Fez que sim com a cabeça e depois eu disse: 
 - Ele também gosta muito de ti. 
 Ficou corado, o que me enterneceu. Que felicidade 
lhe dei com tão poucas palavras! 
 - Mas isso é verdade? - Perguntou. 
 - Pois claro-disse eu-, já lho ouvi dizer não sei 
quantas vezes. 
 O Peter é um tipo "bestial", exactamente como o pai. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 9 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Hoje, quando se acenderam as velas, fiquei contente, 
senti-me calma. Vi a avó, envolvida pela luz. A avó 
é quem me protege e preserva e quem me dá, sempre de 
novo, alegria e satisfação.  Mas... agora há mais uma pessoa que domina os meus 
pensamentos: é o Peter. Quando hoje fui buscar as batatas 
 e estava, com a panela cheia, ao pé da escada, ele 
perguntou-me : 
 - Que fizeste hoje de tarde? 
 Sentei-me num degrau e conversámos. Só às cinco e um 
quarto (uma hora depois de ter subido) desci com as batatas. 
 O Peter não falou dos seus pais. Falámos de livros e 
dos tempos passados. Quase me podia apaixonar por ele! 
Tocou no assunto. Depois de ter descascado as batatas, 
fui ter com ele. Estava calor e eu disse : 
 - Para saberes a temperatura basta olhares para mim 
e para a Margot. O frio torna-nos pálidas e com o calor 
ficamos coradas. 
 - Apaixonada?-perguntou. 
 - Eu apaixonada? Mas porquê?-respondi eu cheia 
de candura. 
 - E porque não?-perguntou. 
 Depois descemos para jantar. 
 Que queria ele dizer com aquilo? Hoje perguntei-lhe, 
finalmente, se não achava as minhas conversas maçadoras. 
Disse : 
-Acho-as engraçadas. 
E não disse mais nada. Não sei se estava a ser muito 
tímido. 
 Oh, Kitty! Estou a portar-me como uma apaixonada 
que não consegue falar senão do seu namorado. Mas, 
podes crer, o Peter é um amor de rapaz! Quando lhe 
poderei eu dizer isto? Claro que não será antes de ele 
me achar também um amor de rapariga. Eu não sou uma 
gatinha que se possa tocar sem luvas, bem sei. A verdade 
é que o Peter gosta do seu sossego, e será difícil eu saber 
se gosta de mim. 
 De qualquer forma estamos a conhecer-nos melhor 
um ao outro e eu só queria que tivéssemos coragem para 
nos abrirmos ainda mais. Quem sabe, talvez isto se dê 
mais depressa do que estou a imaginar. Olha-me várias 
vezes como quem me compreende e eu respondo piscando 
os olhos. E então ficamos ambos felizes e divertidos! 
 Devo parecer uma tola a falar assim da nossa felicidade, 
mas estou convencida de que ele pensa exactamente 
como eu! 
 Tua Anne 
Sábado, 10 de Março de 1944 Querida Kitty: 
 Este sábado é, desde há meses e meses, o primeiro que 
não se passou aborrecido, triste e desesperado. E isto por 
causa do Peter. 
 Quando hoje de manhã fui ao sótão para estender 
o meu avental lavado, estava lá o pai, que estuda todos os 
dias com o Peter. Perguntou-me se eu não queria ficar 
a estudar com eles. Claro que quis e falámos primeiro 
francês. Expliquei umas coisas ao Peter e depois passámos 
para o inglês. O pai leu-nos umas passagens de um livro 
de Dickens e, confesso, senti-me no sétimo céu, assim 
sentada ao lado do pai e tão próxima do Peter. 
 às onze desci. Quando meia hora depois voltei para 
cima, o Peter já me esperava junto da escada. Conversámos 
 até à uma menos um quarto. Sempre que pode, isto é, quando ninguém está a ouvir, ele diz-me 
depois do almoço : 
 - Até logo, Anne. 
 Ah, como me sinto contente! Ele gostará de mim? 
Seja como for, o Peter é um óptimo rapaz e acho que nos 
havemos de entender muito bem. 
 A sra. van Daan gosta de nos ver juntos. Mas hoje 
perguntou um tanto trocista: 
 - Posso deixar-vos sós lá em cima? 
 - claro que pode, - protestei - A senhora quer ofender-me? 
 De manhã à noite folgo em ver o Peter. 
Tua Anne 
Segunda-feira, 12 de Março de 1944 
 Querida Kitty: 
 Leio no rosto do Peter que pensa tanto em mim como 
eu nele. Ontem à noite aborreci-me terrivelmente quando 
a sra. van Daan disse, toda trocista: 
 - Olhem o grande pensador! 
 O Peter corou, ficou encavacado, e a mim apeteceu-me 
saltar à cara da senhora. 
 Porque é que falam sem ser preciso? Não calculas 
como sofro por vê-lo assim tão só. compreendo-o como 
se fosse eu própria a viver a sua vida, sinto-lhe o 
 desespero quando discutem e se zangam junto dele, noto o 
vazio em que ele mergulha. Pobre Peter! Como tu 
 necessitas de amor! 
 Disse-me que não precisava de amigos: ainda trago 
nos ouvidos a dureza destas palavras. Como está enganado! Julgo que não acredita no que disse. Quer por força 
 parecer uma pessoa indiferente, não mostrar os seus 
sentimentos. 
Quanto tempo te quererás assim enganar, Peter? Não se 
seguirá a este esforço sobre-humano uma tremenda reacção? 
 Oh, Peter, se me deixasses ajudar-te! Os dois juntos 
vencíamos a nossa solidão. 
 Ando sempre a cismar, mas não o digo a ninguém. 
Sinto-me feliz quando o vejo a ele e quando vejo o Sol 
brilhar. 
 Ontem, ao lavar o cabelo, estava terrivelmente endiabrada. 
Sabia que ele se encontrava no quarto ao lado. 
Não tenho culpa : mas quanto mais calada e mais séria 
estou no íntimo mais espalhafato tenho de fazer. Quem 
será o primeiro a descobri-lo e a quebrar a armadura? 
Ainda bem que os van Daans não têm uma filha! A minha 
conquista não seria tão difícil, tão bela e tão esplêndida 
se não fosse a atracção do sexo oposto! 
Tua Anne 
 P. S. Bem sabes que te escrevo tudo com a máxima 
franqueza. Por isso vou ainda confessar-te que só vivo 
agora dos nossos encontros. Quem me dera saber se ele 
também me espera com a mesma ansiedade. Fico radiante 
quando sinto as suas tímidas tentativas de uma aproximação. 
Sei que ele gostava tanto como eu de abrir, finalmente, 
o coração. Não adivinha que é precisamente a sua 
falta de jeito que me encanta. 
Tua Anne 
Terça-feira, 13 de Março de 1944 
Querida Kitty : 
 Quando me ponho a pensar na minha vida de 1942, 
tudo me parece irreal. Essa vida era vivida por uma 
outra Anne, diferente desta que tem, agora, tanto juízo. 
Era uma vida boa, ai!, se era! Tantos admiradores como 
os dedos das mãos, por aí vinte amigos e conhecidos, 
a aluna favorita de quase todos os professores, amimalhada 
pelos pais, sempre doces e guloseimas, dinheiro que 
chegava - que mais queres? Talvez queiras perguntar-me 
como eu conseguia que todos gostassem tanto de mim. 
Se o Peter diz que tenho "charme" talvez não tenha bem 
razão. Os professores gostavam mas era das minhas respostas 
vivas, das minhas observações cómicas, da minha cara sempre a sorrir e do meu olhar crítico, divertido e 
ameno, não era mais nada. Eu gostava do "flirt", era 
brincalhona e alegre. Mas tinha também algumas boas 
qualidades que me davam a garantia de não cair em 
desgraça com ninguém : era trabalhadora, franca e sincera. 
Nunca impedia que alguém, fosse quem fosse, copiasse 
os meus exercícios, não era vaidosa e repartia sempre os 
meus doces com os outros. Quem sabe se a admiração de 
que gozava não faria de mim uma pessoa petulante? Talvez 
não tenha sido nada mau que eu, de repente- no auge 
da festa, digamos - fosse bruscamente atirada para a 
 realidade; mas sempre me levou mais de um ano a habituar-me 
a não ser admirada. 
 Como é que me chamavam na escola, onde eu estava 
sempre à frente em todas as partidas e brincadeiras? "A cabecilha". E eu nunca tinha mau génio 
ou má disposição. 
Por isso não era de admirar que todos gostassem de 
me acompanhar e fossem simpáticos e atenciosos. 
 Agora vejo essa Anne como uma rapariguita simpática 
mas superficial, que nada tem de comum comigo. O Peter 
disse, e muito bem: 
 -Quando eu te encontrava, via-te sempre com dois 
ou três rapazes e com um bando de raparigas, sempre a 
rir e divertida. Eras o centro. 
 O que resta dessa rapariga? Ainda não me esqueci 
de rir e de dar respostas. Ainda sei criticar as pessoas e, talvez até melhor do que antes, sei 
namoriscar se... me apetecer. Gostava de voltar a viver assim, só por uma tarde, uns dias, ou uma 
semana, despreocupada, mas no fim da semana 
estaria saturada e ficaria grata à primeira pessoa que me 
aparecesse a falar em coisas sérias. Não preciso de 
 admiradores mas sim de amigos; não preciso de adoradores 
 em troca de um sorriso mas sim de alguém que dê valor à 
minha maneira de ser e ao meu carácter. Sei que assim 
terei menos gente à minha volta. Mas não importa, o 
principal é que me fiquem algumas pessoas de carácter. 
 E, vistas bem as coisas, eu não era inteiramente feliz 
naquele tempo. Sentia-me muitas vezes só, mas como 
andava sempre atarefada, não reflectia nisso e divertia-me 
o mais que podia. Consciente ou inconscientemente, tentava 
com as brincadeiras encher o vazio. Agora prefiro 
trabalhar. Aquele período findou irrevogàvelmente: o 
tempo da escola, despreocupado e descuidado, não volta 
mais. Também não quero que volte, ultrapassei-o. Agora, 
até quando estou alegre, uma parte de mim mesma conserva 
sempre a sua seriedade. 
 Vejo a minha vida até ao princípio deste ano como 
que através de uma lente impiedosa. Em casa, uma vida cheia de sol; 1942, a vinda para aqui, a transição brusca, 
as discussões, as acusações. Não tinha capacidade para 
digerir tanta coisa, apanhei um choque e só consegui 
manter-me mais ou menos firme manifestando atitudes 
de rebeldia. 
 Primeira parte de 1943 : a minha constante vontade 
de chorar, a solidão, o lento reconhecimento de todos os 
meus defeitos e de todas as minhas faltas, que eram grandes, 
sem dúvida, mas que os outros é que queriam fazer muito 
maiores ainda. 
 Falava a torto e a direito e fiz tentativas para conquistar 
o Pim só para mim, mas não o consegui. Então 
vi-me perante o difícil problema de me modificar para não 
ouvir mais censuras, para não me sentir esmagada, sob o 
seu peso, até ao desespero. 
 A segunda parte do ano já foi melhor. Como me ia 
tornando uma adolescente, já viam em mim uma pessoa 
mais ajuizada. Comecei a reflectir e a escrever histórias. 
Concluí que já ninguém tinha o direito de me empurrar 
como se fosse uma bola. Queria formar-me segundo a 
minha própria vontade. Reconheci também que o pai 
não podia ser o meu confidente em todas as coisas. Só 
queria confiar inteiramente em mim própria. 
 Depois do Ano Novo, a segunda transformação... o 
meu sonho. Foi através dele que descobri o meu desejo 
de um rapaz e não de uma rapariga, o desejo de um amigo. 
Descobri também a felicidade no meu íntimo e a minha 
armadura exterior feita de superficialidade e de alegria. 
Pouco a pouco acalmei e comecei a sentir uma ânsia sem 
limites de tudo o que é bom e belo. 
 Quando, à noite, estou na cama e remato a oração 
com estas palavras: "Agradeço-te o bem, o amor e a 
beleza", então todo o meu ser rejubila. Ponho-me a pensar 
em tudo o que foi "o bem" : a nossa fuga para aqui, a 
minha saúde; e no "amor": o Peter e tudo aquilo que é 
tão delicado e sensível que ambos ainda não ousamos 
tocar-lhe, mas que um dia virá-o futuro, a felicidade. 
E penso na "beleza" que envolve o Mundo: a natureza, 
a arte, a grandeza e tudo o que a isto está ligado. 
 Não penso na miséria mas em tudo o que é terno e maravilhoso. 
É nisto que reside em grande parte a diferença 
entre a mãe e eu. Quando alguém está triste, ela aconselha: 
"lembra-te da miséria que vai pelo Mundo e sê 
grata por tu não a sofreres". Eu digo: "vai e procura os 
campos, a natureza e o Sol: vai, procura a felicidade em 
ti e em Deus. Pensa no que é belo e que se realiza em ti 
e à tua volta, sempre e sempre de novo".  Acho o conselho da mãe errado, pois, o que pode fazer 
alguém que se sente infeliz? Perder-se na miséria? Acho que alguma coisa de belo resta aos 
próprios. tÉr-se-á 
perdido a liberdade e alguma coisa de nós. Mas devemos 
 agarrar-nos e reencontrar-nos-emos a ti e a Deus, 
 de novo. Aquele que é feliz, espalha felicidade. 
 Aquele que teima na infelicidade, que perde o equilíbrio 
 e a confiança, perde-se na vida. 
 Tua Anne 
Domingo, 18 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Ultimamente não tenho tido paciência para estar 
sentada à minha mesa. Gosto de conversar com o Peter 
e só tenho receio de que ele se mace com isso. Já me contou 
muitas coisas da sua vida, dos seus pais e de si próprio. 
Mas eu ainda queria que ele me contasse mais. 
 Depois pergunto a mim mesma porque é que espero 
tanto dele. Antigamente ele achava-me insuportável e eu 
 pagava-lhe na mesma moeda. Mas as coisas mudaram. 
Se com ele, no entanto, ainda nos 
pudermos tornar amigos íntimos, suportaria muito melhor esta vida de isolamento. Não 
quero excitar-me mais. Estou a pensar de mais nele e não 
tenho o direito de te vir importunar a ti, só por me sentir 
tão obcecada. 
 Sábado, à tarde, fiquei, depois de uma série de notícias 
tristes, tão mal disposta e confusa que me deitei na cama. 
 Só Queria dormir e não pensar em nada. Dormi até às 
 quatro horas depois tive de ir ao quarto do Pai. 
 foi fácil respondér às perguntas da mãe porque fora 
 que me tinha deitado. Disse que tinha dores de cabeça 
 e não menti. É que eu tinha dores de cabeça... na alma. 
 Suponho que gente normal, raparigas normais, adolescentes 
da minha idade, me achariam provàvelmente 
 absurda por eu me lamentar tanto. Mas a ti digo tudo o 
 que me preocupa, e depois, durante o dia, sou atrevida, 
 para não precisar de responder às perguntas e para 
 evitar aborrecimentos. 
 A Margot é carinhosa comigo e talvez gostasse de 
 ser a minha confidente, mas não lhe posso dizer tudo. 
 É simpática e boa e bomita, mas um bocadinho académica quando conversamos sobre coisas 
profundas. Ela procura 
compreender-me, não há dúvida nenhuma, reflecte mesmo 
sobre a sua irmã maluquinha, fixa-me com os olhos de examinadora quandu digo isto ou aquilo e, provàvelmente, 
pensa com os seus botões : 
 -Estará ela a representar ou será sincera? 
 Estamos sempre juntas e eu não queria ter a minha 
confidente sempre tão próximo. 
 Quando sairei eu deste labirinto de pensamentos? 
Quando haverá calma e paz no meu coração? 
Tua Anne 
Terça-feira, 19 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Talvez te entretenha a ti - a mim isto já não me 
 interessa - se te contar o que hoje vamos comer. Neste 
momento estou (a mulher da limpeza encontra-se lá em baixo nos 
 escritórios) à mesa dos van Daans, coberta com um oleado. 
 Aperto o nariz e a boca com um lenço perfumado-o 
 perfume ainda é do tempo de antes do "mergulho". Esta 
 maneira de contar deve parecer-te aborrecida. Vou 
 começar outra vez. Como os nossos fornecedores foram 
 apanhados por causa dos cartões "negros" do racionamento 
e outras coisas no género, já não temos cartões e, portanto, 
nenhumas gorduras. A Miep e o Koophuis estão doentes, 
a Elli não pode sair para fazer as compras e, por consequência, a nossa disposição é 
desconsoladora e a comida 
também. Para amanhã já não temos um pedacinho de 
pingue, para já não falar de manteiga ou de margarina. 
Acabaram-se as batatas fritas ao pequeno almoço (para 
substituir o pão). Agora comemos papinhas. A sra. van Daan 
tem medo de que morramos de fome e, felizmente, conseguiu 
arranjar um bocadinho de leite "negro". O nosso almoço: 
feijão de conserva de barrica! Daí as minhas providências 
que tomei com o lenço. É incrível como o feijão cheira 
mal depois de ter estado guardado durante um ano. Todo 
o quarto cheira a uma mistura de ameixas podres, desinfectante 
e ovos podres. Brrr! Só de pensar que tenho de 
comer aquilo, já fico enjoada. Ainda por cima as nossas 
batatas têm uma doença esquisita e de cada balde cheio 
de "pommes de terre" metade é atirada para o lixo. Ao 
descascá-las entretemo-nos a diagnosticar as mais variadas 
doenças e já vimos casos de cancro, varíola e sarampo. 
Podes crer que não é fácil viver-se "mergulhado" no quarto ano de guerra. Quem nos dera que 
esta miséria acabasse! 
Com franqueza, eu ainda aguentava a má comida, se o 
resto fosse mais agradável. Mas o mal está em que todos nós, com a vida monótona que levamos, ficamos nervosos. 
Aqui tens as opiniões de cinco "mergulhados" sobre a 
nossa vida: 
 Sra. van Daan:-Estou farta de fazer de criada de 
cozinha. Mas quando não tenho nada que fazer aborreço-me. 
 Portanto, ponho-me a cozinhar. Mas cozinhar sem 
gorduras é inconcebível, só o cheiro põe-me doente. Ainda 
por cima todos me agradecem o trabalho com má cara 
e a resmungar. Sou o carneiro preto do rebanho e tenho 
culpa de todo o mal que acontece. Além disso, penso que 
a guerra está a caminhar mal e se calhar os alemães ainda 
vão vencer. Tenho medo de que morramos todos de fome. 
E ainda querem que eu esteja bem disposta. 
 Sr. van Daan:-Preciso de fumar, de fumar, de fumar. 
Assim suporto tudo: a política, a comida e o mau génio 
da minha Kerli. Masjá que não tenho cigarros, apetecia-me, 
ao menos, um bocado de carne. Estou sempre a dizer que 
vivemos miseràvelmente, nada me serve, há discussões por 
tudo e por nada e acho a Kerli estúpida. 
 A sra. Frank:-Mas a comida não é assim coisa tão 
importante. Só queria uma fatia de pão de centeio. Estou 
com fome. Se eu fosse a sra. van Daan já tinha desabituado 
o meu marido de fumar tanto. Faz o favor, dê-me um cigarro 
para acalmar os nervos. Os ingleses têm os seus defeitos 
mas a guerra está a caminhar bem. Ainda bem que posso 
falar à vontade e que não estou presa na Polónia. 
 Sr. Frank:-Acho que tudo vai bem, não preciso de 
nada. Do que necessitamos é de calma, de paciência. Logo 
que me não faltem as batatas estou satisfeito, mas não se 
esqueçam de guardar algumas da minha ração para a Elli. 
 O sr. Dussel:-Tenho de concluir a tese antes de mais 
nada. A política? Essa vai às mil maravilhas! Acho impossível 
que nos descubram aqui. Eu... 
 Eu, eu, eu... 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 15 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Todo o santo dia ouço : se acontecer isto ou aquilo 
teremos as maiores dificuldades... e se aquela rapariga 
ficar doente, já não temos mais ninguém no Mundo... e se... 
 Já sabes a lenga-lenga. Pelo menos já deves conhecer 
bastante esta gente do anexo para poderes adivinhar o 
que andam a dizer.  A causa desses "se, se..." é a seguinte: o sr. Kraler 
foi convocado para um "campo de trabalho", a Elli está 
terrivelmente constipada, a Miep ainda se não levantou 
da gripe e o sr. Koophuis teve outra vez uma hemorragia 
e desmaiou! Um chorrilho de desgraças. 
 O pessoal do armazém tem feriado amanhã. Se a Elli 
tiver de ficar em casa, a porta ficará fechada e temos de 
fazer muito pouco ruído para que os vizinhos não desconfiem. 
O Henk deve vir à uma hora para olhar pelos 
"abandonados" e para representar o papel de guarda de 
jardim zoológico. Hoje, à hora do almoço, contou-nos, 
pela primeira vez desde há bastante tempo, coisas do grande 
mundo lá de fora. Devias ter visto como o ouvimos todos 
com o máximo interesse. Há um quadro que se chama 
"Avòzinha conta histórias". O nosso grupo deve ter tido 
o mesmo aspecto. Falou, falou, com muitos pormenores 
e pormenorinhos, e não se esqueceu de contar-nos coisas 
sobre comidas e do médico da Miep por quem perguntámos. 
 -Médico? Não me falem desse médico! Hoje de manhã 
telefonei-lhe, mas só consegui que um assistentezinho viesse 
ao telefone. Pedi-lhe uma receita contra a gripe. Disse-me 
que, entre as oito e as nove, podia ir buscá-la. Quando se 
trata de uma gripe mais grave, suponho que o médico vem pessoalmente ao telefone para dizer: 
"Mostre a língua... 
diga aaahhh... sim, senhor, ouço bem, tem a garganta 
inflamada. Vou transmitir a receita à farmácia. Depois 
pode ir lá buscar o remédio. Bom dia!" Lindo serviço, não 
há dúvida. Consultas exclusivamente pelo telefone! 
 Mas podemos acusar os médicos? Ao fim e ao cabo 
cada pessoa só tem duas mãos e, infelizmente, existem 
agora muitos doentes e muito poucos médicos. Mas não 
pudemos deixar de nos rir, quando o FIenk representou 
aquela conversa ao telefone. Imagino como é diferente, 
agora, a sala de espera de um médico. Decerto já não 
desprezam só os doentes da "caixa", como era costume. 
Agora devem desprezar-se as pessoas que não sofrem de 
nada a sério mas que gostam de se queixar. Provàvelmente 
falam-lhes assim: 
 -Que é que queres? Vai para o fim da bicha, que 
temos agora de tratar primeiro os autênticos doentes. 
Tua Anne 
Quinta-feira, 16 de Março de 1944 
Querida Kitty:  O tempo está maravilhoso, indescritivelmente maravilhoso. Hei-de ir ao sótão. 
 Agora sei por que sou mais irriquieta do que o Peter. 
 Ele tem um quarto só para ele, onde pode sonhar, pensar, 
 dormir. Eu sou empurrada de um quarto para o outro. 
 Raras vezes estou sozinha no quarto que partilho com o 
 Dussel, e tenho sempre tanto desejo de estar só! Por isso 
fujo a cada passo lá para cima. Uma vez ali e contigo, 
 Kitty, posso, por pouco tempo, ser eu mesma. Mas não 
 me vou queixar, pelo contrário, vou ser corajosa. Os 
outros, felizmente, nada percebem do que se passa comigo, 
porque é que sou mais fria para com a mãe, menos meiga 
com o pai. Falo muito pouco com a Margot sobre as minhas 
coisas. Tenho de conservar a minha segurança exterior. 
Não é preciso que os outros fiquem a conhecer a confusão 
do meu íntimo, uma espécie de luta entre o desejo e a 
razão. Até agora a razão tem sido sempre vencedora, mas 
não chegará o dia em que sucumba? às vezes tenho medo 
disso, outras vezes desejo que assim aconteça. 
 É pena não poder falar sobre estas coisas com o Peter 
mas eu sei que é a ele que compete começar. Entristece-me 
não poder continuar as minhas conversas dos sonhos 
durante o dia e que as aventuras sonhadas não se tornem 
realidade. Sim, Kitty, é verdade, a Anne não regula bem. 
Mas não te esqueças : vivo numa época louca e em circunstâncias loucas. Que sorte a minha 
poder escrever o 
que penso e sinto. Se não fosse isto, sufocava, de certeza. 
 O que pensará o Peter de tudo isto? Oxalá possa 
dizer-mo em breve! Deve ter adivinhado alguma coisa, porque aquela Anne que ele conhecia até 
há pouco não 
lhe agradava com certeza. Pode ele, que tanto aprecia a 
calma e a paz, simpatizar com a minha vivacidade e inquietação? 
Será ele o único no Mundo que conseguiu ver o 
que está por detrás da minha máscara de pedra? Não é 
velha regra o amor nascer muitas vezes da compaixão 
e as duas coisas confundirem-se? Será o meu caso? É que 
tenho tanta pena dele como de mim própria. 
 Não sei, palavra que não sei, como hei-de começar a 
falar nisto! E se eu não sei muito menos ele, a quem tanto 
custa exprimir-se. Se lhe pudesse escrever! Então ficaria 
a saber o que lhe queria dizer. Mas falar é muito difícil! 
Tua Anne 
Sexta-feira, 17 de Março de 1944 
 Querida Kitty:  Uff! Pelo anexo passa uma onda de alívio. O Kraler 
está livre, a Elli não consentiu que a sua constipação 
 piorasse e a impedisse de cumprir os seus deveres. Tudo 
voltou à velha ordem. Só a Margot e eu estamos um tanto cansadas dos nossos pais. Não me 
compreendas mal, por favor. 
Bem sabes que não me entendo, neste momento, muito 
bem com a mãe, mas do pai gosto sempre na mesma, e 
a Margot gosta de ambos. Mas a gente na nossa idade 
queria, por vezes, decidir sózinha sobre as suas coisas e 
a sua vida, e não depender sempre dos outros. Se vou para 
cima, perguntam o que vou lá fazer; não me deixam comer 
sal às refeições; todas as noites, é garantido, a mãe pergunta-me se ainda não me quero despir. 
Cada livro que me 
apetece ler tem de ser primeiro apreciado por eles. Bem 
sei que a censura não é rigorosa e posso ler quase tudo, 
mas o que nos aborrece é o controle constante e também 
as observações e as anotações. Pelo que me respeita, já 
não sou a criancinha "beijinho aqui, beijinho ali", e acho 
todos os diminutivos de carinho bastante artificiais. Em 
poucas palavras: durante algum tempo aguentar-me-ia 
bem sem os pais, sempre cheios de cuidados carinhosos. 
Ontem a Margot disse : 
 - É quase ridículo! A gente já nem pode apoiar a 
cabeça na mão sem que perguntem logo se temos dores 
de cabeça ou se não nos sentimos bem! 
 É uma desilusão para nós duas verificarmos que muito 
pouco resta do nosso convívio familiar tão íntimo. A causa 
disto é haver entre nós relações um pouco erradas. Com 
isto quero dizer que eles nos tratam como crianças e não 
se lembram de que estamos mentalmente mais desenvolvidas do que as outras raparigas da nossa 
idade. Embora 
eu só tenha catorze anos, sei muito bem o que quero e 
sei também quem tem razão. Tenho a minha opinião, as 
minhas concepções, os meus princípios. Talvez isto soe a 
vaidade, mas já não me sinto criança, sinto-me despegada 
seja de quem for. Sei que discuto melhor do que a mãe, 
que sou mais objectiva e não tão exagerada, sei que tenho 
mais ordem nas minhas coisas e que sou mais habilidosa e, 
por isso-, se quiseres, ri-te de mim!-em muitas coisas 
superior a ela. Para amar alguém, a primeira condição é 
poder admirar-admirar e respeitar. Tudo seria melhor 
se o Peter fosse meu. A ele posso admirá-lo em muitas 
coisas. É bom rapaz, um rapaz às direitas! 
Tua Anne Domingo, 19 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Ontem foi um dia importante para mim. Tinha resolvido 
falar abertamente com o Peter. Antes de nos sentarmos 
à mesa, perguntei-lhe baixinho: 
 -Estudas estenografia logo à tarde, Peter? 
 -Não, senhora-disse ele. 
 -Gostava de falar contigo. 
 -Está bem. 
 Por atenção, ainda fiquei, depois de termos lavado a 
louça, um bocado com os pais dele. Depois fui ter com 
o Peter. Ele estava do lado esquerdo da janela, eu pus-me 
à direita. Fala-se melhor na penumbra do que em plena 
luz. Creio que o Peter é da mesma opinião. 
 Falámos sobre tantas coisas que não me é possível 
escrever tudo, mas foi maravilhoso, nunca vivi nada tão 
maravilhoso desde que entrei nesta casa. Alguma coisa 
vou reproduzir-te. Falámos dos eternos conflitos cá em 
casa, que eu agora vejo com olhos diferentes, e do afastamento 
íntimo dos nossos pais. Contei-lhe coisas do meu pai, 
da minha mãe, da Margot e de mim. De repente, ele 
perguntou-me : 
 - Vocês beijam-se quando dizem "boa-noite" uns aos 
outros? 
 - Pois claro, beijamo-nos muitas vezes. Vocês não? 
 -Nós não. Poucas vezes tenho dado beijos a alguém. 
 - E no dia dos teus anos? 
 - Ah sim, nesse dia beijamo-nos. 
 Dissemos que era impossível falar sobre os nossos problemas 
aos pais, e ele confessou que os dele queriam muito 
ser os seus confidentes mas que não podiam sê-lo. Contei-lhe 
que chorava de noite, na cama, quando tinha desgostos e ele disse-me que ia para o sótão 
praguejar. Também lhe 
contei que a Margot e eu só agora nos chegámos a conhecer 
bem, mas que não podemos confiar tudo uma à outra 
por estarmos próximas de mais. E falámos de muito mais 
coisas e ele era exactamente como eu tinha imaginado. 
 Depois voltámos a falar de 1942, de como tínhamos 
sido tão diferentes e que, ao princípio, não gostávamos um 
do outro. Nessa altura ele achava-me espevitada e desagradável 
e eu não encontrava nada nele que me interessasse. 
Parecia-me incompreensível que ele nem sequer procurasse 
namoriscar mas agora estou contente por isso mesmo. 
Disse-me que procurava isolar-se, e eu expliquei-lhe que 
entre a minha vivacidade e a sua calma quase não havia diferença porque eu desejava tanto o sossego como ele e 
só encontrava um bocado de paz junto do meu diário. 
Ele ainda disse ter sido uma felicidade os meus pais virem 
com as filhas para o anexo, e eu disse-lhe que me sentia 
feliz por ele estar cá e que o compreendo na sua solidão e 
nas suas relações com os pais e que gostaria de o ajudar. 
 - Mas tu estás constantemente a ajudar-me. 
 - Eu ajudar-te, em quê?-perguntei espantada. 
 - Com a tua alegria. 
 Foi a coisa mais bonita que me podia ter dito. Foi 
mesmo maravilhoso. Sei agora que me aprecia como boa 
camarada e, para já, sinto-me satisfeita. É-me difícil 
 explicar em palavras a minha felicidade e gratidão. E 
 tenho de te pedir desculpa, Kitty, por o meu estilo não 
 estar hoje à altura. 
 Escrevi tudo conforme me vinha à cabeça. Tenho a 
sensação de partilhar com o Peter um segredo. Todas as 
vezes que olha para mim, ri-se ou pisca os olhos, e é como 
se tudo se iluminasse à minha volta. Oxalá que nada se 
modifique e que ainda possamos passar juntos muitas horas 
felizes. 
Da tua grata e feliz 
 Anne 
Segunda-feira, 20 de Março de 1944 
 Querida Kitty : 
 Hoje de manhã o Peter perguntou-me se não ia ter 
com ele à tardinha e acrescentou que não o estorvava. 
Disse que no quarto dele tanto havia lugar para um como 
para dois. Respondi-lhe que não podia ir todas as tardes 
porque os outros não achavam bem, mas ele disse que 
não me devia importar com isso. Então prometi ir no 
sábado e pedi-lhe que me avisasse sempre que houvesse 
luar. 
 - Combinado-disse ele-, quando houver luar vamos 
lá para baixo contemplá-lo. 
 Entretanto, caiu uma sombra sobre a minha felicidade. 
Já desconfiava há bastante tempo de que a Margot também 
gosta do Peter. Não sei se gosta muito mas, de qualquer 
maneira, não me sinto à vontade. Sempre que vou para 
junto do Peter, causo-lhe decerto um desgosto. 
 Acho muito delicado da parte dela procurar não mostrar 
a sua dor. Se fosse eu, ficava fora de mim de ciúmes. 
Mas a Margot diz que me não apoquente e que não tenha pena dela. 
 - Mas não acho agradável que fiques assim de fora, 
como uma terceira pessoa. 
 - Estou habituada-disse ela um tanto amargamente. 
 Ainda não tive coragem de contar isto ao Peter. Talvez 
lhe conte qualquer dia. Por agora, temos de fazer outras 
confidências. A mãe ontem ralhou-me. Mereci-o bem, 
pois levei longe de mais a minha indiferença para com 
ela. Hei-de fazer os possíveis para me dominar; vou tentar 
ser amável e não responder torto. Também o Pim está 
menos afectuoso. Pretende não tratar-me como uma criança e cai no extremo oposto: é frio de 
mais. Vamos a ver o 
que sai disto tudo! 
 Basta. Quero estar sempre a olhar para o Peter, estou 
a transbordar. 
 Uma prova da generosidade da Margot: recebi hoje, 
20 de Março de 1944, esta carta: 
 Anne, quando ontem te disse que não tinha ciúmes de ti só 
fui 50 por cento sincera. A verdade é esta: não tenho ciúmes nem de ti nem do Peter, mas tenho 
pena de mim por não ter encontrado ainda ninguém-e não vejo jeito de encontrar por enquanto - 
com quem possa falar abertamente sobre o que penso e sinto. Não vos invejo por terdes 
confiança um no outro. Isso compensa-te um pouco de tudo aquilo de que estás privada aqui e 
que outras raparigas possuem como coisa natural. 
 Por outro lado sei que não me teria aproximado tanto do 
Peter como tu, pois só posso fazer confidências a alguém muito 
intimo, a uma pessoa que me compreenda sem ser preciso entrar 
em grandes pormenores. E esse alguém tinha de ser 
intelectualmente superior a mim, e não é o caso do Peter. Mas 
compreendo que vocês dois se entendam muito bem. Por 
 isso não penses que me estás a roubar qualquer coisa ou que eu fique prejudicada, porque não é 
assim. 
Tu e o Peter só lucram com o vosso convívio. 
A minha resposta: 
 Querida Margot, a tua carta foi muito gentil mas, mesmo 
assim, não me sinto apaziguada e não sei se é que isto alguma 
vez pode acontecer. 
 Não tenho tanta intimidade com o Peter como estás a 
imaginar. Simplesmente sentimo-nos mais à vontade quando falamos ao fim da tarde, junto da 
janela aberta, do que durante o dia, à luz do Sol. 
É mais fácil murmurar os sentimentos do que dizê los em voz alta. 
 Suponho que sentes pelo Peter uma espécie de afeição de irmã 
e que gostarias de o ajudar tal qual como eu. Talvez ainda 
venhas a ajudá-lo sem que vocês tenham a intimidade que nós 
sonhamos. A confiança tem de ser recíproca. Julgo que é esta a razão por que não me posso abrir com o pai inteiramente. 
Não falemos mais sobre o assunto. Se houver alguma coisa 
a dizer, escreve-me. É-me mais fácil exprimir-me por escrito. 
Talvez não saibas quanto te admiro. Oxalá que eu tenha dentro 
de mim um pouco de bondade do pai e da tua, pois nisto é que 
sois muito parecidos. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 22 de Março de 1944. 
Querida Kitty: 
Ontem recebi esta carta da Margot: 
Querida Anne: 
 A tua carta deu-me a impressão de que sentes remorsos quando 
vais ter com o Peter para trabalhar ou falar com ele. Mas não 
tens motivos para isso. O Peter não é pessoa que pudesse 
servir-me de confidente. Tens razão quando dizes que o vês 
como um irmão, mas... como um irmão mais novo! Dá-me sempre a 
ideia de que tanto ele como eu estamos a estudar-nos 
mutuamente para verificar, se nós, talvez um dia, ou talvez 
nunca, poderemos conviver como irmãos. Mas por enquanto ainda 
é cedo. 
,Não tenhas pena de mim, por fanor. Goza a amizade que, 
felizmente, encontraste. 
 Entretanto acho a vida cada vez mais bela. Acredita, 
Kitty, o velho anexo ainda há-de assistir a um verdadeiro 
grande amor. Não quero saber, por ora, se, mais tarde, 
casarei com o Peter, porque não sei como ele será quando 
adulto. Também não sei se depois ainda gostaremos tanto 
um do outro. Que o Peter agora gosta de mim, já não 
tenho dúvidas. Mas não sei bem que espécie de amor é 
o seu. Ser uma boa camarada, aprecia-me como rapariga 
 ou como irmã? Ainda não consegui descobrir. 
 Quando me disse, ao falar nas zangas entre os seus 
pais, que o ajudo muito, fiquei satisfeita e compreendi 
que a nossa amizade tinha dado um grande passo em frente. 
Ontem perguntei-lhe o que faria ele se aqui vivessem uma 
dúzia de Annes que, a cada passo, fossem ter com ele. 
Respondeu: 
 - Se fossem todas como tu, não seria nada mau. 
 Recebe-me sempre muito bem e vê-se que gosta de 
me ver aparecer. Está a estudar francês com mais entusiasmo, até estuda à noite na cama, depois das dez horas. 
Oh, quando penso no sábado, nas nossas conversas, na 
delícia de cada momento, sinto-me, pela primeira vez, 
satisfeita comigo própria. Não me arrependo de nenhuma 
das palavras que pronunciei, ao contrário do que sucede 
quase sempre. Ele é muito bonito quando se ri e também 
quando está calado, e é simpático e bom. A meu ver deve 
ter ficado espantado ao verificar que, afinal, não sou a 
rapariga mais superficial que existe na Terra mas sim uma 
criatura sonhadora como ele e com as mesmas dificuldades 
a vencer. 
Tua Anne 
A minha resposta 
Querida Margot: 
 Parece-me que o melhor é deixarmos correr as coisas. 
 Qualquer dia o Peter e eu havemos de tomar uma decisão, de 
uma maneira ou de outra. Como isto se vai passar, não 
 sei, mas nestas coisas só costumo pensar na própria 
 ocasião. Uma coisa vou fazer com certeza, caso o Peter 
 e eu selemos definitivamente a nossa amizade: vou 
contar-lhe-e não te peço sequer licençÇa para isso 
que gostas também dele e que pode contar contigo sempre que 
for preciso. Não sei o que o Peter pensa a teu respeito, mas 
hei-de perguntar-lhe. Tenho a certeza de que pensa o 
 melhor. Podes ir ter sempre connosco, a qualquer sítio 
 onde estejamos. Nunca nos estorvarás. E repara, ele e eu 
chegámos a acordo sem termos 
falado, só fazemos confidências ao anoitecer, quando 
escurece... 
 Sê corajosa. Eu também o sou. A tua vez há-de chegar mais 
depressa do que imaginas. 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 23 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 As coisas cá no anexo vão correndo melhor. O nosso 
fornecedor "negro" já saiu da prisão. 
 A Miep voltou ontem, a tosse da Elli melhorou, só 
o Koophuis tem de ficar ainda em casa. Ontem caiu, 
aqui perto, um avião. Os tripulantes conseguiram saltar, 
o aparelho despenhou-se sobre uma escola. Felizmente as crianças não estavam lá. Houve incêndio e também 
alguns mortos. Os alemães metralharam os pára-quedistas. 
A população ficou indignada com tamanha cobardia. 
Nós, isto é, as mulheres medrosas, assustámo-nos muito. 
Acho que isto de metralhar é... nojento. 
 Vou agora muitas vezes tomar um pouco do ar fresco 
da noite no quarto do Peter. É bom estar sentada junto 
dele e olhar através da janela. O sr. van Daan e o Dussel 
fazem pouco quando subo. 
 Dizem: "A segunda pátria da Anne" ou "Não acham 
que fica mal a um jovem receber senhoras no seu quarto 
a estas horas e no escuro?" 
 O Peter mostra uma indiferença espantosa em face 
de tais observações. A mãe dele anda também curiosa 
e gostava de saber quais os assuntos das nossas conversas, 
mas não faz muitas perguntas porque receia uma resposta 
pouco amável. O Peter disse que os adultos têm mas é 
inveja por sermos novos e que se aborrecem por nós não 
ligarmos importância à sua má-língua. Por vezes vem cá 
abaixo buscar-me, mas, apesar de procurar dominar-se, 
fica sempre corado como um pimento e quase não consegue 
falar. Que sorte tenho eu por não corar com tanta facilidade! 
Deve ser uma maçada. 
 O pai diz que sou uma pretensiosa, mas não é verdade. 
Sou apenas um pouco vaidosa. Até agora ninguém me 
tinha dito que o meu físico era agradável, com excepção 
de um rapaz da escola que me achava bonita quando 
me ria. Mas o Peter fez-me ontem um autêntico cumprimento. 
Vou reproduzir-te a conversa. Eu andava intrigada 
por ele repetir tantas vezes: 
 - Ri-te mais uma vez! 
 Perguntei-lhe: 
 - Porque queres que me ria tantas vezes? 
 - Porque ficas muito linda. Aparecem-te covinhas 
nas faces. Como é que fazes isso? 
 - Já nasci assim. É, de resto, a única coisa bonita 
que possuo. 
 - Por amor de Deus, isso não é verdade! 
 - Escusas de me contradizer. Sei que não sou bonita. 
Nunca fui nem serei. 
 - Não estou de acordo. Acho-te bonita. 
 - Não é verdade. 
 - Se eu to digo, podes acreditar que é mesmo. 
 Claro, eu então disse-lhe que o achava também bonito. 
Toda a gente nos enche os ouvidos com ditos sobre a nossa 
amizade. Mas não fazemos caso. As observações são todas 
chochas. Esquecer-se-ão certos pais do seu tempo da juventude? Quer-nos parecer que sim. Tomam-nos a sério 
quando dizemos coisas para rir e riem-se de nós quando 
falamos a sério. 
 Tua Anne 
Segunda-feira, 27 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Na nossa "história da época do mergulho" a política 
devia ocupar um capítulo grande, mas como é um assunto 
que não me tem interessado muito, tenho-me descuidado 
de o tratar. Por isso vou dedicar esta carta à política. 
 Que haja as mais diversas maneiras de pensar é coisa 
evidente, que neste tempo de guerra, cheio de confusões, 
se discuta constantemente, também é lógico, mas... que 
as pessoas se estejam sempre a zangar por causa da 
 política, é estupidez. 
 Que apostem, riam, ralhem, que façam o que lhes 
apeteça - por mim podem mesmo rebentar. Mas que não 
se zanguem, pois as consequências são sempre más. As 
pessoas que nos visitam trazem, não raras vezes, notícias 
que não passam de boatos. A rádio, até agora, tem dito 
a verdade. O Henk, a Miep, o Koophuis, o Kraler, a 
Elli, todos relatam os acontecimentos conforme a sua 
disposição, com todos os "up and down". O Henk ainda 
é o mais sóbrio deles todos. 
 Aqui no anexo a disposição, no que respeita a política, 
é mais ou menos sempre a mesma. Nos debates sem 
fim sobre invasão, bombardeamentos, discursos de ministros, 
etc. etc. ouvem-se opiniões e exclamações 
 "Impossível!... Por amor de Deus quem me dera que já 
 começassem. Quando acabará isto?... Formidável, magnífico, 
 não podia correr melhor..." 
 Optimistas, pessimistas, e não esqueçamos os realistas... 
 todos querem impingir as suas opimiões e, como é velha 
 regra, todos estão convencidos de ter razão. Uma determinada senhora aborrece-se por o marido 
ter tanta confiança nos ingleses. Por sua vez o marido ataca a dita senhora por causa das suas 
expressões trocistas e desdenhosas 
acerca da nação que ele mais admira. Nunca se 
cansam de falar neste assunto. Descobri como a coisa 
funciona: é exactamente como quando se pica uma pessoa 
 com um alfinete e ela dá um pulo. Uso, por vezes, 
este processo. Atiro uma palavra sobre politica e toda a 
gente perde logo a cabeça. 
 Como se as emissões da "Wehrmacht" alemã e as da B. B. C. ainda não fossem suficientes, apareceu agora 
mais outra estação: a "Luftlagemeldung", por vezes fascinante, 
por vezes uma desilusão. Os ingleses dão notícias 
da sua força aérea sem interrupção, durante o dia e a noite; 
os alemães procedem do mesmo modo para espalharem 
as suas mentiras. Aqui ouve-se rádio logo pela manhã cedo 
e depois, de hora em hora, até às dez da noite, por vezes 
até às onze, prova evidente de que os adultos têm uma 
santa paciência mas que, ao mesmo tempo, são lentos de 
compreensão. (há excepções, não quero ofender ninguém). 
Acho que devia bastar uma pessoa ouvir uma ou, quando 
muito, duas vezes, rádio por dia. O programa dos operários, 
as emissões de rádio Orange, Frank Philips, ou Sua Majestade 
a Rainha-ouve-se tudo. Se não estão a comer ou a 
dormir, estão sentados junto da rádio falando de comer 
e de dormir e, claro está, de política. Que maçada. 
 Palavra, é preciso muita arte para não se ficar, desta 
maneira, uma velha seca e sem interesse. 
 Um exemplo eloquente é um discurso de Winston Churchill, 
 a quem todos igualmente admiramos: 
 Domingo, nove horas. O chá já está pronto debaixo 
do abafador. Os hóspedes aparecem. O Dussel fica à 
esquerda do rádio, o sr. van Daan em frente, o Peter ao 
lado, a mãe junto do sr. van Daan, a sra. van Daan atrás 
deles, o Pim à mesa, a Margot e eu também. Os homens 
fumam, o Peter quase adormece de tanto esforço que 
faz para ouvir tudo. A mãe, num roupão comprido e 
escuro e a sra. van Daan tremem por causa dos aviões 
 que, não fazendo caso do discurso, voam sobre a nossa 
casa a caminho do Ruhr. O pai sorve o seu chá, a Margot 
e eu estamos irmãmente unidas pelo Mouchi, que dorme 
estendido sobre os nossos regaços. A Margot tem "bigoudis" 
no cabelo, eu trago um pijama demasiado curto e apertado. Assim encontramo-nos numa 
intimidade agradável, 
pacífica. Mas já estou a ver o que se vai seguir. Eles 
começam a ficar impacientes, querem que aquilo acabe, 
já estão a bater com os pés, ansiosos por discutir sobre o 
discurso. Kss, Kss, Kss... é assim que se provocam uns 
aos outros até que tudo acaba em barulho e desarmonia. 
Tua Anne 
Terça-feira, 28 de Março de 1944. 
Querida Kitty: 
 Podia falar mais ainda sobre a política mas hoje tenho de contar-te uma série de outras coisas. A mãe proibiu-me 
de ir tantas vezes lá para cima porque acha que a sra. 
van Daan está com ciúmes. O Peter convidou a Margot 
para ir também, não sei se o fez por delicadeza ou se foi 
sincero. Perguntei ao pai se devo importar-me com os 
ciúmes da sra. van Daan. Ele acha que não. E agora? 
Minha mãe está aborrecida. Ou talvez ciumenta também, 
quem sabe? O pai não tem inveja dos meus encontros 
com o Peter, está contente por nos darmos tão bem. A 
 Margot acha o Peter simpático, mas compreende que não 
se pode falar a três sobre aquilo que é apenas assunto de 
dois. 
 A mãe supõe que o Peter anda apaixonado por mim. 
Quem me dera que isso fosse verdade. Nesse caso estaríamos 
quites e podíamos falar ainda mais abertamente. 
A mãe diz que ele não me larga com os olhos. E tem razão. 
É que nós, de vez em quando, piscamos os olhos e as 
minhas covinhas agradam muito ao Peter. Mas não há 
nada a fazer, não é verdade? 
 Uma situação difícil. A mãe contra mim, eu contra 
a mãe, e o pai a fechar os olhos perante a luta silenciosa 
que nós duas travamos. A mãe está triste porque, ao fim 
e ao cabo, gosta de mim, e eu não estou nada triste porque 
sinto que ela não me compreende. E o Peter... Não quero 
renunciar ao Peter. É bom rapaz e eu admiro-o. Tudo 
pode vir a ser belo entre nós. Porque é que os adultos querem 
meter o nariz nisto? Felizmente que me habituei a esconder 
os meus sentimentos, pois assim consigo não deixar 
transparecer quanto gosto dele. Ele falará um dia? Virá a sentir a minha face contra a sua como 
aconteceu no 
meu sonho com o outro Peter? Ai! O Peter e o Peter são 
um só, agora. 
 Os outros não nos compreendem, não concebem que 
nos basta estarmos juntos sem dizer nada. Não sabem o 
que nos atrai um para o outro. Quando acabarão estas dificuldades? 
Mas, pensando bem, talvez seja melhor haver 
obstáculos a vencer, porque o final será mais belo ainda! 
 Quando ele deita a cabeça sobre os braços e fecha os 
olhos, parece uma criança; quando brinca com o Mouchi, é 
meigo; quando carrega com os sacos de batatas ou com 
outros pesos, é forte; quando observa os bombardeamentos 
ou segue o rasto dos ladrões na escuridão, é corajoso; 
mas quando é desajeitado e se sente desamparado, é simplesmente um amor. Gosto mais dele 
quando me explica 
coisas do que quando quer aprender comigo. Achava bem 
que ele fosse sempre superior a mim. 
 As mães não me importam. Se, ao menos, ele falasse! Tua Anne 
Quarta-feira, 29 de Março de 1944 
 Querida Kitty: 
 Ontem o ministro Bolkestein disse na emissora de Orange 
que, depois da guerra, se havia de publicar uma série de 
diários e de cartas desta época. Aqui começaram logo 
a falar no meu diário. E se eu publicasse um romance 
sobre o anexo?. Não te parece interessante? Mas, com 
este título, toda a gente era capaz de imaginar que se 
tratava de um romance policial. 
 Basta de brincadeira, deixa-me falar a sério. Não parecerá 
inconcebível ao Mundo, depois da guerra-digamos 
dez anos depois-, o que nós, os judeus, contarmos sobre 
a nossa vida aqui, as nossas conversas e as nossas refeições? 
Pois embora te tenha contado muita coisa, tu ainda 
só ficaste a saber uma pequena parcela desta vida. 
 O medo das senhoras, quando há bombardeamentos 
como os do Domingo passado, em que trezentos e cinquenta 
aviões ingleses lançaram meio milhão de quilos 
de dinamite sobre Ijmuiden e as casas estremeceram como 
as folhas com o vento. E o terror das epidemias que grassam 
 no país! Disto ainda sabes pouco, e seria preciso que 
eu escrevesse todo o dia se quisesse fazer um relatório 
completo. A população forma bichas para comprar hortaliça 
ou seja o que for. Os médicos não podem visitar 
os seus doentes, porque lhes roubaram o automóvel ou 
a bicicleta. Ouve-se falar de pequenos furtos e de roubos 
em grande escala, e eu prgunto a cada passo o que foi 
feito da honestidade dos holandeses, quase proverbial? 
Crianças dos oito aos onze anos partem os vidros das habitações alheias e tiram tudo o que lhes 
vem parar ás mãos. 
Nimguém tem coragem de deixar ficar a sua casa abandonada 
durante cinco minutos, pois, ao voltar, pode muito bem encontrá-la vazia. Todos os dias se lêem 
nos jornais 
anúncios em que se prometem gratificações pela entrega 
de coisas roubadas, máquinas de escrever, tapetes persas, 
relógios eléctricos, tecidos, etc., etc. Os relógios das ruas 
são desmontados, e até se tiram os telefones das cabinas 
sem deixar ficar um pedaço de fio sequer. 
 Evidentemente não pode haver bom ambiente entre a 
população. O racionamento não chega. A invasão faz-se 
esperar, os homens têm de ir para a Alemanha. As crianças 
estão subalimentadas e doentes. Quase toda a gente usa roupa e calçado de má qualidade. Umas solas "negras" 
custam cinquenta florins. Mas os sapateiros raras vezes 
aceitam freguesia ou então levam quatro meses a compor 
os sapatos se estes, entretanto, não forem roubados. 
 Uma coisa boa: as sabotagens contra a ocupação 
aumentam à medida que a alimentação piora e as condições 
se tornam mais severas. Os funcionários da distribuição 
de víveres e de outras repartições ajudam, em grande 
parte, a população, mas também há traidores que levam 
gente às prisões. Contudo, felizmente, são poucos os holandeses que estão do lado mau. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 31 de Março de 1944 
Querida Kitty: 
 Ainda está muito frio, mas a maioria das famíliasjá não 
tem carvão. Coisa divertida, não te parece? Há um grande 
e geral optimismo porque tudo vai às mil maravilhas na 
 frente russa. Não quero escrever muito sobre política mas 
 não posso deixar de informar-te de que os russos se encontram em frente do G. Q. G. alemão e 
que se estão a 
 aproximar da Roménia pelo Pruth; estão perto de Odessa. 
Espera-se um comunicado especial de Estaline numa das 
noites mais próximas. 
 Moscovo atroa os ares com salvas. Não sei se eles 
acham bonito imitar assim o barulho da guerra ou se não 
conseguem expandir a sua alegria de outra maneira. 
 A Hungria está ocupada pelos alemães. Vive nesse 
país um milhão de judeus que, decerto, hão-de sofrer as 
consequências. 
 Aqui não aconteceu nada de especial. O sr. van Daan 
faz hoje anos. Recebeu dois maços de tabaco, café para 
uma chávena (foi a esposa que lho guardou desde há muito), 
um ponche de limão do Kraler, sardinhas da Miep, e de 
nós, água de Colónia, lilases e tulipas e ainda uma torta com 
framboezas e groselhas quase a desfazer-se, por causa de 
a farinha e a manteiga serem de péssima qualidade, mas 
de sabor estupendo. 
 As más-línguas já não se preocupam tanto com o Peter 
e comigo. Nós dois somos bons amigos, estamos muitas 
vezes juntos e conversamos sobre os mais variados assuntos. 
Embora falemos também de coisas delicadas, não preciso de guardar certas reservas como, 
decerto, teria de fazer 
com outros rapazes. Quando, por exemplo, um destes dias, 
veio à baila o tema sangue, falámos também na menstruação. O Peter acha que nós, as mulheres, somos resistentes. 
Ah! Ah! Ah! E porquê? 
 A minha vida aqui melhorou muito. Deus não me 
abandonou e não me há-de abandonar. 
Tua Anne 
Sábado, 1 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Apesar de tudo, as coisas continuam a ser difíceis. Sabes 
o que quero dizer? É que queria ser beijada, queria esse 
beijo que tanto se faz esperar. Verá o Peter em mim mais 
do que uma boa camarada? Não significo outra coisa para 
ele? Tu bem sabes que sou forte, que sei suportar sòzinha 
o meu fardo e que não me habituei a procurar auxílio. 
Nunca me agarrei à mãe. Mas agora sinto desejo de encostar 
 a cabeça aos ombros do Peter e de ficar muito quietinha. 
 Não consigo esquecer-me do sonho em que sentia a 
face do Peter contra a minha. Como isso era belo! E ele, 
não terá o mesmo desejo? É tímido de mais para me confessar 
o seu amor? Mas porque é que me quer sempre ao 
seu lado? Porque é que não fala? Quero ser calma. Quero 
ser forte. Com um pouco de paciência, tudo virá. Mas 
-e isto é aborrecido-tenho quase a ideia de que ando 
atrás dele, por ter de ir lá para cima. Não é ele que vem 
ter comigo. Mas a culpa é da distribuição dos quartos e 
oxalá o Peter compreenda bem isto. Oh! Ainda há muito 
mais coisas que ele tem de compreender! 
Tua Anne 
Segunda-feira, 3 de Abril de 1944 
Querida Kitty : 
 Contra o meu costume, vou falar-te hoje minuciosamente 
da comida, pois é um problema que não só diz 
respeito ao nosso anexo mas a toda a Holanda, à Europa, 
e talvez ao Mundo inteiro. 
 Nos vinte e um meses que aqui vivemos, já passámos 
por uma série de períodos alimentares. Vou explicar-te 
o que isto quer dizer. Um "período alimentar é um período 
em que se come sempre o mesmo prato de fundo e os 
mesmos legumes. Durante algum tempo só tínhamos salada, 
umas vezes com areia, outras vezes sem areia, umas vezes misturada com as batatas, outras vezes com as batatas à 
parte, assadas numa assadeira. Depois veio o tempo dos 
espinafres, depois o da couve rábano, de cenouras, pepinos, 
tomates, "choucroute", etc., etc., isto depende da estação 
do ano. Não é nada agradável comer todos os dias choucroute 
ao almoço e choucroute ao jantar, mas quando 
se tem fome, come-se mesmo. Agora chegou o período mais 
interessante: já não recebemos mais legumes frescos. Agora 
o nosso "menú" da semana consiste em feijão vermelho ou 
sopa de ervilhas secas, batatas com bolinhos de farinha, 
puré de batata ou, quando Deus quer, alguns nabos ou 
cenouras meio podres, e depois, de novo, feijão vermelho. 
Comemos batatas a cada refeição, a começar pelo pequeno 
almoço, por não haver pão suficiente. Para fazer sopas 
utilizamos, além dos feijões vermelhos, também os brancos 
ou batatas, ou então usamos sopas preparadas: "Sopa 
Juliana", "sopa da Rainha" ou "sopa de feijão vermelho". 
Já não há comida nenhuma sem feijão vermelho, nem o 
próprio pão. à noite comemos as batatas com um molho 
de fantasia e um pouco de salada de beterraba das nossas 
conservas. Também quero falar-te dos bolinhos de farinha. 
Fazemo-los de farinha do "governo" e com água e fermento. 
Claro que ficam pegajosos e duros, pesam no 
estômago como pedras. É isto. 
 O grande acontecimento da semana é uma fatia de 
"foie-gras" e um pouco de compota para pôr no pão. Mas 
estamos ainda vivos e as nossas refeições frugais, pòr vezes, 
até nos sabem muito bem. 
Tua Anne 
Terça-feira, 4 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Durante muito tempo eu já nem sabia porque é que 
trabalhava. O fim da guerra está ainda tão longe, tão 
irreal, tão fantástico! Se a guerra não acabar em Setembro, 
não voltarei para a escola, pois não quero andar dois anos 
atrasada. 
 Os dias têm sido para mim inteiramente cheios pelo 
Peter. Os meus pensamentos, os meus sonhos, tudo tem 
girado à volta do Peter, de tal forma que no sábado sentia-me 
atordoada. Sentada ao lado dele, tive de fazer um 
esforço enorme para não chorar e, no entanto, pus-me a 
rir com a sra. van Daan ao fazermos um ponche de limão. 
Excitei-me e parecia estar alegre mas, mal me encontrei sòzinha, vi que havia de chorar. Em camisa de noite 
ajoelhei-me no chão, rezei muito e depois chorei, a cabeça 
sobre os braços, acocorada no chão frio. Por fim voltei a 
mim, dominei as lágrimas e os soluços para que ninguém 
me ouvisse. Depois animei-me a mim própria, dizendo 
repetidas vezes: tem que ser, tem que ser, tem que ser... 
 Quase quebrada por aquela posição insólita encostei-me 
à borda da cama até que, pouco antes das dez e 
meia, consegui deitar-me. Acabou-se. Sim, agora tudo se 
acabou. Tenho de trabalhar para não ficar ignorante, 
para avançar mais tarde na vida, para vir a ser uma 
jornalista! Sei que serei capaz de escrever bem, alguns 
dos meus contos são bons, as minhas descrições do anexo 
têm humor, há passagens eloquentes no meu diário, mas... 
ainda não provei que tenho, de facto, talento. O sonho 
de Eva é a minha melhor história, e acho estranho que 
nem eu própria saiba explicar aonde fui buscar aquilo. 
 Uma parte de A vida de Candy também não está mal, mas 
o conjunto não presta. 
 Sou eu mesma o meu crítico mais severo. Sei o que 
está bem ou mal escrito. As pessoas que não escrevem não 
imaginam quanto prazer isto pode dar. Antigamente tinha 
pena de não saber desenhar. Mas agora sinto-me feliz por 
saber, ao menos, escrever. E se não tiver talento suficiente 
para escrever livros ou artigos de jornal, enfim, sempre 
me restará escrever para meu próprio deleite. 
 Quero vir a ser alguém. Não me agrada a vida que 
levam a mãe, a sra. van Daan e todas essas mulheres que 
trabalham para, mais tarde, ninguém se lembrar delas. 
Além de um marido e de filhos, preciso de mais alguma 
coisa a que me possa dedicar! Quero continuar a viver 
depois da minha morte. E por isso estou tão grata a Deus 
que me deu a possibilidade de desenvolver o meu espírito 
e de poder escrever para exprimir o que em mim vive. 
 Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece, 
a coragem volta. Mas pergunto-me : escreverei 
alguma vez coisa de importância? Virei a ser jornalista ou 
escritora? Espero que sim, espero-o de todo o meu coração! 
Ao escrever sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os 
meus ideais, as minhas fantasias. Não tenho trabalhado 
em A vida de Candy, mas sei como desenvolver a história 
e só não consigo fazê-lo ràpidamente. Pode ser que nunca 
acabe aquilo e que vá parar ao cesto de papel ou ao fogão. 
Não é uma ideia agradável, mas penso: com catorze anos 
e com tão pouca experiência, ainda não se pode, afinal, 
escrever uma história filosófica. 
 Não quero perder a coragem. Tudo há-de sair bem, pois estou decidida a escrever! 
Tua Anne 
Quinta-feira, 6 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Perguntas-me o que é que mais me interessa e quais 
são os meus mais queridos entretenimentos. Não te assustes; 
é que não são poucas coisas. 
 Em primeiro lugar, gosto de escrever, mas isto não é 
bem um entretenimento. 
 Em segundo, gosto da genealogia das casas reais. Já 
encontrei, em jornais, livros e papéis, bastante material 
sobre as famílias francesas, alemãs, espanholas, inglesas, 
austríacas, russas, norueguesas e holandesas. Consegui bons 
resultados; há bastante tempo que tiro apontamentos de 
todas as biografias e livros de história que leio. 
 O meu terceiro entretenimento é a história, por isso 
o pai já me comprou alguns livros sobre este assunto. 
Oxalá não venha longe o dia em que possa fazer investigações 
nas bibliotecas públicas. 
 Em quarto lugar, gosto da mitologia grega e romana, e 
também sobre isso tenho vários livros. 
 Outros entretenimentos são a colecção de fotografias 
de "estrelas" de cinema e da família, os livros, saber coisas 
sobre escritores, poetas e pintores e sobre a história da 
arte. Pode ser que ainda, um dia, a música venha a 
juntar-se a tudo isto. 
 Tenho grande antipatia pela álgebra, a geometria e 
toda a espécie de contas. Fora isto agrada-me qualquer 
disciplina da escola, mas coloco a história acima de todas. 
Tua Anne 
Terça-feira, 11 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Sinto como que marteladas na cabeça! Nem sei por 
 onde começar. Sexta-feira (Sexta-feira Santa) à tarde, e 
 no sábado também, fizemos vários jogos. Esses dias 
 passaram-se sem novidade e bastante depressa. No domingo 
pedi ao Peter que viesse aqui e mais tarde subimos e ficámos 
lá em cima até às seis horas. Das seis e quinze até às sete 
horas ouvimos um belo concerto de música de Mozart; do que mais gostei foi da "Kleine Nachtmusik". Não 
consigo escutar bem quando há muita gente à minha volta, 
porque a boa música comove-me profundamente. 
 Domingo à noite o Peter e eu fomos ao sótão. Para 
estarmos sentados confortàvelmente, levámos umas almofadas 
que pusemos em cima de um caixote. O sítio é 
estreito e estávamos muito apertados um contra o outro. 
A Mouchi fazia-nos companhia. Assim havia quem nos 
vigiasse. De repente, às nove menos um quarto, o sr. van 
Daan assobiou e perguntou se nós tínhamos levado uma 
almofada do sr. Dussel. Saltámos do caixote abaixo e descemos 
com as almofadas, o gato e o sr. van Daan. Por causa 
da almofada do sr. Dussel desenrolou-se uma verdadeira 
tragédia. Ele estava desaustinado por termos levado a 
sua "almofada da noite". Receou que a enchêssemos de 
pulgas, fez cenas tremendas por causa de uma reles almofada. 
Como vingança, o Peter e eu metemos-lhe duas 
escovas duras na cama. Rimo-nos muito daquela pequena 
partida Mas o divertimento não havia de ser de 
longa duração. às nove e meia o Peter bateu à porta e pediu 
ao pai que subisse para lhe ensinar uma frase inglesa muito 
complicada. 
- Aqui há gato-disse eu à Margot.-Ele não está a 
dizer a verdade. 
 E tinha razão. Havia ladrões no armazém. Com rapidez, 
o pai, o Peter, o sr. van Daan e o Dussel desceram. 
A mãe, a Margot, a sra. van Daan e eu ficámos à espera. 
Quatro mulheres cheias de medo não podem fazer outra 
coisa senão porem-se a falar. Assim fizemos. De repente, 
ouvimos, lá em baixo, uma pancada forte. Depois, silêncio. 
O relógio deu dez menos um quarto. Estávamos lívidas 
muito quietas e cheias de medo. Que foi feito dos homens. 
O que é que significava aquela pancada? Haverá luta 
entre eles e os ladrões? Dez horas. Passos na escada. Entra 
primeiro o pai, pálido e nervoso, depois o sr. van Daan. 
 - Fechem a luz. Subam sem fazer barulho. Deve vir 
a polícia. 
 Agora não havia tempo para medos. Fechámos a luz. 
Ainda peguei no meu casaquinho e subimos. 
 - O que aconteceu? Depressa, conta! - Mas não havia 
 ninguém que pudesse contar, porque os senhores já tinham 
 descido outra vez. às dez e dez voltaram, dois ficaram de 
 guarda na janela aberta, no quarto do Peter. A porta do 
 corredor ficou fechada. A porta giratória também. Sobre 
 o candeeiro lançámos uma camisola. Depois eles começaram 
a contar: 
 O Peter ao ouvir duas pancadas fortes, correu abaixo  e viu que do lado esquerdo da porta do armazém faltava 
uma tábua. Voltou depressa para cima, avisou a parte 
mais corajosa do grupo e então eles, os quatro, desceram. 
 Quando entraram no armazém encontraram os ladrões 
 em flagrante. Sem reflectir o sr. van Daan gritou : 
 - Polícia! 
 Os ladrões fugiram num instante. Para evitar que a 
 ronda da Polícia notasse o buraco, os nossos homens colocaram 
a tábua no sítio, mas um pontapé de lá de fora 
 deitou-a novamente ao chão. Os quatro ficaram perplexos 
 com tanto atrevimento. O sr. van Daan e o Peter sentiram 
 vontade de matar aqueles patifes. O sr. van Daan bateu com 
 o machado no chão. Depois novamente silêncio. Tentaram 
 colocar outra vez a tábua. 
 Novo susto: lá fora estava um casal e a luz forte de uma 
 lâmpada de mão iluminou todo o armazém. 
- Com mil raios!-disse um dos nossos e... num instante 
trocaram o seu papel de polícias pelo de ladrões. 
Fugiram. Subiram. O Peter abriu portas e janelas na cozinha 
do escritório particular, deitou o telefone ao chão e 
depois desapareceram todos por detrás da porta giratória. 
Fim da primeira parte. 
 Provàvelmente o casal avisaria a Polícia. Era domingo, 
Domingo de Páscoa, e ninguém viria ao escritório, antes 
de terça-feira de manhã. Não podíamos fazer mesmo nada. 
Imagina duas noites e um dia a passar com tal angústia! 
Nós, as mulheres é que já não éramos capazes de imaginar 
coisa alguma. Estávamos sentadas às escuras; a sra. van 
Daan resolveu fechar todas as luzes, e sempre que se 
ouvia um ruído murmurávamos "chut, chut". 
 Eram dez e meia, onze horas, e de ruídos nada. Alternadamente 
vinham ter connosco o pai e o sr. van Daan. 
Depois, às onze e um quarto, ouvimos ruídos lá em baixo. 
Agora já se ouvia a respiração de cada um de nós. Não 
nos mexemos. Passos na casa, no escritório particular, na 
cozinha, depois... na escada que conduz à porta camuflada. 
Retivemos a respiração; oito corações a martelar. 
Passos na escada, sacudidelas nas prateleiras da porta 
giratória. Estes momentos são impossíveis de descrever. 
 -Estamos perdidos-pensei, e já nos via, a todos, 
arrastados pela Gestapo através da noite. Mais duas vezes 
mexeram na porta giratória, depois alguma coisa caiu e os 
passos afastaram-se. De momento, estávamos salvos. Então 
começámos todos a tremer. Ouvia-se o bater de dentes; 
ninguém conseguia pronunciar uma palavra. 
 Não se ouvia mais nada em toda a casa, mas havia 
luz do outro lado da porta camuflada. Teriam desconfiado desta ou esqueceram-se de apagar a luz? Dentro do 
prédio já não se encontravam estranhos; só lá fora, na 
rua, haveria possivelmente um guarda. As nossas línguas 
soltaram-se, começámos a falar, mas o medo ainda nos 
dominava. Todos precisavam... O Peter tem um cesto de 
papéis de chapa de ferro, que podia substituir o balde que 
 estava no sótão. 
O sr. van Daan começou, depois o pai. A mãe teve 
vergonha. O pai levou-nos o cesto ao quarto, onde a Margot, a sr. van Daan e eu, muito 
contentes, o utilizámos, 
e, por fim, também a mãe. Todos queriam papel. Felizmente 
eu trazia algum comigo no bolso. 
 Do cesto vinha um cheirete horrível; falávamos em voz 
baixa; estávamos cansados. Era meia-noite. 
 - Deitem-se no chão e durmam! 
 Deram-nos, à Margot e a mim, almofadas. A Margot 
ficou deitada junto do armário dos víveres e eu entre as 
pernas da mesa. No chão não se sentia tanto o mau cheiro, 
mas a sra. van Daan, sem fazer o mínimo ruído, foi buscar 
um pouco de cloro e deitou-o no cesto, que depois cobriu 
com um pano velho. 
 Conversas, murmúrios, mau cheiro, medo, e sempre 
alguém sentado no cesto. Impossível dormir-se. às duas 
e meia eu estava tão cansada que não ouvi mais nada 
até às três e meia. Depois acordei. Senti a cabeça da 
sra. van Daan em cima do meu pé. 
 -Dêem-me alguma coisa para vestir. Tenho frio. 
 Atiraram-me roupa. Mas não queiras saber o que era! 
Fiquei com calças de lã em cima do pijama, um "pulover" 
e uma saia preta, umas meias brancas e, por cima, soquetes 
rotos. 
 Agora a sra. van Daan sentou-se numa cadeira e o 
sr. van Daan deitou-se no chão, também em cima dos 
meus pés. Comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido 
e pus-me a tremer de tal forma que o sr. van Daan 
não pôde dormir. Preparei mentalmente as palavras que 
havíamos de dizer, caso a polícia voltasse. Com certeza era 
preciso confessar-lhes que éramos "mergulhados". Ou eles 
eram bons holandeses-e então estávamos salvos-ou eram 
pró-nazis e então aceitavam dinheiro! 
 - Tira o rádio-suspirou a sra. van Daan. 
 -Queres que o deite ao fogão? Se nos encontrarem,já 
não importa que encontrem também o rádio. 
 - Então encontram também o diário da Anne-disse 
o pai. 
 - E se o queimássemos-propôs a pessoa mais medrosa 
do nosso grupo.  Este momento e aquele em que eu tinha ouvido as 
 sacudidelas da Polícia na porta giratória, foram para mim 
 os mais terríveis. 
 - O meu diário não! O meu diário só será queimado 
 comigo! 
 Graças a Deus, o pai já nem me respondeu. 
 Não vale a pena reproduzir todas as conversas. Confortei 
a sra. van Daan, que estava cheia de um medo horrível. 
Falámos de fugas, interrogatórios, da Gestapo e da 
necessidade de sermos corajosos. 
 -Agora temos de ser valentes como os soldados 
sra. van Daan. Se nos apanharem, o nosso sacrifício será 
pela rainha, a pátria, a verdade e o direito, como dizem 
também na emissora de Orange. 
 O que mais me aflige é arrastarmos tanta gente para 
a infelicidade. 
 O sr. van Daan tornou a trocar o lugar com a sua 
mulher, o pai veio para junto de mim. Os homens fumavam 
sem interrupção, de vez em quando ouvia-se um 
 suspiro fundo, depois alguém a correr ao cesto... e isto 
 ainda se repetiu muitas vezes. Quatro horas, cinco horas, 
cinco e meia. Fui ao quarto do Peter. Ficámos sentados 
à janela, ouvíamos os ruídos, cada um sentia as vibrações 
do corpo do outro, tão encostados estávamos. Só dizíamos 
 uma palavra, de longe em longe. Estávamos sempre 
atentos ao que se ia passando. Ao lado ouvimos alguém 
abrir as persianas. 
 às sete, os senhores queriam telefonar ao Koophuis e 
pedir-lhe que mandasse alguém. Escreveram num papel 
o que lhe iam dizer. Havia o perigo de o guarda em frente 
da porta ouvir o toque do telefone, mas o perigo da 
Polícia voltar era maior ainda. Os tópicos a comunicar ao 
Koophuis eram os seguintes: 
 Assalto: a Polícia entrou em casa, chegou até à porta 
giratória, mas não foi mais longe. 
 Ladrões, provàvelmente apanhados em flagrante, arrombaram 
a porta do armazém e fugiram pelo quintal. 
 Porta principal trancada. O Kraler deve ter saído 
pela outra porta. As máquinas de escrever estão em segurança 
na caixa preta, no escritório particular. 
 Tentar avisar o Henk. Ir buscar a chave a casa da Elli. Ele que venha cá ao escritório com o 
pretexto de que o 
gato precisa de comida. 
 Tudo se fez tal qual. Telefonou-se ao Koophuis, levámos 
as máquinas (que ainda estavam connosco em cima) 
para baixo, e guardámo-las na caixa preta. Sentámo-nos 
à volta da mesa e esperámos pelo Henk ou... pela Polícia.  O Peter adormeceu. O sr. van Daan e eu acabámos 
por deitar-nos no chão. Depois ouvimos passos pesados. 
Eu disse, em voz baixa: 
 - É o Henk. 
 - Não, não, é a Polícia, ouvi dizer alguém. 
 Bateram à porta. O assobio da Miep. Agora é que a 
sra. van Daan não aguentou mais. Branca como a cal, 
sem forças, estava caída na cadeira, e se aquela tensão 
se tivesse prolongado por mais um minuto, ela teria desmaiado. 
 Quando a Miep e o Henk ntraram no nosso quarto, 
ofereceu-se-lhes um lindo espectáculo. Só a mesa valia a 
pena ser fotografada. A revista "Filme e Teatro" aberta, e 
as fotos das lindas "estrelas" do bailado besuntadas com 
compota e com o remédio contra a diarreia. Dois frascos 
de compota, um pão e meio, espelho, pente, fósforos, 
cinza, cigarros, tabaco, cinzeiro, calcinhas, lâmpáda de 
bolso, papel higiénico, etc., etc... 
 Já se vê, recebemos o Henk e a Miep com júbilo e 
lágrimas. O Henk tapou o buraco da porta com a tábua 
e depois foi à Polícia para comunicar o assalto. A Miep 
encontrou debaixo da porta um aviso do guarda-nocturno 
que viu o buraco e avisou a Polícia. O Henk foi também 
falar com ele. 
 Tínhamos uma meia hora para nos arranjarmos. Nunca 
vi uma tal metamorfose em tão pouco tempo. A Margot 
e eu abrimos as camas, fomos ao W. c., lavámo-nos, limpámos 
os dentes e penteámo-nos. Depois, num instante, 
 arrumámos o quarto e voltámos para cima. A mesa já 
 estava limpa. Fomos buscar água, fizemos café e chá e 
 pusemos a mesa para o pequeno almoço. O pai e o Peter 
 limparam o cesto sujo com água e cloro. 
 às onze horas já nos encontrávamos todos com o Henk 
 à volta da mesa e acalmámos pouco a pouco. O Henk contou: 
 - O guarda nocturno Slagter ainda estava a dormir. 
Falei com a mulher e ela disse-me que o marido, ao fazer 
a ronda nos cais, tinha reparado no buraco na nossa 
porta da rua. Foi procurar um polícia e, juntos, rebuscaram 
a casa de cima abaixo. Que na terça-feira viria fazer mais 
comunicações ao Kraler. Foi à esquadra da Polícia, onde 
ainda não sabiam nada do assalto, mas tomaram nota 
e disseram que viriam cá também na terça-feira. 
 No regresso o Henk passou pela loja do hortaliceiro, 
na esquina, e contou-lhe do roubo. 
 - Eu sei, - disse o hortaliceiro pachorrentamente. - Passei, 
ontem à noite com minha mulher pelo vosso estabelecimento 
e vi o tal buraco na porta. Minha mulher não quis 
parar mas eu acendi a minha lâmpada de bolso e iluminei o interior. Os ladrões fugiram logo. Não chamei a Polícia, 
pensei que seria melhor. Não sei nada, mas imagino 
 algumas coisas... 
 O Henk agradeceu e foi-se embora. O hortaliceiro 
decerto suspeita de que estamos aqui, pois entrega as 
 batatas sempre à hora do almoço. Um tipo às direitas. 
 Depois do Henk nos ter deixado - era uma hora - deitámo-nos 
para dormir. às três menos um quarto acordei 
 e já não vi o Dussel na sua cama. Ainda toda entorpecida 
encontrei, por acaso, o Peter no quarto de banho. 
Combinámos encontrar-nos depois em baixo, no escritório. 
 - Ainda sentes coragem para subir ao sótão? - perguntou-me. 
Disse-lhe que sim, fui buscar a minha almofada 
e subimos. O tempo estava uma maravilha. Em breve 
as sereias começaram a dar alarme. Mas nós ficámos onde 
estávamos. O Peter deitou-me um braço em volta dos 
ombros e eu também deitei um braço em volta dos seus 
ombros, e assim ficámos muito calmos, até que veio a 
Margot chamar-nos para o lanche. 
 Comemos pão, tomámos limonada e já estávamos de 
novo dispostos a dizer brincadeiras uns aos outros. Depois 
disso não houve mais nada de especial. à noite agradeci 
ao Peter por ele ter sido o mais corajoso de todos nós. 
 Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação 
 tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. 
Imagina a Polícia a remexer na estante da nossa 
porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco! 
Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, 
cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, 
porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos 
bondosos protectores. 
 -Estamos salvos. Não nos abandones! 
 É apenas isto que podemos suplicar. 
 Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. 
 O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório 
do Kraler mas sim no quarto de banho. às oito e meia 
e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não 
pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e 
meia não podemos utilizar o autoclismo do W. C. Hoje 
à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. 
Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se 
devia mandar fazer isso. O Kraler censurou a nossa imprudência 
e também o Henk disse que não devíamos em tais 
casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que 
somos "mergulhados", judeus enclausurados, presos num 
sítio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. 
Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso 
destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto 
 possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em 
que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia 
em que também nós voltaremos a ser gente como os outros 
e não apenas judeus. 
 Quem foi que nos impôs este destino? Quem decidiu 
excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? 
Quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos 
trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará. Se 
 apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem 
judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. 
Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se 
 aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por 
 isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só 
 holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro país. 
 Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo. 
 Não percamos a coragem. Temos de ter consciência 
da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa 
salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso 
povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. 
Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, 
mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. 
Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não 
morrerão! 
 Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela 
Polícia, estava preparada como os soldados no campo de 
batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que 
estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra. 
 Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. 
É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever 
à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não 
 conseguir este meu fim. 
 Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. 
Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho 
mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, 
mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho 
uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me 
ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser 
mulher, uma mulher com força interior e com muita 
coragem. 
 Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que 
a mãe. Não quero ficar insignificante. Quero conquistar 
o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade. 
 O que sei é que a coragem e a alegria são os factores 
mais importantes na vida! e não sei explicar porquê. Escrevi tudo num caos, não se sente o nexo, 
e cada vez duvido mais de que um dia haja alguém interessado nos disparates que escrevo.  "As confidências de um patinho feio" será o título 
desta papelada. O sr. Bolkestein e o sr. Gerbrandy, os 
coleccionadores de documentos de guerra, não encontrarão 
nada de especial no meu diário. 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 14 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 A atmosfera está ainda tensa. O Pim está muito irritável. 
A sra. van Daan está deitada com uma constipação 
e faz cenas; o marido está pálido e não tem cigarros que o 
animem; o Dussel, depois de ter resolvido sacrificar uma 
parte das suas comodidades, anda descontente. 
 Há muita coisa que não funciona. O W.C. está a deitar 
água e a torneira está perra. Mas graças às nossas 
muitas relações, estes males hão-de remediar-se depressa. 
 Há ocasiões em que estou sentimental, sei-o bem, mas... 
por vezes há razões para o sentimentalismo. Quando o 
Peter e eu estamos sentados num caixote duro, no meio 
de ferros-velhos e de pó, muito juntos, eu com um braço 
em volta dos seus ombros, ele com um braço em volta 
dos meus ombros, quando ele brinca com uma madeixa 
do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos 
pássaros, quando se vê as árvores a pintarem de verde 
 quando o sol nos chama e o ar é todo ele azul, oh!, então 
os meus desejos são infinitos. 
 Mas aqui só se vêem caras carrancudas e descontentes. 
Suspiros e queixumes por toda a parte. Tudo isto dá a 
impressão de que as coisas vão cada vez pior. A verdade, 
no entanto, é que tudo corre sempre mal se não soubermos 
reagir. Já não há ninguém cá no anexo que nos sirva de 
exemplo, cada um luta sózinho com os seus nervos. Só se 
ouve dizer: 
 - Quem me dera que isto acabasse! 
 A mim, o trabalho, a esperança, o amor e a coragem 
fazem-me aguentar, mais até: tornam-me boa e feliz. 
 Creio, Kit, que estou um pouco maluquinha hoje. 
 Tua Anne 
Sábado, 15 de Abril de 1944 
Querida Kitty :  A um susto segue-se outro, - Quando é que isto terá 
fim? É esta a nossa eterna pergunta. Imagina o que 
aconteceu agora. O Peter esquece se de abrir o ferrolho 
da porta principal (à noite a porta tranca-se por dentro) 
e a fechadura da outra porta está estragada. Por consequência 
o Kraler não conseguiu entrar com os operários. 
Teve de pedir aos vizinhos para o deixarem entrar, quebrou 
depois a janela da cozinha e saltou para dentro. 
Está furioso por causa do nosso descuido. O Peter anda 
desolado. Quando a minha mãe lhe disse à mesa que 
tinha pena dele, pouco faltou para que desatasse a chorar. 
Mas na verdade temos todos culpa, porque os senhores 
costumam perguntar todas as manhãs se o Peter abriu 
o ferrolho, e precisamente hoje não o fizeram. Oxalá eu 
lhe possa dar logo algum conforto, gostava tanto de o 
ajudar! 
 E agora algumas notícias sobre vários acontecimentos 
no anexo durante as últimas semanas : 
 Há uma semana adoeceu o Boschi. Não se mexia 
a Miep, sempre resoluta, embrulhou-o num pano, meteu-o 
no seu saco das compras e levou-o à clínica veterinária. 
O veterinário enfiou-lhe um remédio pela goela abaixo, 
pois supunha que o bicho tinha uma infecção nos intestinos. 
Depois disso o Boschi passeia lá fora, dia e noite; decerto 
arranjou uma namorada. 
 A janela do sótão já fica outra vez aberta durante a 
noite. Quando escurece, o Peter e eu estamos quase sempre 
lá em cima. 
 Com o auxílio de Koophuis e com um pouco de tinta 
de óleo, o W. C. arranjou-se. A torneira perra foi substituída 
por outra. Este mês recebemos oito cartões de 
 racionamento. O nosso mais recente petisco chama-se "Piccadilly". 
Se a gente tem pouca sorte, só encontra alguns 
pepinos com molho de mostarda no frasco. Legumes já 
não há quase nenhuns. Só salada e sempre salada. De resto 
só comemos batatas com molho artificial. 
 Muitos e tremendos bombardeamentos. 
 A Câmara de Haia ficou destruida e com ela muitos 
documentos. Diz-se que todos os holandeses receberão 
novos cartões de identidade. 
 Basta por hoje. 
 Tua Anne 
Domingo de manhã pouco antes das 11 horas, 16 de Abril de 1944 
Querida Kitty :  Peço-te que nunca te esqueças do dia de ontem, 
por ser um dia muito importante na minha vida. Ou não 
é importante para uma rapariga receber o seu primeiro 
beijo? E eu não sou diferente das outras. O beijo que o 
Bram me deu uma vez na face direita não conta, e o beijo 
na mão de Mr. Walker também não. Agora vais ouvir 
como aconteceu eu receber um beijo. 
 -Ontem, às oito horas, estávamos, o Peter e eu, no 
quarto dele, sentados no sofá. 
 -Se pudesses chegar-te mais um bocado para lá,-disse-lhe, 
- eu não dava com a cabeça contra a estante. 
 Ele recuou quase até ao cantinho. Passei-lhe o braço 
à volta da cinta e ele abraçou-me. Já tínhamos estado 
assim muitas vezes, mas talvez não tão próximos um do 
outro. Apertou-me com força, o meu peito estava contra 
o seu - o meu coração batia cada vez mais depressa. Mas 
não é tudo. Ele não descansou enquanto não deitei a 
cabeça no seu ombro e depois inclinou ele a cabeça sobre 
a minha. Quando, passados cinco minutos, me ia endireitar, 
tomou-me a cabeça entre as mãos e apertou-me, 
de novo, contra ele. Oh! foi maravilhoso, eu não consegui 
falar, só pude viver o momento. Um pouco desajeitado, 
acariciou-me a cara e o braço, brincou com os meus caracóis 
e assim permanecemos com as cabeças muito juntas. 
Não posso descrever-te a minha emoção. Eu estava tão 
feliz! E creio que o Peter também. 
 às oito e meia levantámo-nos e ele calçou as sandálias 
de ginástica para fazer a ronda pela casa com o menos 
ruído possível. Eu estava ao seu lado. Não sei dizer exactamente como aquilo aconteceu, mas ao 
descermos, ele 
beijou-me o cabelo, muito junto da orelha esquerda. Corri 
para baixo sem me virar e... e só queria que já fosse mais 
logo, à noite. 
 Tua Anne 
Segunda-feira, 17 de Abril de 1944. 
Querida Kitty : 
 Que te parece : o pai e a mãe achariam bem se soubessem 
que eu estou sentada com um rapaz no sofá e que nos 
beijamos? Um rapaz de dezassete anos e uma rapariga 
que vai fazer quinze? Não devem achar bem, creio, mas 
afinal aquilo só me diz respeito a mim. Sinto-me calma 
e segura a sonhar nos seus braços, e é tão excitante sentir a cara dele contra a minha, é tão delicioso saber-se que 
alguém nos espera! 
 Mas - há um mas - ele contentar-se-ia só com isto. 
Não me esqueci da sua promessa, mas... sempre é um 
rapaz! 
 Bem sei que estou a começar cedo, ainda não fiz os 
quinze e já sou tão independente! Ninguém, provàvelmente, 
 sabe compreender. Tenho quase a certeza de que 
a Margot era incapaz de beijar um rapaz sem que se falasse 
logo de noivado e de casamento. Mas o Peter e eu não 
fazemos planos. Calculo que a mãe também não se deixou 
tocar por ninguém antes de conhecer o pai. O que 
diriam as minhas amigas se me vissem nos braços do Peter, 
com o meu coração contra o seu peito, a cabeça nos seus 
ombros, e a sua cabeça em cima da minha? 
 Oh! Anne, que vergonha! 
 Mas, com toda a franqueza! Não acho que isto seja 
uma vergonha. Vivemos aqui isolados do Mundo, cheios 
de medo e de angústia, principalmente nos ultimos tempos. 
Porque é que nós, que nos amamos, havemos de nos afastar 
um do outro? Porque é que havemos de esperar até ter 
uma idade conveniente? E porque havemos de fazer tais 
 perguntas? 
 hei-de saber tomar conta de mim. O Peter nunca me 
causará aflições ou dores. Porque não hei-de eu, por isso 
fazer o que o meu coração me dita e o que nos torna 
felizes? Mas... creio que estás a pressentir que lido com 
certas dúvidas, dúvidas estas que provêm da luta entre 
a minha fraqueza e o ter de fazer coisas às escondidas. 
Achas que é meu dever dizer tudo ao pai? Achas que devemos 
 partilhar o nosso segredo com alguém? Receio que 
muita coisa subtil venha a perder-se. E ficaria eu mais 
calma intimamente? Vou falar com "ele" sobre o assunto. 
 Sim, tenho de falar com "ele" sobre muitas coisas, 
porque passar o tempo a fazer apenas carícias, não faz 
sentido. É preciso uma grande confiança para dizermos 
tudo um ao outro, mas a consciência de possuirmos esta 
confiança mútua nos dará força a ambos. 
Tua Anne 
Terça-feira, 18 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Tudo vai bem. O pai disse que espera grandiosas operações 
ainda antes de 20 de Maio, tanto na Rússia e na Itália como no Ocidente. Quanto mais as coisas se estão 
a demorar, tanto menos consigo imaginar a nossa libertação. 
 Finalmente, ontem o Peter e eu falámos sobre aquilo 
que andávamos a adiar há dez dias. Expliquei-lhe todos 
os segredos de uma rapariga e não me acanhei a falar nas 
coisas mais íntimas. A noite rematou-se com um beijo 
muito perto da boca. É uma sensação maravilhosa. 
 Talvez eu leve para cima o meu livro em que aponto 
tudo o que me agrada, e assim podemos aprofundar juntos 
as coisas belas. Não me dá satisfação estarmos só abraçados. 
 Gostava de que ele fosse da minha opinião. 
 Depois de um Inverno irregular veio uma Primavera 
estupenda, um Abril magnífico, nem quente nem frio, 
e só de vez em quando uma chuvada. O nosso castanheiro 
já está verde e vêem-se, aqui e acolá, nascerem-lhe as 
 velinhas. No sábado a Elli deu-nos uma grande alegria. Trouxe 
flores - três ramalhetes de narcisos, e para mim, jacintos 
azuis. 
 Tenho que estudar álgebra, Kitty. Adeus. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 19 de Abril, de 1944 
Querida Kitty: 
 Lieve Schat! 
 O que poderá haver de mais belo no Mundo do que 
olhar a natureza pela janela aberta, do que ouvir cantar 
os pássaros, sentir o sol no rosto e ter nos braços um rapaz 
muito querido? O silêncio faz-nos tão bem! 
 Oh! Se nunca ninguém o interrompesse, nem mesmo 
o Mouchi! 
Tua Anne 
Terça-feira, 25 de Abril de 1944 
Querida Kitty : 
 Há dez dias que o Dussel não fala com o sr. van Daan 
e só porque tivemos de tomar, depois do roubo, algumas 
medidas novas que não lhe agradam. Disse que o sr. van 
Daan lhe deu berros. 
 -Tudo se faz aqui sem me consultarem-disse-me a 
mim-; hei-de falar a este respeito com o teu pai. 
 Ele não devia trabalhar, nem no sábado à tarde nem no domingo, lá em baixo no escritório. Mas não cumpriu, 
foi na mesma. O sr. van Daan ficou zangado e o pai foi 
para baixo para falar com o Dussel. Claro, lá inventou 
qualquer desculpa. Mas desta vez nem o pai se deixou 
convencer. Agora o pai quase não lhe fala por ele o 
ter ofendido. Não sabemos o que se passou, mas deve ter 
sido coisa grave. 
 Escrevi uma história bonita, chama-se Blzrry, o descobridor 
do Mundo. Agradou bastante aos meus três ouvintes. 
 Ainda estou muito constipada e contagiei a Margot, 
o pai e a mãe. Oxalá não aconteça o mesmo ao Peter. 
Queria que eu lhe desse um beijo, chamou-me o seu 
"el dorado". Mas agora não pode ser, meu rapaz! Ele é 
um amor! 
Tua Anne 
Quinta-feira, 27 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Hoje de manhã a sra. van Daan estava de muito mau 
génio. Só se lamentava: por estar constipada, por não 
haver gotas que lhe fizessem aguentar melhor as dores 
no nariz. Depois, por não haver nem sol nem invasão, e 
por se não poder olhar um pouco pela janela, etc., etc. 
Foi-nos impossível manter um ar sério; rimo-nos dela, 
e como, afinal, tudo aquilo não era uma grande tragédia, 
ela acabou pur se rir também. 
 Leio agora O Imperador Carlos Quinto, escrito por um professor de Guingen que trabalhou 
quarenta anos nesta 
obra. Em cinco dias li cinquenta páginas; é difícil ler-se 
mais, de um livro assim, e ele tem quinhentas e noventa e 
oito páginas. Agora podes fazer as contas ao tempo que 
levará a leitura e, depois, falta ainda a segunda parte! 
Mas... é deveras interessante! 
 O que uma rapariga trabalha normalmente na escola 
não se pode comparar à tarefa que eu cumpro. Hoje 
traduzi, do holandês para o inglês, um pedaço da última 
batalha de Nelson. Depois estudei A guerra Nórdica 
(1700-1721), Pedro o Grande, Carlos XII, Augusto o 
Forte, Stanislau Seczinsky, Mazeppa, Brandemburgo, Pomerânia 
e Dinamarca-com todos os dados correspondentes. 
Depois li sobre o Brasil: o tabaco da Baía, a abundância 
de café, o milhão e meio de habitantes do Rio de Janeiro, 
Pernambuco e São Paulo, o rio Amazonas. Fiquei a saber 
coisas dos negros, dos brancos, das mulheres, dos mulatos, dos mestiços; fiquei também a saber que ainda lá vivem 
cinquenta por cento de analfabetos e que há malária. 
Como ainda me sobrava um pouco de tempo, peguei na 
minha árvore genealógica: Jan o velho, Guilherme Luís, Ernst Casimir, Henrique CasimirI, até à 
pequena Margriet 
 Franciska que nasceu em 1929 em Otava. 
 Meio-dia: continuo a estudar, no sótão, o programa 
sobre as catedrais... uff! até à uma hora. 
 às duas horas, a pobre rapariga (hum, hum!) já estava 
de novo a estudar. Macacos com focinho achatado e 
macacos com focinho aguçado. Kitty, és capaz de me dizer 
quantos dedos no pé tem o hipopótamo? Depois seguiu-se 
a bíblia, a arca de Noé, Sem, Cham e Japhet; depois 
Carlos V. Por fim: inglês com o Peter: O Coronel de 
Thackeray, vocábulos franceses, e comparar o Mississipi 
ao Missouri. Chega por hoje. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 28 de Abril de 1944 
Querida Kitty: 
 Nunca me pude esquecer do meu sonho com o Peter 
Wessel. Ainda hoje, ao lembrar-me, parece-me sentir a 
face do Peter contra a minha, essa sensação que tanto me 
maravilhou. Ao estar com o Peter daqui experimentava a 
mesma sensação, sim, mas nunca tão forte até... ontem, 
ao anoitecer, quando estávamos, como de costume, abraçados 
no sofá. De repente a Anne de todos os dias transformou-se 
numa outra Anne, naquela que não é divertida 
nem travessa mas que quer ser terna e afável. 
 Estava muito junto dele e a comoção tomou conta de 
mim. As lágrimas vieram-me aos olhos, cairam-me cara 
abaixo e molharam a bata dele. Terá notado? Nem o 
mais leve movimento o traíu. Sente ele o mesmo que eu? 
Quase não falava. Saberá que convive com duas Annes 
diferentes? Tantas perguntas por responder! 
 às oito e meia ergui-me e fui à janela onde costumamos 
despedir-nos. Ainda eu tremia, ainda era a Anne número 2. 
Ele foi ter comigo, eu deitei-lhe os braços ao pescoço e 
beijei-lhe a face esquerda. Quando lhe quis beijar a outra, 
as nossas bocas encontraram-se. Como numa vertigem, 
estreitámo-nos, um contra o outro, uma vez e outra vez, 
para nunca mais acabar! 
 Peter tem necessidade de ternura. Pela primeira vez 
na vida descobriu uma rapariga e, pela primeira vez, compreendeu que estas "maçadoras", afinal, têm também um 
coração e que são muito diferentes quando se está a sós 
com elas. Pela primeira vez na vida deu amizade e entregou-se 
a outrem. Nunca antes tinha tido um amigo ou 
uma amiga. Agora encontrámo-nos. Eu também não o conhecia a ele, nunca tinha tido um 
confidente, e agora 
tudo isto se realizou. 
 Mas eis uma pergunta que me tortura: 
 -Está isto certo? Procedo bem em ser tão transigente, 
tão apaixonada, tão impulsiva e cheia de desejos, tal como 
o Peter? Está certo que uma rapariga não saiba dominar-se? 
 Só há uma resposta: sentia dentro de mim profunda 
ânsia, sentia-me só, e agora encontrei consolo e alegria. 
 Da parte da manhã Peter e eu somos as pessoas de 
sempre; e mesmo durante o dia. Mas ao anoitecer não 
podemos conter o desejo da felicidade e da alegria de nos 
encontrarmos. Então somos um do outro. Todas as noites, 
depois do último beijo, queria fugir, desaparecer, não ver 
mais aqueles olhos, estar longe, longe, longe, totalmente 
só na escuridão! 
 Mas depois de ter descido os catorze degraus, onde é 
que me encontro? à luz crua da sala, entre vozes e risos; 
perguntam-me isto ou aquilo e tenho de fazer tudo para que 
ninguém note em mim qualquer coisa. O meu coração 
ainda está impressionado de mais para esquecer um acontecimento como o de ontem à noite. A 
meiguice e a brandura 
talvez sejam qualidades raras na Anne mas, mesmo assim, 
não se deixam afugentar de um instante para o outro. 
O Peter atingiu-me como nunca nada me tinha atingido, 
a não ser o meu sonho. O Peter revolveu o meu íntimo, 
chamou-o à superfície. E não é natural que qualquer 
pessoa no meu caso necessite reencontrar o sossego para 
tranquilizar de novo o seu íntimo? Oh, Peter!, o que 
fizeste de mim? O que queres de mim? Aonde vamos nós 
parar? Oh! Agora é que compreendo a Elli. Agora que 
vivo estas coisas, compreendo as dúvidas dela. Se ele fosse 
mais velho e quisesse casar comigo, que lhe responderia? 
Sê franca, Anne! Não eras capaz de casar com ele, mas 
deixá-lo também te custa! O carácter do Peter ainda não 
alcançou a harmonia intrior. O Peter tem pouca energia, 
pouca força de vontade e pouca força moral. Ainda é uma 
criança, intimamente não tem mais idade do que eu; o 
que ele procura, antes de mais nada, é a calma e a felicidade. 
 E eu? Tenho, de facto, só catorze anos? Não passo 
de uma rapariguita estúpida? Não tenho ainda experiência 
nenhuma? Tenho experiência, sim senhora, tenho mais 
experiência do que os outros; vivi coisas que muito poucos da minha idade viveram. Tenho medo de mim própria, 
tenho medo de que o meu desejo me arrebate, e então o 
que há-de ser de mim mais tarde, quando conviver com 
outros rapazes? Oh, como tudo isto é difícil! O coraÇão 
e o juízo, e sempre a luta entre os dois. Cada um deles 
fala no momento próprio, mas sei eu de certeza quais são 
os momentos próprios? 
Tua Anne 
Terça-feira, 2 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 No sábado, à noite, perguntei ao Peter se achava que 
devia dizer ao pai o que se passa entre nós, e depois de 
ponderar um bocado ele achou que sim. Estou contente 
por isso, pois prova-me a pureza dos seus sentimentos. 
Logo depois de eu ter descido, fui buscar água com o pai, 
e já na escada disse-lhe: 
 - Pai, com certeza compreendes que o Peter e eu, 
quando estamos juntos, não ficamos sentados a um metro 
de distância um do outro. Achas mal?-O pai não me 
respondeu imediatamente. Depois disse: 
 - Não, não acho mal, Anne, mas aqui, onde o espaço 
é tão restrito, deves ter mais cuidado... 
 Ainda chegou a dizer mais algumas coisas no mesmo 
sentido e depois subimos. No domingo de manhã chamou-me 
para me dizer : 
 - Anne, pensei naquilo que me disseste (comecei a ter 
medo). Vistas bem as coisas, não está certo aqui no anexo! 
Julgava que vocês eram bons camaradas. O Peter está 
apaixonado por ti? 
 - Não, não é isso-disse eu. 
 - Sabes Anne, eu compreendo-vos muito bem, mas 
acho que deves manter um pouco de distância, não deves 
encorajá-lo demasiadamente. Não devias ir tantas vezes 
lá para cima. Nestas coisas o homem é a parte activa e a 
mulher pode detê-lo. Lá fora, na liberdade, todas estas 
coisas são diferentes. Convives com outros rapazes e raparigas, podes dar passeios, praticar 
desportos e outras 
coisas no género. Mas se vocês aqui estão sempre juntos e se 
um dia isso não te agradar por mais tempo, tudo se tornará 
complicado. Vocês vêem-se a cada passo, praticamente a todos os momentos : sê prudente, 
Anne, e não te prendas tanto. 
 - Não me prendo demasiado, pai, e o Peter é correcto, 
é muito bom rapaz.  -Sim, é bom rapaz, mas não tem um carácter firme; 
tão fàcilmente se deixa influenciar para o bom como para 
o mau. Oxalá se mantenha correcto, porque no fundo 
é boa pessoa. 
 Ainda conversámos um pouco e depois combinámos 
que o pai fosse falar com ele também. No domingo à tarde, 
quando eu estava lá em cima, o Peter perguntou : 
 - Então falaste ao teu pai, Anne? 
 - Falei - disse eu - e vou-te contar tudo. Ele não acha 
mal nenhum em estarmos tão juntos um do outro, mas 
pensa que isto pode dar lugar a mal-entendidos. 
 - Já combinámos que nunca havemos de discutir e 
estou resolvido a cumprir. 
 - Também eu, Peter, mas o pai tinha imaginado que 
éramos apenas bons camaradas. Achas que já não podemos 
ser bons camaradas? 
 - Porque não? Que te parece? 
 - Parece-me que podemos. Eu disse ao pai que tenho 
confiança em ti. E é a verdade, Peter. Tenho tanta confiança 
em ti como no pai, e penso que o mereces, não é 
verdade? 
 - Espero que sim. 
 Corou e ficou atrapalhado. 
 - Creio em ti, Peter, creio que tens um bom carácter 
e que farás o teu caminho na vida. 
 Falámos ainda de várias coisas e eu depois disse : 
 - Quando sairmos daqui, já sei que não vais fazer 
caso de mim. 
 Ele disse com ardor: 
 - Não digas tal coisa, Anne! Oh! não, tu não tens 
direito de me julgar assim. 
 Depois chamaram-me. 
 Na segunda-feira contou-me que o pai falou com ele. 
 - O teu pai pensa que a nossa camaradagem podia 
acabar em namoro, e eu disse que podia ter confiança 
em nós. 
 O pai quer que eu não vá tantas vezes lá para cima, mas não estou de acordo. Não só porque 
gosto de estar com 
o Peter mas também por lhe ter dito que tenho confiança 
nele. E já que tenho esta confiança quero provar-lha. 
E eu não lha poderia provar se manifestasse desconfiança, 
ficando cá em baixo. 
 Não, hei-de ir! 
 Entretanto, o "drama Dussel" acabou. No sábado, ao 
jantar, pediu desculpa num discurso bem estudado, em 
holandês. O sr. van Daan ficou logo derretido. Julgo que 
o Dussel levou o dia inteiro a ensaiar "a lição". O seu aniversário, no domingo, correu com calma. Nós, os 
Franks, demos-lhe uma garrafa de vinho de rgIg, os van 
Daans (que já estavam agora de bem com ele e lhe podiam 
oferecer uma prenda) deram-lhe um copo de "Piccadilly" 
e um maço de lâminas, o Kraler veio com um frasco de 
compota de limão, a Miep com um livro e a Elli com uma 
planta. E ele regalou-nos a todos com um ovo para cada. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 3 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Primeiro, as novidades da semana. A política está em 
férias, não aconteceu nada, mas mesmo absolutamente 
nada. Pouco a pouco começo a acreditar que a invasão 
está para breve. Impossível deixarem os russos a esfalfarem-se 
sózinhos. Aliás, da Rússia, também não há novidades. 
 O sr. Koophuis vem, de novo, todos os dias ao escritório. 
Arranjou uma mola nova para o sofá do Peter e 
agora não tem outro remédio senão fazer de estofador, 
apesar da falta de jeito. Também arranjou um pó contra 
as pulgas dos gatos. Já te contei que o Boschi se foi embora. 
Desde quinta-feira desapareceu sem deixar vestígios. 
Decerto lá estará no céu dos gatos, pois provàvelmente 
algum "amigo dos animais" deliciou-se com ele para o 
almoço. Pode ser que o seu pêlo ainda dê uma touquinha 
de criança. O Peter ficou muito triste. 
 Desde sábado que lanchamos às onze e meia. Ao 
pequeno almoço comemos uma papa com que temos de 
aguentar-nos. Assim poupamos uma refeição. Ainda é 
difícil conseguir-se hortaliça. Hoje tivemos salada cozida 
que já estava bastante estragada. Sempre salada, ou crua 
ou cozida, e espinafres e, a acompanhar, batatas de má 
qualidade. Uma combinação deliciosa! 
 Há mais de dois meses que eu não tinha tido o meu 
"incómodo". Finalmente, no sábado apareceu. Apesar de 
todas as contrariedades e mal-estar, sinto-me contente. 
 Tu talvez não possas compreender que aqui surja 
tantas vezes a pergunta desesperada: porquê e para quê 
é esta guerra? Porque é que os homens não podem viver 
em paz? Para quê tantas destruições? 
Estas perguntas são legítimas, mas até agora ninguém 
 soube encontrar-lhes uma resposta satisfatória. Porque é 
 que na Inglaterra se constroem aviões cada vez maiores, 
 bombas cada vez mais pesadas e, ao mesmo tempo, se  reconstroem filas de casas? Porque é que se gastam todos 
 os dias milhões para a guerra, se não há dinheiro para a 
 medicina, os artistas e os pobres? Porque é que há homens 
 a passar fome se, em outros continentes, apodrecem 
 víveres? Porque é que os homens são tão insensatos? 
 Não acredito que a culpa da guerra caiba exclusivamente aos que governam e aos capitalistas. 
Não, o homem 
 da rua também tem a sua culpa, pois não se revolta. 
 O homem nasce com o instinto da destruição, do massacre, 
 da fúria, e enquanto toda a Humanidade não sofrer uma 
 metamorfose total, haverá sempre guerras. O que se construiu e cultivou e o que cresceu será 
destruído, e à Humanidade só resta recomeçar. 
 Tenho estado muitas vezes abatida mas nunca me 
 senti aniquilada. Considero a nossa vida de "mergulhados" 
 uma aventura perigosa que é, ao mesmo tempo, romântica e interessante. Sempre me propus 
viver uma vida diferente 
 da das raparigas em geral, do mesmo modo como também 
 não me agrada para o futuro a vida banal das donas de 
 casa. Isto aqui é um bom princípio com muitas coisas 
 cheias de interesse e, mesmo nos momentos mais perigosos, 
 vejo o cómico da situação e não posso deixar de me rir. 
 Sou jovem e com certeza ainda há em mim boas qualidades por despertar; sou jovem e forte e 
vivo conscientemente esta grande aventura. Porque hei-de lamentar-me todo o dia? 
 Muito me deu a natureza: alegria e força. Cada vez 
 mais sinto como o meu espírito se desenvolve, sinto a libertação que se está aproximando, sinto 
como é bela a natureza e como é boa a gente que me rodeia. Porque hei-de estar desesperada? 
Tua Anne 
Sexta-feira, 5 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 O pai não está contente comigo. Julgava que eu, 
depois da nossa conversa no domingo, tinha resolvido não 
subir todas as noites lá para cima. Não concorda com a 
nossa "beijoquice". 
 Detesto esta palavra. Bem basta a gente ter de falar 
no assunto, não vejo necessidade de o escarnecer. 
 Ainda hoje hei-de voltar a falar com o pai. A Margot 
deu-me alguns bons conselhos. Eis o que quero, mais ou 
menos, dizer-lhe: 
 "Parece-me, pai, que exiges de mim uma explicação 
e vou dar-ta. É possível que estejas desapontado comigo 
e me julgasses menos impulsiva. Com certeza gostavas que 
eu fosse como as outras raparigas aos catorze anos ou, 
melhor, como elas deviam ser. Mas enganas-te! Desde que viemos para aqui, em Julho de 1942, até há poucas semanas, 
a minha vida não tem sido fácil. Se tu soubesses quantas 
vezes chorei de noite, como era infeliz, como me sentia 
só, então compreenderias melhor porque é que quero 
estar lá em cima. Não foi de um dia para o outro que 
consegui chegar a viver sem o apoio da mãe ou seja de quem 
for. Tem-me custado lutas duras e muitas lágrimas o ter-me 
tornado tão independente como agora sou. Podes rir-te, 
talvez não acredites, mas as coisas são como são. Tenho 
a consciência de ser alguém que sabe responder por si 
própria e que não se sente responsável para convosco. 
Digo-te isto para que não penses que tenho segredos, 
porque, de resto, só me considero responsável perante mim 
mesma! Quando me debatia com tantas dificuldades, 
vocês - e também tu - fecharam os olhos e os ouvidos. 
Não me ajudaste, pelo contrário, só me advertias para eu não fazer tanto alarido. Eu era 
barulhenta porque não 
queria ser infeliz, eu era travessa porque queria abafar 
a voz que há dentro de mim. Representei uma comédia, 
durante ano e meio, dia após dia, sem me queixar, sem 
perder a linha; lutei até agora e venci. Sou independente 
de corpo e de espírito, não preciso da mãe, saí fortalecida 
de todas as lutas. 
 "E agora que alcancei o meu fim, agora que me impus, 
hei-de seguir sózinha o meu caminho, o caminho que me 
parece ser o melhor. Não podes, nem deves, considerar-me 
uma rapariga de catorze anos. A nossa tragédia tem-me 
envelhecido, e hei-de agir conforme me parece bem. Tu, 
que és a bondade em pessoa, não me podes impedir de ir 
lá para cima. Ou tu me proíbes tudo ou tens de ter confiança 
em mim em todas as circunstâncias. Só te peço: 
deixa-me em paz!" 
 Tua Anne 
Sábado, 6 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Ontem, antes de jantar, meti uma carta no bolso do 
pai. Escrevi-lhe o que ontem te expliquei. Depois de a 
ter lido, ficou, durante todo o serão, desconcertado. Foi a 
Margot quem mo disse, pois eu estava a ajudar lá em cima 
a lavar a louça. Pobre Pim, eu devia ter sabido o resultado 
de uma carta assim. Ele é tão sensível! Avisei logo o Peter 
para não lhe perguntar mais nada. O Pim não voltou a 
falar comigo sobre o caso. Ainda virá a fazê-lo?  As coisas aqui vão andando. As novidades que nos vão 
dando sobre as pessoas lá de fora e sobre os preços são 
quase inacreditáveis: duzentos e cinquenta gramas de chá 
custam trezentos e cinquenta florins; meio quilo de café 
oitenta florins; meio quilo de manteiga trinta e cinco; um 
ovo quarenta e cinco. Por cem gramas de tabaco búlgaro 
dão-se catorze florins. Todos fazem negócios "negros". 
Todos os garotos têm qualquer coisa que vender. O moço 
de recados da nossa padaria arranja-nos linha para pontear, 
muito pouca e muito fininha, por noventa cêntimos; é o 
leiteiro quem arranja os falsos cartões de víveres; um 
cangalheiro negoceia em queijo. Todos os dias se registam 
assaltos, assassínios e roubos em que, além dos criminosos 
profissionais, estão muitas vezes envolvidos polícias e 
 guardas. Todos querem arranjar alguma coisa para acalmar 
o estômago, e como o aumento dos salários é proibido, as 
pessoas recorrem à intrujice. 
 A polícia de menores não tem mãos a medir. Não se 
passa um dia sem que desapareçam raparigas de quinze, 
dezasseis, dezassete anos ou mais. 
Tua Anne 
Domingo, de manhã, 7 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Ontem à tarde, tive uma longa conversa com o pai. 
Chorei terrivelmente e o pai chorou comigo. Sabes o que 
me disse? 
 -Já recebi muitas cartas na minha vida, mas esta foi 
a mais feia! Tu, Anne, tu a quem os pais dedicaram tanto 
amor, sempre prontos a defender-te fosse do que fosse, tu 
pretendes não ter obrigações para connosco? Tu julgas-te 
posta de parte e abandonada? Foste muito injusta para 
connosco, Anne. Talvez não quisesses dizer bem isso, mas 
escreveste-o. Não, Anne, nós não merecemos uma tal 
acusação. 
 Oh, sim, fui injusta-nunca cometi acção tão horrível 
em toda a minha vida! Só pretendi fazer figura com todo 
aquele palavriado e, com todas as minhas lágrimas, só 
pretendi chamar a atenção do pai sobre mim. É certo que 
sofri. Mas culpar o Pim, que é bom, que tudo tem feito 
por mim e continua a fazer, foi ignóbil da minha parte. 
 Ainda bem que ele me tirou da minha torre de marfim, 
que o meu orgulho ficou derrotado, pois eu já estava, de 
novo, a ser muito presunçosa. Porque nem tudo o que faz a menina Anne é bem feito, nem de longe! Causar uma tal 
dor a uma pessoa a quem se diz amar, e ainda por cima 
intencionalmente, é um acto baixo, muito baixo! E o 
que mais me envergonha é a maneira como o pai me 
perdoou. Disse que vai queimar a carta e é tão meigo 
comigo como se tivesse sido ele que se portou mal. Oh, Anne, 
tens que aprender ainda tanta coisa! Será melhor começares 
já a aprender, em vez de olhares de alto para os outros, 
ou de os culpar! 
 Vivi momentos difíceis. Mas não os vive toda a gente da minha idade? Representei muitas vezes 
uma comédia mas nem sequer tive consciência disso. Sentia-me só, é verdade, mas nunca 
verdadeiramente desesperada. Devo ter vergonha e tenho muita vergonha! 
 O que está feito, está feito, mas é sempre tempo de 
evitar que o mesmo aconteça outra vez. Hei-de tornar a 
começar pelo princípio e isto não deve ser difícil porque 
tenho o Peter. Se ele me ajudar serei capaz! Já não estou 
só, ele ama-me e eu a ele; tenho os meus livros, as histórias 
que escrevi, o meu diário; não sou feia de todo, não sou 
estúpida; tenho um feitio alegre e gostava muito de possuir 
um bom carácter! 
 Sim, Anne, tu bem sabias que a tua carta era dura 
de mais e que não correspondia à verdade, mas, apesar 
disso, sentiste-te orgulhosa dela. De ora em diante o pai 
há-de ser para mim outra vez o exemplo a seguir e, assim, 
hei-de corrigir-me por força. 
Tua Anne 
Segunda-feira, 8 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Pensando bem, nunca te contei nada da nossa família, 
pois não? Mas vou fazê-lo agora mesmo. 
 Os pais do meu pai eram muito ricos. O avô venceu 
pelo seu esforço e a avó descendia de uma família rica 
e distinta. Assim, meu pai gozou uma juventude de "filho 
de pais ricos": saraus elegantes, todas as semanas, festas, 
bailes, raparigas bonitas, jantares, uma casa grande... 
Mas o dinheiro perdeu-se todo depois da outra guerra 
mundial, durante a inflação. O pai teve, portanto, uma 
boa educação e, por isso, riu-se muito ontem à mesa, porque, 
pela primeira vez numa vida de 55 anos, rapou uma 
travessa. 
 Também a mãe é filha de gente rica e, escutamos de 
boca aberta, quando ela nos conta de festas de casamento 
com duzentos e cinquenta convidados, de grandes bailes e grandes jantares. A nós já ninguém nos pode chamar 
ricos, mas tenho boas esperanças de que as coisas se modifiquem depois da guerra. Para ser 
franca, não me interessa 
lá muito uma vida tão simples como a que a mãe e a Margot 
 ambicionam. Eu, por mim, gostava de passar um 
ano em Paris e outro em Londres para poder estudar 
as diferentes línguas e também história de arte. Agora 
compara tu os meus desejos com os da Margot, que quer 
ser enfermeira-parteira na Palestina. Gosto de imaginar 
vestidos bonitos e gente interessante, quero ver e viver 
muitas coisas-já te falei disso-, e um pouco de dinheiro 
far-me-á jeito. 
 Hoje de manhã a Miep contou-nos de uma festa de 
pedido de casamento em que ela tomou parte. A noiva 
e o noivo são de famílias ricas e tudo estava um primor. 
A Miep causou-nos inveja quando falou da boa comida 
que serviram: sopa de legumes com bolinhas de carne 
pãezinhos de queijo, "hors díveloeuvre" com ovos, "roast 
beaf", bolos, vinho e cigarros e tudo em abundância, claro 
 arranjado no mercado negro. Só a Miep bebeu dez "brandies" - nada mau para uma 
antialcoólica. Se a Miep chegou 
a isso então gostava de saber quantos engoliu o marido. 
Claro que toda a gente ficou um pouco "animada". Entre 
os convidados havia dois polícias militares que tiraram 
fotografias. Parece que a Miep nunca se esquece dos seus 
"mergulhados". Tomou nota dos nomes e das direcções 
destes homens para o caso de acontecer alguma coisa e 
ela ter de recorrer aos "bons holandeses". Fez-nos crescer 
a água na boca ao contar-nos daquelas comidas deliciosas, 
a nós que só comemos algumas colheres de papa ao pequeno 
almoço e depois não sabemos durante horas o que havemos 
de fazer à nossa fome, que comemos todos os dias espinafres 
mal cozidos (por causa das vitaminas) e batatas 
meio estragadas, que enchemos o estômago com salada, 
crua ou cozida, com espinafres e outra vez espinafres. 
Talvez ainda fiquemos tão fortes como o Popeye, embora 
isso nos pareça quase impossível. 
 Se a Miep nos tivesse levado àquela festa, não teríamos 
 deixado ficar nada para os outros convidados. Podes 
crer que comíamos as palavras da Miep quando nos agrupámos 
à volta dela e aquilo dava a impressão de que nunca 
tínhamos ouvido falar de boa comida e de gente elegante. 
Sendo nós netos de milionários. Não há dúvida de que 
acontecem coisas estranhas neste Mundo! 
Tua Anne REGULAMENTOS PARA OS SERVIÇOS DO SENHOR DOUTOR 
De manhã : Sete e quinze às sete e trinta 
Ao almoço: à uma hora. 
Depois : o tempo que quiser. 
Terça-feira, 9 de Maio de 1944 
Querida Kitty : 
 Acabei a história Ellen, a fada. Passei-a a limpo 
para um papel bonito, enfeitei-a a tinta vermelha, encadernei-a, e agora parece mesmo uma coisa 
bonita. Mas não 
achas pouco para o aniversário do pai? Não sei bem. 
A mãe e a Margot fizeram-lhe poemas. 
 Hoje, à hora do almoço, o sr. Kraler trouxe-nos a 
notícia de que a sra. B., que, em tempos, foi propagandista 
da firma, quer vir passar, a partir da semana que vem, 
a sua hora de almoço no escritório. Imagina: se ela fizer 
isso, ninguém poderá subir, as batatas têm de ser entregues 
 a uma outra hora, a Elli não poderá comer aqui,, 
nós não poderemos utilizar o W.C., nem mexer-nos, 
etc, etc. 
 Estivemos todos a inventar pretextos para a fazer 
desistir. O sr. van Daan disse que talvez bastasse deitar-lhe 
um purgante no café. 
 - Não, - disse o sr. Koophuis, - isso não, por favor. Então 
ela nunca mais sairá do "trono". 
 Todos se riram muito. 
 - Do "trono"? perguntou a sra. van Daan.-O que 
quer dizer? 
 Explicámos-lhe. 
 - É assim que se diz? - perguntou ela cheia de candura. 
 - Agora, imagina tu - segredou-me a Elli a rir-que 
ela vai aos armazéns Bijenkorf perguntar onde fica o trono! 
 O Dussel está todos os dias, pontualmente, ao meio dia 
e meia hora no "trono" - para usar a linda expressão. 
 Enchi-me de coragem e escrevi hoje num pedaço de 
papel. 
 Colei o papel na porta do W. C. enquanto ele estava 
lá dentro. Ainda devia ter acrescentado: 
 "Em caso de infracção, haverá bloqueio", pois a porta 
do W. C. tanto pode fechar-se por dentro como por fora. 
 Ai Kitty, o tempo está tão bonito. Quem me dera poder sair! 
 Tua Anne Quarta-feira, 10 de Maio de 1944 
Querida Kitty : 
 Ontem, quando estávamos no sótão a estudar francês, 
pareceu-me, de repente, ouvir correr água. Perguntei ao 
Peter o que seria aquilo, mas ele, em vez de responder, 
correu imediatamente à mansarda, pois já estava a adivinhar 
a causa do desastre. Pegou no Mouchi e levou-o 
sem piedade ao lugar próprio. O Mouchi fugiu para baixo. 
Por uma questão de comodidade, o Mouchi tinha escolhido 
um lugar no meio do serrim, mas o chichi passou 
pelas tábuas e pingou, quase todo, na pipa das batatas. 
 As batatas e o serrim, que o pai foi buscar ontem, 
cheiravam terrivelmente mal. Pobre Mouchi. Não sabias 
que te tivemos de privar da tua turfa no caixote, por 
já não haver nenhuma à venda. 
Tua Anne 
Quinta-feira, 11 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Uma história que te vai fazer rir. 
 O Peter precisava de cortar o cabelo. A sua mãe, 
como de costume, quis fazer de cabeleireira. O Peter 
 desapareceu no seu quarto e às sete e meia em ponto voltou 
de calção de banho e de sapatos de ginástica. 
 - Vens comigo? - perguntou a mãe. 
 - Vou, mas estou à procura da tesoura. 
 O Peter ajudou-a a procurar, mas remexeu de mais 
na caixa de "toilette" da sra. van Daan. 
 - Não me ponhas tudo em desordem - censurou ela. 
 Não percebi o que é que ele respondeu, mas deve ter 
sido coisa malcriada, porque a senhora deu-lhe uma 
palmada no rabo; ele pagou-lhe na mesma moeda e, quando 
ela se preparava para lhe chegar outra, ele fugiu. às 
 gargalhadas. 
 - Anda comigo, minha velhinha! - gritou. 
 Ela ficou onde estava. Então o Peter agarrou-lhe nos 
punhos e arrastou-a pelo quarto fora. Ela chorava, ria, 
ralhava e tentou defender-se. Mas não lhe serviu de nada. 
O Peter arrastou-a até junto da escada, onde a soltou. 
A sra. van Daan voltou ao quarto e, suspirando alto, 
deixou-se cair numa cadeira.  - O rapto da mãe - disse eu rindo. 
 - Mas ele magoou-me! 
 Fui ver-lhe os pulsos que estavam vermelhos e quentes e 
refresquei-lhos com água: O Peter, à espera dela na escada, 
impacientou-se. Com uma correia na mão, como um 
domador de feras, apareceu à porta. Mas a sra. van 
Daan não ia. Ficou sentada à escrivaninha. e pôs-se a procurar 
o lenço. Depois disse: 
- Primeiro, tens de pedir desculpa. 
 - Está bem - disse ele - peço desculpa porque se está 
a fazer tarde. 
 Contra sua vontade ela riu-se, levantou-se e foi até à 
porta. Mas ainda achou necessário dar-nos uma explicação, 
ao meu pai, à minha irmã e a mim, que estávamos 
a lavar a louça. 
 - Ele não era assim em casa. Se se tivesse atrevido, eu 
dava-lhe uma bofetada que o teria deitado pela escada 
abaixo(!). Nunca costumava ser tão malcriado, apanhava 
muitas surras. Agora está a sofrer as consequências da 
educação moderna. Ai!, filhos modernos! Eu teria lá tido 
coragem de puxar assim pela minha mãe! O sr. Frank 
fazia coisas destas à sua mãe? 
 Estava excitada, corria de um lado para o outro; fez 
ainda algumas perguntas e só depois de se ter demorado 
bastante tempo é que foi com o filho para cima. Mas passados 
cinco minutos voltou a correr, toda zangada, tirou o 
avental e deitou-o ao chão. Perguntei-lhe se já tinha concluido o serviço. Respondeu-me que 
precisava de ir depressa 
lá para baixo. Como um turbilhão desceu a escada, suponho 
que para se deixar cair nos braços do seu Putti. Só às oito 
voltou com ele. Foram buscar o Peter, que teve de ouvir 
um grande sermão. Choviam palavras como "garoto malcriado", 
"grosseirão", "mau exemplo", "olha a Anne...", 
"a Margot é que...". Não consegui perceber mais nada. 
 Amanhã já não pensam mais nisso. 
Tua Anne 
 P. S. Terça e quarta à noite falou a nossa querida 
rainha. Vai passar umas férias fora, para voltar com novas 
forças. Oxalá volte depressa. Disse entre outras coisas: 
"Em breve, depois de eu ter regressado... a libertação não 
demora... heroísmo e tarefas pesadas". 
 Seguia-se um discurso do ministro Gerbrandy. Depois 
remataram a emissão com a reza de um sacerdote que 
pediu a Deus para proteger os judeus e todos os presos 
nos campos de concentração, nas prisões e na Alemanha. Tua Anne 
Sexta-feira, 12 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Talvez te pareça fantástico mas estou tão ocupada 
 neste momento que o tempo não me chega para levar a 
 cabo os meus trabalhos. Queres saber o que ainda tenho 
 a fazer? Aí vai: até àmanhã preciso de acabar a leitura 
 da primeira parte da biografia de Galileu, pois o livro 
 tem de ser entregue na biblioteca. Comecei ontem, mas 
 hei-de lê-lo todo. Na próxima semana quero ler: "Palestina, uma encruzilhada" e o segundo 
volume do "Galileu". 
 Ontem acabei a primeira parte da biografia do Carlos V 
 e agora torna-se urgente pôr ordem nos meus apontamentos 
 e nas datas genealógicas. Tirei, de vários livros, três 
páginas cheias de palavras estrangeiras que quero decorar. A 
minha colecção de "estrelas" de cinema está numa desordem 
aflitiva e tem de ser arranjada. Mas só isto me levaria 
alguns dias e como o "Professor Anne, conforme já foi 
dito, está a sufocar com trabalho, o caos daquela colecção 
tem de ser fatalmente abandonado à sua sorte por mais 
algum tempo. 
 Teseu, Édipo, Peleu, Orfeu, Jasão e Hércules estão 
à minha espera. Os seus feitos históricos confundem-se 
ainda na minha cabeça como uma trama de fios embrulhados 
 e multicolores. Também Byron e Fídias precisam 
de ser estudados para eu não perder a ligação. O mesmo 
acontece com as guerras dos sete e dos nove anos; ando 
a misturar tudo. Mas que queres que faça quando se 
tem uma memória tão fraca como a minha? E agora 
podes imaginar como serei aos oitenta anos! É verdade : 
ia-me esquecendo da bíblia. Espero que não demorarei 
muito a chegar à história da Susana no banho. E que 
querem dizer com os crimes de Sodoma e Gomorra? Ai! tanta coisa por perguntar, tanta coisa 
por aprender! A Lieselotte 
von der Pfalz até a abandonei por completo. 
 Vês, Kitty, que estou a transbordar? 
 E agora outra coisa: Já sabes há muito que o meu 
maior desejo é vir a ser jornalista e, mais tarde, escritora 
famosa. Serei capaz de realizar esta minha ambição? Ou 
será tudo isto uma mania de grandeza ou até uma loucura? 
Só o futuro o dirá. Mas assuntos não me faltam. Hei-de 
publicar um livro depois da guerra: O anexo. Se serei 
ou não bem sucedida, não se pode prever, mas o meu diário servir-me-á de base. Além da história do anexo, 
tenho outras ideias. Hei-de falar nelas mais longamente 
quando tiverem tomado forma. 
Tua Anne 
Sábado, 13 de Maio de 1944 
Querida Kitty : 
 Ontem, o aniversário do pai coincidiu com os seus 
dezanove anos de casado. A mulher-a-dias não apareceu 
lá em baixo no escritório, e o Sol brilhava como ainda 
não tinha brilhado neste ano. O castanheiro está coberto 
de flores e acho-o ainda mais belo do que no ano passado. 
 O Koophuis deu ao pai a biografia de Lineu, o Kraler 
um livro sobre História Natural, e o Dussel Amsterdam 
e Water; os van Daan deram um cesto tão estupendamente 
enfeitado que nem um artista o faria melhor, contendo 
três ovos, uma garrafa de cerveja, um frasco de 
yoghurt e uma gravata verde. O nosso frasco de compota 
quase desaparecia ao lado daquilo. As rosas que lhe ofereci 
cheiravam muito bem mas os cravos da Miep e da Elli 
não têm cheiro nenhum, embora sejam lindíssimos. O pai 
não se pode queixar. Vieram cinquenta pastéis, que coisa 
maravilhosa! O pai, por sua vez, ofereceu doce e uma 
garrafa aos senhores e "yoghurt" às senhoras. Foi uma festa 
em cheio! 
 Tua Anne 
Terça-feira, 16 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Já que há tanto tempo não tenho falado neste assunto, 
vou reproduzir-te hoje uma discussão que tiveram ontem 
o sr. e a sra. van Daan. 
 A sra. van Daan: Os alemães devem ter reforçado o 
Muro do Atlântico. Com certeza farão tudo o que puderem 
 para impedir que os ingleses desembarquem. É espantoso 
que os alemães tenham tanta força. 
 O sr. van Daan: É verdade, é horrível. 
 Ela: Sim... sim! 
 Ele: Ao fim e ao cabo os alemães ainda ganham a 
guerra. São tão fortes! 
 Ela: Provàvelmente. Ainda não me convenci do contrário.  Ele: É melhor eu não dizer mais nada. 
 Ela: Mas tu respondes-me sempre. Não consegues ficar 
calado. 
 Ele: Afinal as minhas respostas não dizem nada. 
 Ela: Mas mesmo assim queres responder e queres ter 
sempre razão. As tuas profecias estão longe de bater certo. 
 Ele: Até agora nunca me enganei. 
 Ela: É mentira. Previste a invasão para o ano passado, 
nos teus cálculos a Finlândia já devia ter concluido a paz, 
a Itália teria ficado liquidada no Inverno e os russos já 
teriam tomado Lwow. Oh! Não, eu cá não dou nada 
pelas tuas profecias. 
 Ele (levanta-se): Cala a boca! hás-de ver que tenho 
tido sempre razão, ao passo que tu fartas-te de dizer tanta 
asneira que já não posso mais com isto. O que eu devia 
fazer era esfregar-te o nariz na tua própria estupidez. 
Cai o pano 
 P. S. Apeteceu-me rir e à mãe também. O Peter quase 
não conseguiu conter uma gargalhada. Oh! estes estúpidos 
adultos. Deviam mas é começar a aprender as coisas 
em vez de andar a criticar constantemente as crianças! 
Tua Anne 
Sexta-feira, 19 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Ontem senti-me horrivelmente mal, tive dores de barriga 
 e todos os males imagináveis. Hoje já estou melhor. 
Tenho fome, mas não posso comer os feijões escuros. Com 
o Peter tudo vai bem; o pobre do rapaz ainda sente mais 
necessidade de ternura do que eu. Continua a corar todas 
as vezes que nos despedimos com um beijo de boas-noites 
e depois pede-me mais outro. Serei para ele uma substituta 
melhorada do Boschi? Mas não faz mal. Ele sente-se 
tão feliz por ter a certeza de que alguém o ama! 
 Depois desta conquista difícil, domino um tanto a situação, 
mas não penses que por isso o meu amor enfraqueceu. 
Não enfraqueceu; o meu íntimo é que voltou a fechar-se. 
Se ele quiser arrombar a fechadura outra vez, precisará 
de uma alavanca muito forte! 
 Tua Anne 
Sábado, 20 de Maio de 1944  Querida Kitty: 
 Quando, ontem, de noite, vinha a descer do quarto 
do Peter, vi a linda jarra com os cravos no chão, a mãe 
de joelhos a limpar a água e a Margot a pescar os meus 
papéis. 
 - Que aconteceu? - perguntei apreensiva, procurando 
abranger com os olhos todos os estragos. Tudo a nadar: 
as minhas pastas das árvores genealógicas, os cadernos, os 
livros. Estava quase a chorar e tão impressionada fiquei 
que nem consigo lembrar-me do que lhes disse. A Margot 
contou-me depois que proferi palavras como "danos incalculáveis, horrível, medonho, 
irreparável!" O pai deu uma 
gargalhada, a mãe e a Margot também, mas a mim só 
 me apetecia chorar por causa do tempo perdido que tinha 
dedicado àqueles apontamentos tão cuidadosamente 
 elaborados. 
 Mas, vistas bem as coisas, os danos "incalculáveis" não 
eram assim tão grandes e, sentada no chão, separei com 
cautela os papelinhos colados uns aos outros e, depois, 
pendurei-os na corda da roupa. Aquilo era um espectáculo 
patusco e deu-me vontade de rir: Maria de Médicis 
ao lado de Carlos V, e Guilherme de Orange ao lado de 
Maria Antonieta. 
 - Isto é uma profanação-gracejou o sr. van Daan. 
 Pedi ao Peter que tomasse conta da minha papelada, 
e desci. 
 - Que livros é que ficaram estragados? - perguntei à 
Margot, que estava a examinar o meu tesouro de livros. 
 - O de álgebra-respondeu ela. 
 Mas infelizmente o livro de álgebra não estava totalmente 
estragado. Quem me dera que ele tivesse caído mesmo dentro da jarra. Nunca tive tanta antipatia 
por um livro. Logo ao abri-lo, lêem-se os nomes de umas vinte raparigas que já estudaram por 
ele; é um livro velho, amarelecido, cheio de rabiscos e de correcções. Quando tiver um dos meus 
dias de atrevida e travessa, hei-de rasgar 
este estafermo em mil pedaços. 
Tua Anne 
Segunda-feira, 22 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 O pai perdeu, em 20 de Maio, numa aposta com a 
 sra. van Daan cinco frascos de yoghurt. A invasão, de 
facto, ainda não veio. Não é exagero se te disser que toda 
a cidade de Amesterdão, toda a Holanda, mais : toda a costa ocidental da Europa até à Espanha, só fala e discute, 
dia e noite, sobre a invasão. Tudo aposta... tudo tem 
esperança. 
 A tensão aumenta e está a tornar-se insuportável. Afinal 
nem todas as pessoas que nós julgávamos bons holandeses, 
mantêm a sua confiança nos ingleses. Não se conformam 
com o famoso "bluff" inglês, oh, não! Os homens querem 
 ver grandes façanhas, actos heróicos. Ninguém consegue 
 ver um palmo diante do nariz, ninguém se quer lembrar 
de que os ingleses estão a defender a sua própria terra, 
 todos julgam que eles têm obrigação de salvar, o mais 
 depressa possível, a Holanda. Mas quais são as obrigações 
dos ingleses para connosco? Que fizeram os holandeses 
para merecer um auxílio tão nobre, como esperam com 
tanta certeza? Os holandeses que não se admirem se se 
enganarem. Ao fim e ao cabo, os ingleses não têm feito 
mais má figura do que todos os outros países e países vizinhos 
que estão agora ocupados. Os ingleses não precisam 
de se desculpar quando os acusamos de terem dormido 
durante todos aqueles anos em que os alemães se armaram, 
pois os outros países, em especial os que estão mais 
próximos da fronteira alemã, também estiveram a 
dormir. Não adiantamos nada em fazer como a avestruz, 
 isto já o reconheceram os ingleses e o resto do Mundo 
e é por isso que os aliados, todos juntos e cada um por si, 
e a Inglaterra sobretudo, se vêem obrigados a fazer pesados 
sacrifícios. Não há país nenhum que tenha vontade de 
sacrificar os seus homens só para o bem de um outro país, 
e a Inglaterra não é diferente dos mais. A invasão, a 
libertação, a liberdade, tudo virá um dia, mas a Inglaterra 
e a América é que hão-de fixar as datas e não os 
habitantes dos países ocupados. 
Reina o anti-semitismo nos círculos onde antigamente nem se pensava em tal coisa. Isto 
impressionou-nos profundamente. A causa deste ódio contra os judeus talvez se compreenda e se 
explique, mas a verdade, é que se trata de um equívoco. Os cristãos censuram os judeus e dizem 
que eles se rebaixam perante os alemães, que denunciam os seus protectores e que muitos 
cristãos têm, por culpa dos judeus, sofrido terríveis provações. Pode ser que haja alguma verdade 
nisto mas, como em todas as coisas, há o reverso da medalha. O que fariam os cristãos se 
estivessem no lugar dos judeus? Será fácil a alguém manter-se firme e correcto com os métodos 
usados pelos 
alemães? Todos sabem que é quase impossível. Então, 
porque é que se exige o impossível dosjudeus? Nos grupos 
ilegais da resistência corre o boato de que os judeus 
 alemães, em tempos emigrados para a Holanda e agora 
deportados para a Polómia, nunca mais poderão regressar 
aqui. Tinham direito de asilo na Holanda, mas logo que Hitler tenha desaparecido, serão forçados a voltar para a 
Alemanha. Ao ouvir coisas assim, surge a pergunta: Para 
que se faz esta guerra tão dura e tão longa? Diz-se sempre 
que lutamos todos juntos pela verdade, pela liberdade e 
pelos direitos do homem. E afinal a discórdia começa 
enquanto ainda se luta, e já outra vez o judeu é inferior 
aos outros? Oh! como é triste que o velho dito se verifique 
mais uma vez : "Os actos de um cristão são da sua própria 
responsabilidade. Mas tudo o que faz qualquer judeu recai 
sobre todos os judeus!". 
 Com franqueza não compreendo que os holandeses, 
este povo bom, honesto e leal, nos condene assim, a nós 
que somos o povo mais oprimido, mais infeliz de todos os 
povos do Mundo. Só me resta esperar isto: que o ódio aos 
judeus seja apenas passageiro e que os holandeses voltem 
a mostrar-se como são na realidade! Oxalá voltem a não 
vacilar no seu sentido de justiça. Porque o anti-semitismo 
é uma injustiça!!! 
 Gosto da Holanda. Esperei sempre que um dia me 
servisse de pátria, a mim, que já não tenho pátria. E continuo 
a ter esta esperança! 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 25 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Todos os dias acontecem coisas desagradáveis. Hoje 
de manhã prenderam o nosso bom hortaliceiro, que tinha 
escondido em casa dois judeus. Foi um golpe muito duro 
para nós, não só por causa daqueles judeus que estão agora 
à beira do abismo, mas também por causa do pobre hortaliceiro. 
 O Mundo está às avessas. Pessoas correctas e boas são 
enviadas para os campos de concentração, para as prisões 
e para as celas solitárias, enquanto a ralé governa sobre os 
velhos, os jovens, os ricos e os pobres. Um é apanhado 
porque se dedicava ao mercado negro, outro porque 
protegia judeus ou outros "mergulhados". Ninguém sabe 
o que o espera amanhã. 
 Também para nós o hortaliceiro significa uma perda 
tremenda. A Miep e a Elli não podem carregar com o 
saco de batatas e a nossa única saída é comer menos. 
Como conseguiremos isso, ainda o hás-de vir a saber, mas 
desde já te digo, não vai ser divertido. A mãe propõe 
suprimir o pequeno almoço e comer ao almoço a papa, 
e à noite batatas fritas e, talvez, uma ou duas vezes por semana, um pouco de salada e de legumes. Isto quer 
dizer: passar fome. Mas todas estas privações são 
 preferíveis a sermos descobertos. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 26 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Finalmente posso sentar-me tranquilamente à minha 
mesinha, junto da janela ligeiramente entreaberta, e 
escrever-te. 
 Há meses que não me sinto tão desgraçada como hoje, 
nem depois do assalto estive assim tão infeliz, moral e 
fisicamente. De um lado o hortaliceiro, o problema dos 
judeus que está a ser o tema do dia cá em casa, a invasão 
que se faz esperar, a péssima alimentação, a tensão nervosa, 
a má disposição, a minha decepção com o Peter; por outro 
lado : o pedido de casamento da Elli, Pentecostes, flores, 
os anos do sr. Kraler, bolos, relatórios sobre filmes, 
 cabarés e concertos. Estes contrastes, estes terríveis 
contrastes. 
 um dia rimo-nos das situações cómicas que a nossa vida 
de "mergulhados" traz consigo, no dia seguinte temos medo 
e não raras vezes lê-se, nos nossos rostos, o receio, a tensão 
nervosa, o desespero. A Miep e o Kraler, mais do que 
quaisquer outros, suportam, por via de nós, grandes encargos. 
A Miep por lhe causarmos muito trabalho, o Kraler por 
ter assumido uma responsabilidade colossal que, por vezes, 
lhe pesa de mais e o põe tão nervoso que quase não consegue 
pronunciar uma palavra. O Koophuis e a Elli também 
se encarregam bem das nossas coisas, muito bem até, mas 
são capazes de se esquecer, de se abstrair do anexo, mesmo 
que seja apenas por umas horas, por um ou dois dias. 
Eles têm outras preocupações, o Koophuis por causa da 
sua saúde, a Elli por causa do noivo com quem nem tudo 
vai às mil maravilhas; e, além disso, tem distracções, visitas 
e a vida toda que para eles corre de uma maneira normal. 
Podem libertar-se por vezes dessa tensão de nervos que a 
nós nunca nos abandona. Já há dois anos que aqui estamos 
- e por quanto tempo seremos ainda capazes de resistir 
a esta pressão insuportável que, de dia para dia, vai crescendo? 
A canalização está entupida; não podemos deixar 
correr a água senão gota a gota; só podemos ir ao W.C. 
munidos de uma escova; guardamos a água suja numa das 
grandes panelas em que se fervem as conservas. Por enquanto a coisa remedeia, mas o que é que vai ser se o 
picheleiro não vier compor os canos? O serviço municipal 
de higiene só virá a este prédio para a semana. 
 A Miep mandou-nos um pão grande com uvas e junto 
um papel onde se lia: "Uma alegre festa de Pentecostes". 
Parece quase um escárnio, pois a nossa disposição e o nosso 
medo são tudo menos "alegres". Estamos cada vez com mais 
medo desde que aconteceu aquilo ao hortaliceiro, de todos 
os lados se ouve, outra vez, "chut, chut", andamos de um 
lado para o outro sem fazer ruído. No hortaliceiro a polícia 
arrombou a porta; aqui pode fazer o mesmo. E se aqui... 
não, não quero falar nisto! Mas a pergunta não se deixa 
afastar fàcilmente, pelo contrário: aquele medo por que 
passei uma vez ergue-se de novo na minha frente em toda 
a sua monstruosidade. 
 Esta noite, às oito horas, deixei a sala onde estávamos 
todos reunidos à volta do rádio e desci sòzinha ao W.C. 
Quis ser corajosa mas foi difícil. Sinto-me mais segura cá 
em cima do que em baixo, onde a casa me parece tão 
grande e calada e onde estou sòzinha com os ruídos misteriosos 
que vêm de cima e os toques das buzinas que vêm 
da rua. Começo a tremer, não consigo demorar-me e tenho 
de fazer esforços para não pensar na nossa situação. Pergunto-me muitas vezes se não teria sido 
melhor, para todos 
nós, não termos "mergulhado" e estarmos mortos sem 
precisar de sofrer toda esta miséria, sobretudo sem termos 
exposto os nossos protectores a tantos perigos também. 
Mas, no fundo, não queremos aceitar tal ideia, porque 
ainda amamos a vida, não nos esquecemos ainda da voz 
da natureza, ainda esperamos, esperamos que aconteça 
algo de bom. Que Deus faça com que aconteça alguma 
coisa e, se for necessário, que haja grandes bombardeamentos; 
nada nos pode desgastar mais do que esta inquietação. 
Que venha o fim., mesmo que seja duro, mas, ao 
menos, que fiquemos a saber se vencemos ou se morremos. 
Tua Anne 
Quarta-feira, 31 de Maio de 1944 
Querida Kitty: 
 Sábado, domingo, segunda e terça fez tanto calor que 
não consegui segurar a pena na mão; por isso não te 
pude escrever. Na sexta, a canalização voltou a ficar 
 avariada e no sábado compuseram-na. à tarde recebemos a 
visita da sra. Koophuis que nos contou muitas coisas da Gorrie. 
 A Gorrie e o Jopie são membros do "Jockey-Club". 
No domingo apareceu a Elli para ver se a casa não foi 
assaltada, e ficou a almoçar connosco. 
 Na segunda-feira (segundo feriado do Pentecostes) o 
Henk van Santen fez de guarda ao esconderijo e na terça, 
pudemos, finalmente, abrir outra vez um pouco as janelas. 
É raro haver dias tão quentes nos feriados do Pentecostes. 
Mas para nós, cá no anexo, não é bom estar tanto calor. 
Vou dar-te uma ideia. 
 Sábado: 
 - Que tempo maravilhoso! - exclamaram todos logo 
pela manhã cedo. 
 - Quem dera que não houvesse tanto calor - disseram 
 à hora do almoço quando asjanelas têm de estar fechadas. 
 Domingo: 
 - O calor é insuportável. A manteiga derrete. Não há 
 um cantinho fresco em toda a casa, o pão está seco, o leite 
estragado, e não se podem abrir as janelas: Ai de nós, 
somos párias e estamos aqui a sufocar enquanto os outros 
festejam o Pentecostes. 
 Segunda-feira: 
 - Doem-me tanto os pés, não tenho roupa leve, não 
 posso lavar a louça com um calor destes. 
 Assim falou a sra. van Daan. Foi horrível. Também 
 não gosto do calor e hoje estou contente por correr um 
 ventinho e por brilhar o Sol ao mesmo tempo. 
Tua Anne 
Segunda-feira, 5 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Outro acontecimento desagradável: nós, os Frank, zangámo-nos 
com o Dussel, e por causa de uma coisa sem 
importância-a distribuição da manteiga. O Dussel ficou 
derrotado. Agora há grande amizade entre ele e a sra. van 
Daan, uma espécie de "flirt" com beijinhos e sorrisos. 
Ao Dussel fez-lhe mal a Primavera. 
 Roma foi tomada pelo Quinto Exército, sem devastações 
 nem bombardeamentos. 
 Pouca hortaliça, poucas batatas. Tempo mau. O estreito 
de Galais e a costa francesa constantemente bombardeados. 
Tua Anne Terça-feira, 6 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 "This is the day", disse ao meio-dia a rádio inglesa e 
com razão! "This is the day". Começou a invasão! De 
manhã, às oito horas, os ingleses noticiaram: bombardeamentos 
pesados sobre Calais, Boulogne, Le Havre e Gherbourg 
e, como de costume, sobre o estreito de Calais. 
 Mais: medidas de segurança para todos os habitantes 
das zonas ocupadas. Todos os habitantes de uma zona que 
abrange até trinta e cinco quilómetros da costa devem 
preparar-se para bombardeamentos pesados. Se for possível, 
os ingleses lançarão folhetos com uma hora de antecedência. 
 Segundo as notícias alemãs, tropas de para-quedistas 
conseguiram lançar-se na costa francesa. A B. B. C. anuncia: 
"A marinha alemã combate contra os barcos ingleses do 
desembarque". 
 Discussões no anexo às nove horas, hora do pequeno 
almoço : 
 - Será isto um desembarque de ensaio como aquele 
de Dieppe, há dois anos? 
 às dez horas, emissão inglesa em alemão, holandês, 
francês e outras línguas: "The invasion has begun!" Trata-se 
portanto de uma invasão autêntica. Emissão inglesa às 
onze horas, em alemão : discurso do comandante-chefe, 
o general Dwight Eisenhower. 
 Emissão inglesa - língua inglesa-meio dia: "This is 
the day". O general Eisenhower fala ao povo francês: 
 - Still fighting will come now. But after this the victory. 
The year 1944 is the year of complete victory, good luck! 
 Emissão inglesa à uma hora: onze mil aviões voam 
continuamente de um lado para o outro para desembarcar 
tropas e lançar bombas atrás das linhas. Quatro mil barcos 
e outras pequenas embarcações despejam, entre Cherbourg e Le Havre, sem interrupção, tropas e 
material. Tropas 
inglesas e americanas estão já a lutar àrduamente. Discursos 
de Gerbrandy, do Primeiro-Ministro da Bélgica, do 
rei Haakon da Noruega, de De Gaulle da França, do rei 
da Inglaterra, sem esquecer, claro está, o de Churchill. 
 O anexo está como que em delírio. Será então verdade 
que a libertação, há tanto ansiada, a tão discutida libertação, sempre está a aproximar-se? Não 
será isto maravilhoso de mais, fantástico de mais para se tornar realidade? O ano de 1944 trará, 
de facto, a vitória? Não o sabemos ainda, mas a esperança anima-nos, dá-nos nova coragem, 
torna-nos fortes, pois precisamos de coragem para podermos 
suportar o medo, as privações, o sofrimento; agora o 
essencial é conservarmo-nos calmos e firmes. Mais do que nunca, tenho de cerrar os dentes para não gritar. Agora 
são a França, a Rússia, a Itália e também a Alemanha 
que podem gritar de tanto sofrer, mas nós ainda não temos 
esse direito! 
 Oh! Kitty, o mais maravilhoso disto tudo é que tenho 
o pressentimento de que amigos estão a aproximar-se! 
Os horríveis alemães oprimiram-nos e ameaçaram-nos 
tanto tempo, que só o pensar, agora, que se aproximam 
amigos, nos restitui a confiança. Agora não se trata só dos 
judeus. Agora trata-se da Holanda e de toda a Europa. 
A Margot diz que eu talvez já possa voltar à escola em 
Setembro ou Outubro. 
 Tua Anne 
 P. S. Hei-de informar-te sempre das últimas novidades: 
 Durante a noite e logo de manhã cedo, desembarcaram 
bonecos de palha atrás das linhas alemãs, que explodiram 
logo que tocaram o chão. Desembarcaram também muitos 
pára-quedistas; estavam pintados de preto para se confundirem 
com a escuridão da noite. De manhã desembarcaram 
dos primeiros navios, depois de a costa ter sido bombardeada 
durante a noite com cinco milhões de quilos de 
bombas. Vinte mil aviões estiveram hoje em acção. Tudo 
vai bem, embora o tempo esteja mau. O exército e o povo 
têm "one will and one hope". 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 9 de Junho de 1944 
 Querida Kitty: 
 A invasão corre às mil maravilhas. Os aliados tomaram 
Bayeux, uma aldeia na costa francesa, e lutam agora por 
Calais. Compreende-se bem que querem cercar a peninsula 
onde fica Cherbourg. Todas as noites os correspondentes 
de guerra relatam as dificuldades, a coragem e o entusiasmo 
do exército. Também ouvimos falar os feridos que 
tiveram de voltar para a Inglaterra. Apesar do mau tempo, 
os aviões levantam sempre voo. Pela B. B. c. ficámos a 
saber que Churchill quis tomar parte na invasão, mas que 
o general Eisenhower e os outros generais o aconselharam 
a desistir dessa ideia. Imagina tu a coragem daquele homem 
que já tem setenta anos de idade. 
 Aquijá não reina tanta excitação; mas esperamos todos 
que a guerra acabe finalmente no fim deste ano. E já não 
será sem tempo! As lamentações da sra. van Daan estão-se a tornar insuportáveis. Agora que já não nos pode massacrar 
com a invasão, queixa-se todo o dia do mau tempo. 
Apetecia-me metê-la num balde de água fria. 
Tua Anne 
Terça-feira, 13 de Junho de 1944 
 Querida Kitty: 
 O meu aniversário passou mais uma vez. Tenho agora 
quinze anos. Recebi muitas coisas : 
 A História de Arte, de Springer, em cinco volumes; um 
jogo de roupas interiores; dois cintos; um lenço; dois 
frascos de yoghurt; um frasco de compota; um bolo; um 
livro de Botânica, do pai e da mãe. A Margot deu-me uma 
pulseira dupla, os van Daans um livro, o Dussel ervilhas 
de cheiro; a Miep e a Elli rebuçados e cadernos. E ainda 
a melhor surpresa: o livro Maria Teresa e três fatias de 
queijo autêntico, do sr. Kraler. Do Peter recebi um belo 
ramo de begónias; o pobre do rapaz andou a ver se lhe 
conseguiam arranjar coisa diferente, mas não foi possível. 
 A invasão continua em pleno progresso, apesar do mau 
tempo, das ventanias medonhas e das chuvas torrenciais 
sobre o mar. 
 Churchill, Smuts, Eisenhower e Arnold visitaram ontem 
as aldeias francesas que foram conquistadas e libertadas 
pelos ingleses. Churchill esteve num torpedeiro que bombardeou 
a costa. Este homem, como tantos outros, parece 
não ter medo. Que coisa tão invejável! 
 Daqui do anexo não podemos sondar o moral dos holandeses. 
Sem dúvida as pessoas estão contentes por a "indolente" 
Inglaterra sempre deitar a mão. Todos aqueles 
holandeses que, embora odiando os alemães, continuam a 
olhar de cima para os ingleses e a tratar a Inglaterra de 
cobarde e o seu governo de "regime dos homens velhos", 
têm de ser sacudidos com força. Talvez os seus cérebros 
desarranjados voltem assim a ter todas as suas circunvoluções 
no sítio. 
 Tua Anne 
Quarta-feira, 14 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Muitos desejos, muitos pensamentos, muitas acusações  e censuras se confundem na minha cabeça como fantasmas. 
 Podes crer, não sou tão presunçosa como algumas pessoas 
 julgam; conheço melhor os meus inúmeros defeitos do que 
 qualquer outra pessoa. Só há uma diferença: é que eu sei, 
 além disso, que tenho vontade de me corrigir e que, em 
 certa medida, já me tenho corrigido. Muitas vezes pergunto-me porque é que tanta gente me 
acha presunçosa e 
 pouco modesta. Sou assim tão presunçosa? É defeito só 
 meu, ou não serão os outros também presunçosos? Esta 
última frase soa maluquinha, mas não a risco porque não 
; é tão maluquinha como parece. A sra. van Daan, a minha 
 acusadora número um, é conhecida como pouco inteligente, vamos mesmo dizê-lo com toda a 
franqueza: como 
 "estúpida". E as pessoas estúpidas, de uma maneira geral, 
 não perdoam que os outros saibam mais alguma coisa do que elas. 
 A sra. van Daan acha-me estúpida por eu não ser tão 
 lenta de compreensão como ela; acha-me pouco modesta 
 por ela o ser ainda menos; acha os meus vestidos curtos 
 de mais por os dela serem ainda mais curtos. E, afinal, 
 acha-me impertinente porque ela mete-se, muito mais do 
 que eu, a tomar parte em discussões sobre assuntos de que 
 não percebe patavina. Um dos ditos de que mais gosto 
 é este : "Em cada censura há uma ponta de verdade". 
 Por isso vou confessar que sou, por vezes, impertinente. 
 Ora, o que tenho de mais incómodo no meu carácter é 
 ser eu a pessoa que mais me critica e censura. Como a 
 mãe ajunta a isto a sua porção de conselhos, o montão dos 
 sermões torna-se tão indescritivelmente alto que eu, 
 desesperada por não conseguir dominá-lo, me torno insuportável 
e malcriada, e a isso segue-se, como é natural, a minha 
velha queiXa: "Ninguém me compreende". Estas palavras 
estão ancoradas em mim e, mesmo que possa parecer 
incrível, também nela há uma ponta de verdade. Por vezes 
torturo-me com tantas acusações contra mim própria 
que seria preciso uma voz reconfortante para me ajudar 
a repor tudo na medida certa e sã e que também se preocupasse 
um pouco com a minha vida interior. Mas, infelizmente, 
procurei muito e nunca encontrei. Sei que pensas 
agora no Peter, não é verdade, Kit? Sim, o Peter ama-me não como um apaixonado mas como 
um amigo, a sua dedicação 
cresce de dia para dia, mas não sei explicar esse 
mistério que nos separa. Por vezes penso que o meu violento 
desejo de estar com ele é exagerado. Mas a verdade 
é que eu, depois de não ter estado lá em cima durante 
dois dias, sinto tão grandes saudades como nunca tive. 
 O Peter é gentil e bom mas não posso negar que muita 
coisa nele me causa decepção. Não gosto da maneira como ele reprova a religião; as suas conversas sobre comidas e 
coisas semelhantes não me agradam. Mas tenho a certeza 
de que, conforme combinámos, nunca nos havemos de 
zangar. O Peter é pacífico, tem bom génio e cede fàcilmente. 
Aceita melhor as minhas observações do que as 
da mãe e faz esforços enormes por manter a ordem nas suas 
coisas. Mas porque é que não se abre comigo, porque é 
que não me deixa tocar o seu íntimo? A sua natureza é 
muito mais reservada do que a minha, bem sei-sei-o por 
experiência - mas até as pessoas mais reservadas têm 
o desejo irresistível de se confiar a alguém, mesmo que 
seja uma única vez. O Peter e eu passámos os dois anos 
mais importantes para a nossa formação aqui no anexo; 
falámos muitas vezes sobre o passado, o presente e o futuro, 
mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa de 
mais autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa existe. 
 Tua Anne 
Quinta-feira, 15 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Terei eu agora tanto interesse pela natureza por não 
poder, há tanto tempo, sair deste buraco? Ainda me 
lembro de que antigamente não me fascinavam os pássaros 
a cantar, o céu azul e brilhante, as flores e o luar. Por 
exemplo, no Pentecostes, quando estava tanto calor, fiz 
todos os esforços para me conservar acordada às onze e 
meia, para poder absorver sòzinha o luar pela janela; 
infelizmente não me serviu de nada, porque a Lua brilhava 
com tanta claridade que não pude arriscar-me a abrir a 
janela. Uma outra vez, isto já foi há vários meses, estava 
eu, por acaso, lá em cima e vi que a janela tinha ficado 
aberta. Enquanto ninguém a veio fechar, deixei-me ficar. 
A noite chuvosa, a ventania, as nuvens em fuga, tudo isso 
tomou totalmente conta de mim; depois de ano e meio 
foi pela primeira vez que me vi cara a cara com a noite. 
Desde então, o meu desejo de viver outra vez momentos 
assim tornou-se mais forte do que o medo dos ratos, dos 
ladrões e dos assaltos. Descia, por vezes, sòzinha para o 
andar de baixo, para olhar pelajanela do escritório particular 
ou da cozinha. Muita gente ama a natureza, muitos dormem, 
por vezes, ao relento. Há outros que estão nas prisões 
e nos hospitais e anseiam pelo dia em que possam gozar 
o ar livre, mas poucos estão como nós, tão fechados e 
isolados daquilo que, ao fim e ao cabo, nos pertence a todos igualmente, aos ricos e aos pobres. Não é em imaginação 
que fico mais calma e que me encho de esperança 
quando olho o céu, as nuvens, a Lua e as estrelas. É um 
remédio melhor do que a valeriana e o bromo. A natureza 
 torna-me um ser humilde, torna-me capaz de suportar 
; melhor todos os golpes. É, no entanto, inevitável que eu 
só a possa contemplar - e mesmo assim por excepção - através das janelas sujas com cortinas 
cheias de pó, o 
 que diminui o meu prazer, pois a natureza é a única 
 coisa que não pode ser imitada ou substituida. 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 16 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Problemas novos! A sra. van Daan está desesperada. 
Fala em balas na cabeça, em prisão, enforcamento, suicídio. 
Tem ciumes por o Peter se confiar a mim e não a 
ela. Está ofendida por o Dussel não corresponder às suas 
coqueterias; tem medo de que o marido gaste todo o 
dinheiro do seu casaco de peles; discute, chora, queixa-se, ri 
e começa de novo a discutir. O que há-de fazer-se a uma 
choramingas desta força? Ninguém a está a tomar a sério. 
Ela não tem carácter, queixa-se a toda a gente e veste-se 
de uma maneira disparatada; vista por detrás parece 
uma menina de liceu, vista de frente é uma peça de museu. 
O pior é que o Peter torna-se malcriado com ela, o sr. 
van Daan irrita-se e a mãe fica cínica. Uma linda situação, 
não há dúvida! Para isto há só um remédio que deves 
ter sempre presente : ri-te de tudo e não faças caso dos 
outros! Pode parecer egoísta mas, na realidade, é a única 
defesa para aqueles que são obrigados a consolar-se a si próprios. 
 O Kraler foi novamente convocado para trabalhos de 
sapador. Está a ver se consegue safar-se com um atestado 
médico e uma carta da firma. O Koophuis tem de fazer 
outra operação ao estômago. Ontem, às 11 horas, todas 
as ligações telefónicas particulares foram cortadas. 
Tua Anne 
Sexta-feira, 23 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Nada de especial a relatar. Os ingleses começaram com a grande ofensiva sobre Cherbourg. O Pim e o sr. van 
Daan são de opinião de que estaremos livres em Outubro. 
Os russos também estão activos; ontem começaram a 
sua ofensiva em Witebsk, precisamente três anos depois 
da invasão dos alemães. 
 Já quase não temos batatas; doravante, vão ser 
contadas e divididas em rações iguais; depois cada um que 
se arranje. 
 Tua Anne 
Terça-feira, 27 de Junho de 1944 
Querida Kitty: 
 Boa disposição, tudo está a caminhar da melhor maneira. 
Cherbourg, Witebsk e Slobin caíram hoje. Muitos prisioneiros, 
muitos despojos. Na batalha de Cherbourg 
 morreram cinco generais alemães e dois ficaram prisioneiros. 
Agora os ingleses podem desembarcar quantas coisas 
 quiserem, pois já têm um porto. Toda a península de Gotentin, 
depois de três semanas, nas mãos dos ingleses. É de 
respeito! Nestas três semanas, desde o "D-day", ainda não 
houve um único dia sem chuvas e ventanias, tanto aqui 
como na França, mas nem esta má sorte impede os ingleses 
e os americanos de mostrarem a sua força, e que força! 
Já se vê, a "Vz", a arma milagrosa, também entrou em 
acção, mas tais foguetes pouco mais significam do que 
pequenos danos na Inglaterra e grandes relatos nos jornais 
 dos "boches". Aliás, se na terra dos "boches" 
souberem que o "perigo bolchevique" está a aproximar-se, 
hão-de tremer como varas verdes. 
 Todas as mulheres e crianças alemãs que não trabalham 
 na "Wehrmacht" são evacuadas das regiões da costa 
para Groningen, Friesland e Gelderland. Mussert declarou que vestirá o uniforme, caso a 
invasão venha até aqui. 
O gorducho quererá lutar? Poderia tê-lo feito há mais 
tempo, na Rússia. A Finlândia que tinha recusado, em 
tempos, as propostas de paz, rompeu de novo as negociações. 
Hão-de se arrepender, os idiotas. 
 Como estarão as coisas no dia 27 de Julho? O que é 
que pensas? 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 30 de Junho de 1944 Querida Kitty: 
 Mau tempo ou: bad weather at a stretch to the 30th 
of June. Está bem assim? Oh, sim, já sei muito inglês. Estou 
a ler An ideal Husband (com o dicionário). 
 As notícias de guerra são excelentes. Bobruisk, Mogilew 
e Orscha caíram. Muitos prisioneiros. Aqui tudo "all right", 
a disposição também. Os nossos hiperoptimistas estão a 
delirar. A Eli mudou de penteado. A Miep tem uma 
semana de férias. Aqui tens as últimas novidades. 
Tua Anne 
Quinta-feira, 6 de Julho de 1944 
Querida Kitty: 
 Amargura-se-me o coração quando ouço dizer ao Peter 
que ainda poderá vir a ser, mais tarde, um criminoso ou 
um especulador. Bem sei que ele diz aquilo por brincadeira, 
mas tenho a impressão de que tem medo da sua própria 
fraqueza de carácter. Tanto a Margot como o Peter repetem-me 
constantemente : 
 -Ah! se eu fosse tão forte e corajosa como tu, se tivesse 
tanta força de vontade, tanta persistência... 
 Será de facto uma boa qualidade isto de eu não me 
deixar influenciar? Estará certo que siga quase exclusivamente 
o caminho que me dita a minha consciência? 
Com toda a franqueza, custa-me compreender que alguém 
possa dizer "sou fraco" e se deixe ficar fraco na mesma. 
Se a gente conhece os seus defeitos porque não tenta então 
corrigi-los? Resposta do Peter: 
 - Porque assim é muito mais cómodo. 
 Esta resposta desencorajou-me bastante. Cómodo! Quer 
ele dizer que uma vida de preguiça e de auto-ilusão é 
uma vida cómoda? Oh, não, não, recuso-me a acreditar 
nisso. Não é possível que a moleza e... o dinheiro sejam 
tão aliciantes. Pensei muito tempo no que havia de lhe 
responder, em como poderei levar o Peter a ter confiança 
em si próprio e, principalmente, a corrigir-se. Mas não 
sei se serei bem sucedida. 
 Julgava maravilhoso possuir a confiança de alguém, 
mas só agora vejo como é difícil identificar-me com os 
pensamentos de outrem e dar um conselho justo, tanto 
mais que os conceitos de "cómodo" e de "dinheiro" são 
para mim novos e um tanto estranhos. O Peter começa 
a encostar-se a mim e acho que não devia ser assim. Não é fácil para um rapaz como o Peter aguentar-se sobre as 
próprias pernas, mas ainda lhe custará mais na medida 
em que se for tornando um homem consciente à procura 
de um caminho na vida, através de um mar de problemas. 
Sinto-me como se andasse à roda de mim mesma procurando 
uma justificação para o medonho conceito de "cómodo". 
Como poderei eu explicar-lhe, a ele, que aquilo que aparentemente é tão cómodo e tão bonito, o 
arrastará para 
o abismo, esse abismo onde já não há nem amigos, nem 
beleza, nem apoio, o abismo donde é quase impossível 
tornar a subir? 
 Todos vivemos sem saber porquê e para quê, todos procuramos 
ser felizes, todos vivemos de um modo diferente 
e no entanto somos todos iguais. Nós, os três jovens, fomos 
educados num ambiente elevado, temos a capacidade 
de aprender e de conseguir alguma coisa, temos igualmente 
razão para esperar uma vida bela, mas... depende 
de nós merecê-la. Para isso é necessário esforço, não basta 
buscar a comodidade. 
 Merecer a felicidade quer dizer trabalhar para ela, 
ser bom e não se deixar seduzir por especulações ou pela 
preguiça. Talvez a preguiça "pareça" coisa agradável, mas 
o trabalho dá satisfação. Não compreendo as pessoas que 
não gostam de trabalhar, mas não é este o caso do Peter. 
Ao Peter só lhe falta uma finalidade, um objectivo firme; 
ele acha-se estúpido e inferior para conseguir coisa de 
jeito. 
Pobre rapaz, ainda não conheceu a sensação agradável 
que é dar felicidade aos outros e isso não lhe posso eu 
ensinar. Não tem religião, troça de Jesus, renega o nome 
de Deus. Embora eu não seja ortodoxa, sinto uma dor profunda 
ao aperceber-me do seu desdém, do seu abandono, 
da pobreza da sua alma. 
 Aqueles que têm uma religião podem sentir-se felizes, 
pois não é dada a todos a fé nas coisas celestes. Nem é 
preciso ter medo do castigo depois da morte. Há muita 
gente que não admite o Purgatório, o Inferno ou o Céu, 
mas uma religião-e não importa qual-mantém os homens 
no caminho recto. Não se trata do medo de Deus mas 
sim da estima da nossa própria honra e da nossa consciência. 
Como seria bela e boa toda a Humanidade se, antes 
de adormecer à noite, evocasse os acontecimentos do dia que passou, se reflectisse no que foi 
bom e no que foi 
mau. 
 Assim, quase sem dar por isso, tentamos corrigir-nos 
constantemente, e depois de certo tempo alguma coisa 
conseguimos. Este método toda a gente o pode utilizar, não custa nada, está ao alcance de quem quiser. Quem 
o não conhece deve aprender e experimentar: "Uma consciência 
tranquila torna-nos fortes!" 
 Tua Anne 
Sábado, 8 de Julho de 1944 
Querida Kitty: 
 O representante principal da firma, o sr. B, esteve em 
 Beverwijk, onde conseguiu arranjar morangos. Chegaram 
 aqui cheios de pó e de areia, mas são muitos: caixotes 
 para o escritório e para nós. Fizemos imediatamente oito 
 frascos de conservas e oito boiões de compota. Amanhã, 
 a Miep também vai fazer compota para o escritório. 
 Ao meio-dia e meia hora, quando já não há mais 
 estranhos no prédio, e com a porta da rua fechada, vamos 
 buscar os caixotinhos. O Peter, o pai e o sr. van Daan 
 desfilam na escada, a Anne traz a água quente, a Margot 
 os baldes, enfim, todos dão uma ajuda. Com uma sensação 
 estranha no estômago entrei na cozinha do escritório : 
 a Miep, a Elli, o Koophuis, o Henk, o pai, o Peter, a 
 coluna dos "mergulhados" e a do reabastecimento, tudo 
 à mistura em pleno dia. 
 Bem sei que ninguém pode olhar cá para dentro através 
 das cortinas, mas as vozes, as portas a bater, tudo 
isto, faz-me tremer de aflição. Pergunto-me se somos de facto 
 "mergulhados", penso que terei uma sensação semelhante 
 quando puder um dia entrar, de novo, no mundo exterior. 
 A panela estava cheia. Subi depressa. Na nossa cozinha 
estava o resto da família a tirar os talos dos morangos. 
 Metiam mais frutos na boca do que no balde. Daí a 
 pouco-era preciso mais um balde - o Peter desceu à 
 cozinha do escritório e, nesse momento, a campainha toca 
 duas vezes. O Peter deixa ficar o balde, sobe para fechar 
 a porta giratória. Nós, cheios de impaciência! As torneiras 
 não se podiam abrir, embora os morangos precisassem 
 urgentemente de ser lavados. Mas a regra dos "mergulhados" 
é esta: "Se estiver algum estranho no prédio, todas as torneiras devem estar fechadas por causa 
do perigo 
dos ruídos". E esta regra cumpre-se rigorosamente. 
 à uma hora veio o Henk para nos dizer que tinha 
sido o carteiro quem tocara a campainha. O Peter corre de 
novo escada abaixo. Trrin, a campainha outra vez. E o 
Peter volta a subir. Eu ponho-me a escutar, primeiro 
encostada à porta camuflada, depois em cima da escada, sem fazer o menor ruído. O Peter vem também e, por fim, 
parecíamos dois ladrões dependurados no corrimão a 
escutar o barulho lá debaixo. Não distinguíamos nenhuma 
voz que nos fosse estranha. Então o Peter desceu muito 
cautelosamente alguns degraus e chamou: 
 -Elli! 
 Não veio resposta. Outra vez : 
 -Elli! 
 O barulho na cozinha é mais alto do que a voz do 
Peter. Ele então desce e eu olho para baixo, cheia de 
nervos. 
 -Sobe depressa, anda, Peter, está cá o fiscal da contabilidade! 
 Era a voz do sr. Koophuis. Suspirando, o Peter volta, 
a porta giratória fecha-se. à uma e meia veio, finalmente, 
o Kraler: 
 -Por amor de Deus! Não vejo senão morangos. Dão-me 
morangos ao pequeno almoço, o Henk a comer morangos, 
o Koophuis a petiscar morangos, a Miep a cozer morangos, 
o cheiro a morangos por toda a parte. Já não podia mais 
e por isso resolvi subir até aqui-e o que vejo?-gente a 
lavar morangos! 
 Do resto dos morangos fizeram-se conservas. à noite 
as tampas de dois frascos saltaram fora. O pai tira os morangos e faz compota. Na manhã 
seguinte outras duas 
tampas saltam, à hora do almoço, mais quatro. O sr. van 
Daan não esterilizou os frascos suficientemente. E agora o 
pai faz todas as noites compota. Comemos papinhas com 
morangos, soro de leite com morangos, pão com morangos, 
sobremesa de morangos, morangos com açúcar, morangos 
com areia... Durante dois dias os morangos andaram a 
dançar por toda a parte : morangos, morangos, morangos. 
Depois não se viram mais, os frascos de compota ficaram 
bem fechados à chave. 
 -Anda cá ver, Anne, chama a Margot-o hortaliceiro 
da esquina mandou nove quilos de ervilhas. 
 -Acho simpático da parte dele, disse eu, mesmo muito 
simpático, mas o trabalho que isto dá... que horror! 
 -No domingo de manhã vocês todos têm de ajudar 
a descascar-anunciou a mãe à mesa. E assim foi. Hoje 
de manhã, depois do pequeno almoço, apareceu em cima 
da mesa o grande alguidar de esmalte cheio, até acima, 
de ervilhas. Debulhar ervilhas pequeninas é um trabalho 
aborrecido, mas o que custa é aproveitar as cascas das 
vagens. Sei que a maioria das pessoas não faz ideia de 
como são saborosas as cascas das ervilhas depois de a gente 
lhes ter tirado a película interior. A grande vantagem está 
em se poder comer muito mais do que se nos limitássemos apenas às ervilhas. Tirar as pelezinhas é um trabalho 
preciso e minucioso, que, talvez, seja mais próprio para 
dentistas ultrameticulosos e burocratas mesquinhos; para 
uma rapariga impaciente como eu, torna-se horrível. às 
nove e meia começámos; às dez e meia resolvi fazer um 
intervalo de uma hora. Os ouvidos zumbem-me: cortar 
a ponta, tirar a pelezinha, depois os fios, deitar as ervilhas 
no alguidar, etc. Foge-me a vista: verde, verde, bichos, fios, 
cascas podres, verde, verde, verde. 
 Fiquei estúpida e para fazer alguma coisa passei a falar 
durante todo o tempo. A dizer asneiras faço rir toda a gente, 
mas eu é que fico com a sensação de morrer de aborrecimento. 
A cada fiozinho que tiro, mais me convenço de que 
nunca quererei ser apenas dona de casa! 
 Ao meio-dia comemos, finalmente. Mas ao meio-dia 
e meia hora começamos de novo a tirar peliculazinhas até 
à uma hora e um quarto. Quando chegámos ao fim eu 
estava enjoada e os outros também um pouco; dormi 
até às quatro horas, mas ainda me sinto toda moída de 
tanta ervilha. 
 Tua Anne 
Sábado, 15 de Julho de 1944 
Querida Kitty: 
 Lemos um livro da biblioteca com o título maravilhosamente 
provocante : O que pensa você da rapariga moderna?. 
Quero falar-te hoje sobre este tema. A autora critica, 
dos pés à cabeça, a "juventude de hoje" sem, no 
entanto, acusar tudo quanto é jovem de "não servir para 
nada". Pelo contrário, ela pensa que a juventude, se quisesse, 
podia construir um mundo maior, mais belo e melhor. 
Diz que a juventude tem os meios para isso mas que se 
preocupa com assuntos superficiais, sem reparar no que 
há de essencialmente belo nas coisas. Ao ler certos parágrafos 
tive a impressão de ser visada e, por issso, quero desabafar 
aqui com alguns pensamentos e defender-me contra aqueles 
ataques. 
 Tenho um traço marcante no meu carácter-todos os 
que me conhecemjá deram por ele: a autocrítica. Vejo-me 
em todos os meus actos como se se tratasse de uma pessoa 
estranha. Enfrento esta Anne com absoluta imparcialidade, 
sem pretender desculpá-la e observo o que ela faz de mal 
e de bem. Esta autocontemplação nunca me larga, e não 
posso pronunciar uma palavra sem pensar logo em seguida: "devia ter dito isto de outra maneira", ou: "foi bem 
dito". 
Condeno muitas vezes os meus actos e reconheço cada 
vez mais a verdade das palavras de meu pai: "Cada 
criança deve educar-se a si própria". Os outros só nos 
podem dar conselhos ou indicar-nos o caminho a seguir, 
mas a formação definitiva do carácter está nas próprias 
mãos de cada indivíduo. A isso devo acrescentar que 
tenho uma coragem extraordinária de viver, sinto-me sempre 
 forte e capaz de suportar seja o que for. Sinto-me tão 
livre, tão jovem! Quando me dei conta disto pela primeira 
vez fiquei contente, pois não supunha que os golpes que 
ninguém está livre de apanhar, me pudessem esmagar 
ràpidamente. Mas sobre este assunto já falei muitas vezes. 
Deixa-me chegar ao ponto principal: "O pai e a mãe não 
me entendem". Deram-me muitos mimos, foram sempre 
bons para comigo, defenderam-me, em resumo: fizeram 
tudo o que os pais podem fazer. E todavia tenho-me sentido, 
muitas vezes, terrivelmente só, posta de parte, 
 descurada, incompreendida. O pai tem feito tudo para 
 atenuar os meus protestos, mas em vão; fui eu mesma que me 
curei, reconhecendo os erros dos meus actos. Mas como se 
explica que o pai não me possa ter dado o necessário 
apoio na minha luta? Como se explica que ele tenha 
falhado quando me oferecia o seu auxílio? O pai falhou 
porque não conseguiu encontrar a maneira de falar comigo, 
tratava-me como uma criancinha que só tem preocupações 
infantis. Pode parecer tolice eu dizer isto, pois foijustamente o pai quem me inspirou sempre 
confiança e me 
deu a certeza de que sou inteligente. Mas há uma coisa 
em que se esqueceu de pensar: é que a minha luta para 
me elevar era mais importante para mim do que tudo o 
mais. Eu não queria ouvir: "sintomas típicos... outras 
raparigas... isto passa", etc. Não queria ser tratada como 
todas as raparigas, mas como um ser com personalidade 
própria, como a ANNE. Foi isto o que o Pim não soube 
comprender. De resto não me é possível abrir-me com 
alguém que não me fale também de si; como sei muito 
pouco da vida do Pim, nunca poderá estabelecer-se entre 
nós uma intimidade completa. O Pim coloca-se sempre no 
ponto de vista do mais velho que também passou por coisas 
semelhantes mas que já não pode sentir e viver o que 
vive um jovem, embora tente fazê-lo. Tudo isto me levou 
a nunca comunicar a ninguém a minha concepção da vida 
e as minhas teorias longamente meditadas, a não ser; de 
longe em longe, à Margot. 
 Tudo o que me preocupava escondia-o do pai, não o deixei partilhar comigo os meus ideais e, conscientemente, 
alheei-me dele. Não me foi possível ser diferente, deixei-me 
conduzir pelos sentimentos, mas agi de modo a encontrar 
sossego. E o meu sossego, e a confiança em mim mesma, que 
fui construindo sobre bases oscilantes talvez não resistissem se eu tivesse de suportar críticas a 
esta minha obra ainda 
não acabada. E nem ao Pim posso permitir que se meta 
de permeio. Por mais duro que isto possa soar, afastei-o de 
mim, não o deixando partilhar da minha vida interior, 
principalmente pela minha irritabilidade. É um ponto que 
me preocupa constantemente. Porque é que o Pim me 
irrita tanto a ponto de não poder estudar com ele, de me 
parecerem artificiais os seus carinhos, de desejar só o meu 
sossego e que ele me deixe em paz até eu possuir mais 
segurança íntima? A verdade é que ainda me censuro 
por causa daquela carta vil que ousei escrever-lhe num 
momento de excitação. Oh! Como é difícil ser-se forte e 
corajosa em todas as circunstâncias. 
 Mas esta ainda não é a minha decepção mais grave : 
muito mais do que o pai preocupa-me o Peter. Sei bem 
que fui eu quem o conquistou a ele e não o contrário; 
construí dele uma visão idealizada, vi nele um rapaz 
simpático, calado, sensível, precisando de muito amor 
e de amizade. Tive necessidade de abrir-me com um 
ser vivo, com um amigo que me mostrasse o caminho 
a seguir. Consegui que ele, pouco a pouco, fosse atraído 
por mim. Finalmente, depois de ter despertado nele sentimentos 
amigáveis, passámos a intimidades que me 
parecem, agora, inconcebíveis. Falámos sobre muitas coisas 
íntimas mas sobre aquelas que me enchem o coração ainda 
não dissemos palavra. Não me foi possível, até agora, 
fazer uma ideia exacta do Peter; é ele um rapaz superficial, 
ou não consegue vir francamente ao meu encontro 
por ser tímido? Mas eu cometi um erro grave: eliminei, 
logo de entrada, todas as possibilidades de uma grande 
amizade entre nós, tentando aproximar-me dele por uma 
intimidade exagerada. Ele está ávido de amor e de dia 
para dia cada vez gosta mais de mim, bem o sinto. O nosso 
convívio satisfá-lo plenamente, mas em mim produz apenas 
o efeito de tentativas renovadas para recomeçar e tocar 
nos assuntos que tanto gostaria de abordar e de esclarecer. 
Atraí o Peter à força, e ele nem se deu conta disso. Agora 
agarra-se a mim e, por enquanto, não vejo como o hei-de 
sacudir de mim e repô-lo sobre os seus próprios pés. Depois 
de me ter apercebido de que ele não pode ser para mim 
o amigo que ansiava, esforcei-me para o elevar acima dos 
 seus pontos de vista limitados e para que não desperdice  a sua juventude. "Pois, no fundo, a juventude é mais 
 solitária do que a velhice". Encontrei esta frase num livro 
 e fixei-a, porque encontrei nela a verdade. 
 É a nossa vida aqui mais difícil de suportar para os 
 adultos de que para nós? Não, decerto não! As pessoas 
 com mais idade já têm opiniões formadas sobre todas as 
 coisas e já não vacilam, não hesitam perante as dificuldades 
 da sua vida. A nós, os jovens, custa-nos manter-nos firmes 
 nos nossos pareceres por vivermos numa época em que 
 mostra pelo seu lado mais horroroso, em que se duvida 
 da verdade, do direito, de Deus! 
 Aquele que pretende afirmar que os mais velhos sofrem 
 mais aqui no anexo do que nós, os jovens, não sabe ver 
 até que ponto os problemas desabam sobre nós, problemas 
 para os quais talvez ainda não tenhamos bastante idade, 
 mas que se nos impõem de um modo violento. Em determinada altura julgamos ter encontrado 
uma solução mas 
 esta solução, de uma maneira geral, não resiste aos factos 
 que são sempre tão diferentes. Eis a dificuldade do nosso 
 tempo : mal começam a germinar em nós ideais, sonhos, 
 belas esperanças, logo a realidade cruel se apodera de tudo 
 isso para o destruir totalmente. 
 É por milagre que eu ainda não renunciei a todas as 
 minhas esperanças, na verdade tão absurdas e irrealizáveis. 
 Mas eu agarro-me a elas, apesar de todos e de tudo, porque 
 tenho fé no que há de bom no homem. Não me é possível 
 construir a vida tomando como base a morte, a miséria 
 e a confusão. Vejo o Mundo transformar-se, pouco a pouco, 
 num deserto; ouço, cada vez mais forte, a trovoada que se 
 aproxima, essa trovoada que nos há-de matar; sinto o 
 sofrimento de milhões de seres e, mesmo assim, quando 
 ergo os olhos para o Céu, penso que, um dia, tudo isto 
 voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao seu fim e 
 que o Mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a 
 tranquilidade. 
 Até lá tenho que manter firme os meus ideais-talvez 
 ainda os possa realizar nos tempos que hão-de vir. 
 Tua Anne 
Sexta-feira, 21 de Julho de 1944 
Querida Kitty: 
 Estou cheia de esperanças, tudo vai bem! Sim, vai 
mesmo muito bem! Notícias sensacionais. Houve um atentado 
contra Hitler mas, imagina, os autores não foram comunistas, judeus ou capitalistas ingleses, mas sim um 
general alemão da nobre raça germânica, e, ainda por 
cima, um general ainda jovem! A "providência divina" 
salvou a vida do Führer e ele escapou-infelizmente, 
infelizmente!-com algumas arranhadelas e queimaduras. 
Alguns oficiais e generais que andavam com ele morreram 
ou ficaram feridos. O autor principal foi fuzilado. Este 
atentado é a melhor prova de que muitos oficiais e generais 
estão fartos desta guerra e que veriam com prazer o Hitler 
afundar-se nos mais profundos precipícios. Querem, depois 
da morte de Hitler, instalar uma ditadura militar, fazer 
as pazes com os aliados, rearmar-se, para desencadear 
uma nova guerra daqui a vinte anos. Talvez a Providência 
tenha hesitado, de propósito, em afastar Hitler desde já, 
pois aos aliados faz muito mais jeito, e é muito mais vantajoso, que os alemães arianos puros se 
matem uns aos 
outros; assim haverá depois menos canseira para os russos 
e para os ingleses que poderão mais depressa começar a 
reconstruir as suas cidades. Mas ainda não chegámos a 
este ponto e eu não quero antecipar-me aos factos gloriosos. 
Tu decerto estás a notar que tudo o que te estou a dizer 
é a realidade nua e crua, uma realidade com os dois pés 
fincados no chão, e que eu, excepcionalmente, não estou 
a delirar com ideias superiores. 
 Hitler teve a amabilidade de comunicar ao seu povo 
dedicado que os militares, de hoje em diante, terão de 
obedecer à Gestapo e que qualquer soldado, se souber que um seu superior esteve implicado 
neste atentado tão cobarde e tão baixo, poderá meter-lhe, sem cerimónias, uma bala na cabeça. 
 Vai ser bonito. Imagina: ao Hans Dampf doem-lhe 
 os pés de tanto marchar; o seu superior, o chefe, dá-lhe 
 um raspanete. O Hans pega na espingarda e grita: 
 -Tu quiseste matar o nosso Führer, toma a recompensa. 
 Pum! O orgulhoso chefe que se atreveu a censurar o 
 pequeno soldado, foi despachado para a vida eterna (ou 
 será para a morte eterna?). O resultado vai ser este: os 
 senhores oficiais vão andar sempre com as cuecas sujas 
 de tanto medo e não se atreverão mais a dizer seja o que 
 for a um simples soldado. 
 Compreendes tudo? Ou gaguejei eu ao escrever? Se 
 assim for não há nada a fazer, pois estou contente de mais 
 para observar a lógica, contente por ter esperanças de que 
 em Outubro estarei, de novo, sentada nos bancos da 
 escola. Olá, não disse eu há pouco que não me devo 
 antecipar? Não te zangues. Não é por acaso que me chamam "um feixe de contradições". 
 Tua Anne Terça-feira, 1 de Agosto de 1944 
Querida Kitty: 
 "Um feixe de contradições". Foi esta a última frase 
da minha carta anterior e é a primeira da de hoje. "Um 
feixe de contradições", poderás tu explicar-me, com exactidão, 
o que isto quer dizer? O que é contradição? Como 
todas as palavras, tem dois sentidos : contradição exterior 
e contradição interior. 
 O primeiro sentido é este : não nos conformarmos com 
a opinião dos outros, querer saber tudo melhor, querer 
ter a última palavra, enfim: qualidades desagradáveis 
que já conheces suficientemente. O segundo: qualidades 
que também tenho mas que ninguém conhece e que são 
o meu segredo. 
 Já te contei em tempos que não tenho só uma alma mas 
sim duas. Uma dá-me a minha alegria exuberante, as 
minhas zombarias a propósito de tudo, a minha vontade 
de viver e a minha tendência para deixar correr, isto é, 
para não me escandalizar com "flirts", abraços ou uma 
piada inconveniente. Esta primeira alma está sempre à 
espreita e faz tudo para suplantar a outra que é mais 
bela, mais pura, mais profunda. Essa alma boa da Anne 
ninguém a conhece, não é verdade? E é por isso que tão 
pouca gente gosta de mim. 
 Bem o sei: vêem em mim um palhaço divertido para uma 
tarde-depois toda a gente fica cheia de mim para um 
mês-sou, no fim de contas, o mesmo que um filme amoroso 
para gente sisuda, uma simples distracção, um divertimento, 
alguma coisa que se esquece depressa, não precisamente 
má mas também nada de especial. Não me é agradável 
contar-te isto, mas, por outro lado, porque não o havia 
de contar se é a pura verdade? Este meu lado superficial 
tentará sempre afastar o outro, o mais profundo, e alcançará, 
por isso, a vitória. Não podes fazer ideia de quantas 
 vezes tenho tentado repelir, espancar ou esconder esta 
 Anne, que não passa da metade daquilo que se chama 
 Anne; mas não serve de nada, e bem sei porquê. Tenho 
 medo de que todos os que me conhecem, tal como costumo 
 ser, possam descobrir o meu outro lado, o mais belo, o 
 melhor. Tenho medo de que trocem de mim, me achem 
ridícula e sentimental, e não me tomem a sério. Estou 
habituada a não ser tomada a sério, mas é justamente a 
Anne mais "fácil" que suporta isso; a "mais profunda" 
não tem forças para tanto. Empurro por vezes a boa Anne 
para a luz da ribalta, mesmo que seja por um escasso quarto de hora, mas logo que ela tem de falar, contrai-se 
e fecha-se de novo na sua concha, passando a palavra à 
Anne número 1. E antes que eu me dê conta, já a boa 
 desapareceu. 
 É por isso que a Anne terna e simpática nunca vem à 
superfície na presença das outras pessoas mas é a sua voz 
que domina na solidão. Sei exactamente como gostava de 
ser, sei como sou... no íntimo, mas, infelizmente, só sou 
assim quando estou sòzinha comigo. E isto é, talvez, não 
seguramente, a razão por que chamo à minha natureza 
íntima uma natureza feliz e porque os outros chamam 
feliz à minha natureza exterior. No meu interior, a Anne 
pura é que me indica o caminho; exteriormente, não passo 
de um cabritinho que pula de alegria e de animação. 
 Como eu já disse, vejo e sinto as coisas de um modo 
e exteriorizo-as de outro e tenho, por isso, a fama de ser 
uma rapariga doida por rapazes, sempre a "flirtar", sempre 
impertinente e sempre a ler romances. A Anne alegre 
ri-se, dá respostas atrevidas, encolhe os ombros com indiferença 
como se isso nada tivesse que ver com ela, mas, 
ai de mim!, a Anne calada reage ao contrário. Como sou 
sempre franca contigo, vou confessar-te que tenho pena, 
que me esforço terrivelmente por me modificar, mas que luto 
sempre contra forças superiores às minhas. Dentro de mim uma 
voz sussurra: -Vês o resultado? Más opiniões a teu respeito, 
caras trocistas e consternadas, gente que te acha antipática, e tudo isto porque não queres ouvir 
os conselhos do teu próprio lado bom. Ai! Bem os queria eu ouvir, mas não pode ser; quando 
estou calada e séria, todos pensam que estou a representar uma nova comédia. Para me salvar só 
me resta dizer uma piadinha. Pior ainda quando se trata da minha família 
que imagina logo que estou doente e me impinge pastilhas 
contra as dores de cabeça e o nervosismo, que me toma 
o pulso a ver se tenho febre, que pergunta como funciona 
o aparelho digestivo para, em seguida, censurar o meu 
mau génio. Não suporto semelhante coisa. Quando me 
tratam desta maneira, torno-me ainda mais impertinente, 
fico triste e, por fim, viro o meu coração do avesso-o 
lado mau para fora, o bom para dentro-e continuo a 
procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de 
ser, que era capaz de ser, se... sim, se não houvesse mais 
ninguém no Mundo. 
Tua Anne M. Frank 
AQUI TERMINA O DIÁRIO DE ANNE EPÍLOGO 
 No dia 5 de Agosto a "Grüne Polizei" assaltou o anexo, 
prendeu todos os seus habitantes e também o sr. Kraler 
e o sr. Koophuis, levando os primeiros para um campo 
de concentração na Alemanha e os segundos para outro 
na Holanda. 
 A Gestapo pilhou o anexo. Mais tarde, a Miep e a 
Elli encontraram, entre velhos livros, revistas e jornais a 
que os agentes não ligaram importância, o Diário da Anne. 
Com excepção de algumas passagens apenas que não 
teriam interesse para o leitor, o texto original é publicado 
na íntegra. 
 Dos oito "mergulhados" só o pai sobreviveu. O sr. Kraler 
e o sr. Koophuis resistiram às privações nos campos 
holandeses e voltaram p ara junto de suas famílias. 
 Anne morreu em Março de 1945 no campo de concentração 
 de Bergen-Belsen, dois meses antes da libertação 
dada Holanda. 
Fim do Livro


  Então isso e  pouco ainda tem mais certo e esse filme que ultilizou   para historia dela para  servi de   não de que mais mexeu comigo